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Os Textos dos Sarcófagos são textos mágicos e o poder criativo da palavra e das imagens era central para a magia egípcia. Como sintetiza Laurent Coulon, «le monde des textes funéraires est avant tout un monde de paroles. Paroles à prononcer, paroles rapportées, paroles qui transforment, qui sont évaluées, jugées, appréciées ou repoussées»245. Os Egípcios atribuíam, pois, uma importância fundamental à escrita que estabelecia uma associação estreita e não arbitrária entre forma e conteúdo246.

Genericamente, a escrita da palavra tem uma relação fundamental com o seu conceito, visto que a codificação implica equivalências semânticas entre significante (som/imagem) e significado (conceito). A consolidação do sistema semiótico supõe uma aliança duradoura entre significantes e significados específicos que não estão separados das realidades cultural e social, pelo que se pode considerar que o sistema de escrita transmite uma posição cultural247. Neste sentido, a linguagem medeia a cognição e, em certa medida, os objectos são o que a linguagem os apresenta, dado que, quando seleccionamos as características que categorizam um conceito, estamos a lidar não apenas com a percepção abstracta das características do objecto, mas com o problema da atribuição dessas características a esse objecto particular248.

A realidade nunca é, pois, realmente representada, independentemente das formas como é dita. Não existe um paralelismo absoluto entre realidade e linguagem249: dizer o que alguma coisa é, consiste, na verdade, em dizer o que uma pessoa pensa que ela é, de acordo com a linguagem que utiliza. No limite, poderíamos considerar que não existe outro modo de aceder à consciência e à realidade excepto pelo modo indirecto da interpretação dos símbolos250. Esta dificuldade em expressar a inteligibilidade do real 245 Coulon 2004, 119. 246 Dunand e Zivie-Coche 2004, 8. 247 Goldwasser 1995, 10. 248 Cassirer 1953, 28-29. 249 Barthes s.d., 23. 250 Maceiras Fafián 2005, 73.

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através da linguagem é uma preocupação central quando perseguimos o tipo de análise que pretendemos fazer no presente capítulo. Dado que todo o processo mental procura compreender a realidade através de signos mediados pela linguagem e pelo pensamento, a formulação de conceitos não nos dá a essência verdadeira nem a forma dos objectos, mas do próprio pensamento, sendo a organização através da classificação dos fenómenos do mundo real essencialmente um processo que expressa não a própria natureza das coisas, mas a natureza da mente251.

Em última análise, a cultura é construída sobre um sistema de signos e conhecer os signos é conhecer a sociedade bem como o próprio homem. Seguir os signos e procurar a lógica de um sistema poderá permitir-nos compreender socio-culturalmente uma sociedade252. Neste sentido, a semiótica pode fornecer um mecanismo operativo que pode ajudar a direccionar olhares mais específicos sobre o real, apesar de não poder funcionar como uma grelha que lhe dá acesso directo253. Autores fundadores como Ferdinand de Saussure e Charles S. Peirce, apesar de advogarem diferentes perspectivas quanto ao desenvolvimento do campo de estudos semióticos, assumem que a tarefa da semiótica é o descrever de convenções que subjazem aos modos de comportamento e representação e que para compreender o mundo social e cultural é necessário pensar não em termos de objectos independentes, mas de estruturas simbólicas, sistemas de relações que, permitindo aos objectos e acções terem significado, criam o universo humano254.

Mesmo os desenvolvimentos pós-estruturalistas e as chamadas leituras desconstrutivistas, apesar de postularem a impossibilidade de uma ciência dos signos completa e sistemática, não terão contraditado o interesse da pesquisa semiótica. Os paradoxos e as lacunas que identificam não deixam de constituir a base de distinções metodológicas básicas – entre langue e parole, sistema e evento, sincrónico e diacrónico, significante e significado, metáfora e metonímia – ainda que não facilmente sintetizáveis como quereriam os estruturalistas255.

251 Cassirer 1953, 7.

252 Eco 1997, 147. 253 Barthes s.d., 35.

254 Culler 1981, 24-25. Obras como The Philosophy of Symbolic Forms (1946), de Ernst Cassirer, e Symbolism: Its Meaning and Effects (1927), de Alfred North White, assim como Philosophy in a New Key

(1948), de Susanne K. Langer, afirmaram mesmo veementemente o primado da dimensão simbólica na experiência humana.

255 Mais recentemente, a teoria conceptual da metáfora, enraizada nos estudos de Lakoff e Johnson

(Metaphors We Live By, 1980) e Kövecses (Metaphor. A Practical Introduction, 2002), proporciona um enquadramento complementar para o pensamento destes termos metafóricos, reafirmando como princípio básico que a metáfora é primeiramente conceptual, ao implicar processos de pensamento em que um

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Mas se, por um lado, a compreensão dos signos e da sua formulação é pertinente, apesar de poder implicar que nos movamos num processo de significação que acabaremos por não controlar completamente256, por outro lado, os signos, enquanto entidades fluidas e produto de mentes humanas dentro de um contexto cultural específico, tornam problemática a leitura simbólica porque, quase inevitavelmente, algumas das ideias contemporâneas são transpostas para a sua interpretação257. Assim, a prudência necessária deve ser exercida na sua análise, ainda mais quando estamos a aplicar o filtro da ciência actual a formas de pensamento milenares que não operariam do mesmo modo. Se, contemporaneamente, «a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las, para si estabelece modelos internos das coisas e, operando sobre estes índices ou variáveis as transformações permitidas pela sua definição só se confrontam de quando em quando com o mundo actual258», ao antigo Egípcio não pode ser atribuído este olhar científico externo sobre a configuração simbólica da sua mundividência, facto que se torna particularmente pungente quando estamos a tratar da construção de redes simbólicas e de textos de fundo mítico.

Ainda assim, o interrogar do signo é, na nossa perspectiva, absolutamente central para a análise que aqui trazemos, especialmente tendo em conta as particularidades da escrita hieroglífica. Orly Goldwasser, na linha saussuriana, divide o signo hieroglífico como uma relação entre o significante e o significado259, a forma e o conteúdo. Na escrita hieroglífica, as palavras são habitualmente compostas por uma sequência de fonemas seguidos por um ou mais ideogramas, os «determinativos» (também conhecidos como taxogramas ou semagramas), que situam a palavra num campo semântico. Podemos então encontrar dois significantes igualmente importantes para cada significado: um fonético e

domínio conceptual é compreendido em relação a outro domínio. O domínio que fornece a estrutura para esta compreensão é designado como «fonte» enquanto o domínio a ser compreendido é designado como «alvo», sendo o primeiro relativamente concreto, muitas vezes relacionado com experiências físicas, e o segundo mais abstracto. Esta inter-relação não é meramente de cariz linguístico e comunicativo, mas implica uma percepção de pensamento sobre os «alvos», que são entendidos em relação à «fonte» por uma série de «mapeamentos» da «fonte» para o «alvo», através de correspondências que activam um mecanismo de similaridade entre os dois domínios: a sua relação não é pré-existente mas criada pela metáfora conceptual. Nem todos os mapeamentos se encontram numa única expressão metafórica e a questão do que faz emergir alguns significados em detrimento de outros é altamente problemática. Esta noção é utilizada, em complemento com a aproximação fenomenológica do corpo de M. Merleau-Ponty (Phenomenology of

Perception, 1945), é utilizada como base metodológica importante por Rune Nyord no seu estudo (2009). 256 Culler 1981, x-xi.

257 Wilkinson 1992, 11. 258 Merleau-Ponty 2002, 13. 259 Goldwasser 1995, 9.

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um pictórico, revelando a estrutura profundamente bipartida do signo260. Em suma, o determinativo é, então, se atendermos à terminologia de Peirce retomada por Umberto Eco, uma espécie de «interpretante», manifestação de um signo equivalente, mas que pode albergar uma maior complexidade. Se o signo representa o seu objecto através de uma ideia base, que não inclui todos os seus aspectos, o interpretante é o outro signo que o traduz, mas é, simultaneamente, uma ideia que emerge desses signos: é uma espécie de mediador que desenvolve esse signo, um apenso cognitivo abrigado pelo signo inicial261. Mais do que apenas adicionar inteligibilidade à interpretação do significado do signo, o elemento interpretante dinamiza a relação do signo com o seu objecto, no chamado processo de representação, e resulta numa leitura que faz emergir sucessivos novos signos num desenvolvimento retórico262.

Esta dinamização das relações entre signo e objecto no processo de representação é passível de ser mediada pelo interpretante, porque:

Todo o interpretante é uma atitude cultural ou unidade semântica. Estas unidades estão globalmente inter-relacionadas num sistema semântico cultural. O sistema de unidades semânticas representa a forma como determinada cultura segmenta o mundo percebido e pensável263.

Ou seja, trata-se de um mecanismo semiótico que funciona como predicado do significante ao traduzir o significado sob determinadas circunstâncias culturais específicas264.

Se o signo é uma entidade de duas faces e o significado é parte do signo, então no processo de significação importa indagar o elemento significante, no caso do hieroglífico, o duplo significante que porta o conteúdo, o significado265. E dado que a substância do conteúdo teoricamente poderá significar todo o universo pensável e dizível266, é importante discernir a natureza dos seres e objectos e das relações entre eles. Estas relações eram, no caso do egípcio hieroglífico, originadas por propriedades partilhadas

260 Goldwasser 1995, 30. 261 Eco 1997, 144-145. 262 Man 1979, 127-128. 263 Eco 1997, 159. 264 Eco 1997, 154-155. 265 Eco 1997, 76-77.

266 Eco 1997, 78. O problema, claro, é se a linguagem se divide em signos isolados que organizamos através

da realidade percebida ou se a forma como percebemos a realidade leva a uma certa segmentação da linguagem.

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como a cor, o som, o nome267 ou a estrutura consonântica da escrita: os símbolos hieroglíficos partilhavam toda a concepção de imagem passível de ser tomada/habitada (por exemplo, os textos religiosos aparecem essencialmente em hieróglifos ou hieróglifos cursivos, mas raramente em hierático), pelo que o modo como são escritos é ainda mais significativo. Os hieróglifos são um meio de comunicação, mas também um modo de classificação do mundo268.

Nesta sequência, consideramos a recolha das variações da escrita de isefet nos Textos dos Sarcófagos, com especial destaque para os determinativos, como um primeiro passo fundamental para o estudo da conceptualização do termo. A tabela 6 que a seguir se apresenta dá conta das variações encontradas na escrita do termo isefet nas várias fórmulas dos Textos dos Sarcófagos.

Variações da escrita de isefet nos Textos dos Sarcófagos

Escrita Fórmula Ref.

TS Fonte 40 I173 B13Cb B16C 128 II149 S1C G2T 229 III297 G1T 335 IV210 T1Cb 553 VI153 B2B0 566 VI165 B1B0 624 VI241 T1Ca 647 VI267 61T 656 VI278 TT319 719 VI347 B3B0 1130 VII462 B3C B1B0 B9C VII464 B3C B4C B1B0 40 I174 B13Cb B16C 267 Pinch 1994, 16. 268 Pinch 2004, 21.

74 117 II139 G2T 335 IV210 B14 (sic) 117 II139 S1C S2Ca (sic)269 G1T A1C 307 IV62 BH4C 335 IV210 B9Cb B9Ca M4C 510 VI96 B9C 540 VI136 M22C 553 VI153 B4C 743 VI373 B4C 1130 VII462 B6C B1L VII464 B6C B9C B1L 510 VI96 B10C 128 II149 P.Gard.II 229 III297 A1C (sic) 238 III317 T2L 296 IV49 L1Li 306 IV60 L2Li (víbora cortada) 307 IV62 L1Li (víbora cortada) IV63 L1Li (víbora cortada) 335 IV210 T1Ca S97C

75 (sic) B3C (sic) B1P 335 IV210 S91Sg (sic) 553 VI153 B2B0 566 VI165 BH2C 789 VII2 L2Li 1011 VII226 P.Gard.II Total de ocorrências 56

Tabela 6. Variações da escrita de isefet nos Textos dos Sarcófagos

Duas observações impõem-se de imediato às variações gráficas da escrita de isefet. Em primeiro lugar, a variação mais disseminada da escrita de isefet é izft e a equivalente isft. Portanto, a componente fonética do significante é bastante consistente, posto que e são caracteres geralmente comutáveis. Em segundo lugar, o determinativo de referência é o (G37), tal como se clarifica na tabela abaixo:

Tabela de ocorrências dos determinativos de isefet nos Textos dos Sarcófagos

Ocorrência simples

Determinativo Repetições Fórmula Ref. TS Fonte

(G37) 36 40 I173 B13Cb B16C 117 II139 S1C G1T A1C 128 II149 S1C G2T 229 III297 G1T 238 III317 T2L 307 IV62 BH4C 335 IV210 B9Cb B3C T1Cb B9Ca M4C 510 VI96 B9C

76 540 VI136 M22C 553 VI153 B2B0 B4C 566 VI165 B1B0 624 VI241 T1Ca 647 VI267 61T 656 VI278 Th.T319 719 VI347 B3B0 743 VI373 B4C 1130 VII462 B3C B1B0 B6C B9C B1L VII464 B3C B4C B1B0 B6C B9C B1L (Y1) 2 117 II139 G2T 335 IV210 B14 (B1) 1 117 II139 S2Ca (C7) 1 128 II149 P.Gard.II (Z2) 3 306 IV60 L2Li 307 IV62 L1Li IV63 L1Li (Aa2) 1 335 IV210 Sq1Sq (X4) 1 566 VI165 BH2C Total de ocorrências simples 45 Ocorrência compósita

Determinativo Repetições Fórmula Ref. TS Fonte

(G37+Y1) 2 40 I174 B13Cb B16C (G37+Z2) 2 296 IV49 L1Li 335 IV210 B1P (G37+N33A) 2 335 IV210 T1Ca S97C (G37+D41) 1 510 VI96 B10C (F51+D21) 1 229 III297 A1C

Sem determinativo 3 553 VI153 B1B0

77 1011 VII226 P.Gard.II Total de ocorrências compósitas 11 Total de ocorrências 56

Tabela 7. Ocorrências dos determinativos de isefet

Existe um conjunto de ocorrências sem determinativo e o significado não se torna ambíguo, porque não existem outros termos com raiz similar, excepto o adjectivo nisbe que deriva do termo isf.ty270.

Desde cedo, a escrita da palavra com o respectivo determinativo é apresentada de forma bastante homogénea, o que, na sequência de todo o exposto acima, poderá até um certo ponto indicar já um certo grau de cristalização do conceito nos Textos dos Sarcófagos. Para aprofundarmos esta questão, dedicamo-nos seguidamente à análise detalhada da componente do significante que poderá fornecer mais pistas sobre a conceptualização de isefet: o determinativo.

A escrita hieroglífica acrescenta à fracção fonética do significante informação icónica complexa (determinativo) que prova ser frequentemente fundamental para o significado final da palavra. Os determinativos apensam uma informação semântica suplementar à unidade fonética que seguem e somam uma configuração adicional ao significado271. O estudo apresentado neste capítulo assume como premissa operativa fundamental a de que «the graphemes of the Egyptian hieroglyphic script known in Egyptology as “determinatives” reflect a system of knowledge organization or, in other words, a classification system»272, ou seja, podem ser taxonomicamente classificados. Este sistema de classificação é definido por Langridge como «um mapa completo de qualquer área do conhecimento, mostrando todos os seus conceitos e suas relações»273.

Das seis funções da comunicação teorizadas por Roman Jakobson – referencial, apelativa ou conativa, fática, metalinguística, poética –, listadas e discutidas por Orly Goldwasser, no âmbito do seu estudo dos hieróglifos274, gostaríamos de relevar três: a função referencial (obviamente, muita da informação transmitida pelo determinativo é referencial); a função metalinguística (os determinativos, por vezes, expressam

270 Guerry 2009, 299.

271 Goldwasser 1995, 54.

272 Goldwasser 2000, VII; ênfase do original. 273 Langridge 1987, 25.

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informação suplementar ao nível metalinguístico); a função emotiva (a escolha de certos determinativos está directamente dependente dos valores e emoções a eles associados).

Além da óbvia relevância das duas primeiras funções, esta última função é importante para o tópico deste capítulo visto que a escolha de determinativos pode ser condicionada por uma resposta «emocional», em concreto por parte do escriba: especialmente nos determinativos que lidam com valores como «mal» e «abstracção». Esta escolha destaca os princípios e sentimentos que formam a palavra, sempre que a palavra não está completamente fixada e admite pequenas variações. Isto significa que o símbolo apresentado não é um mero componente fonético objectivo, mas que existe um certo grau de interpretação subjectiva tanto da parte do escriba quanto da parte do leitor275. Deve ainda ser constatado que o uso flutuante de determinativos pode depender da evolução social ou de preferências estilísticas e que nem sempre conseguimos destrinçar possíveis mudanças implícitas no significado, pois é quase impossível para nós reconhecer se o significado da mesma sequência fonética se modifica ligeiramente quando o uso do determinativo varia276.

Coube a Elinor Rosch aplicar o sistema taxonómico aos determinativos egípcios, desenvolvendo-o a partir das dimensões vertical e horizontal e baseando-o numa percepção do mundo orientada por «pontos de referência cognitivos», sendo o nível básico o exemplo protótipo de uma categoria277. Deste modo, existem os níveis básicos (ou hiperónimos) que, de acordo com Rosch, correspondem ao nível compreensivo mais elevado de uma categoria, isto é, o hiperónimo detém as características genéricas de uma determinada classe e cada elemento deste nível categórico partilha uma similaridade geral de forma: um elemento escolhido desta categoria pode representar toda a categoria de forma suficiente, e a maior parte dos elementos desta categoria pertence a este nível278.

Acima dos termos de nível básico encontram-se os termos superordenados que introduzem um nível mais genérico da categoria. Abaixo dos termos de nível básico estão os termos subordinados (ou hipónimos), que apresentam elementos mais específicos da categoria, comungando dessas características genéricas, mas sem deixar de possuir os

275 Goldwasser 1995, 53.

276 David 2000, 3.

277 Apud Goldwasser 1995, 20. 278 Apud Goldwasser 1995, 82.

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seus próprios traços definidores. Obviamente, um determinado hiperónimo pode ser, por sua vez, hipónimo noutra relação entre unidades lexicais.

O esquema seguinte279 ilustra esta dinâmica taxonómica:

São as relações de hierarquia semântica que definem a classificação das unidades lexicais. A semiótica permite percepcionar uma tendência geral para sublinhar o papel dos sistemas simbólicos na experiência humana e, portanto, de pensar não em termos de objectos autónomos, mas em termos de um sistema de relações280.

Goldwasser adianta que o sistema de categorização se baseia em «categorias naturais» que são, na sua essência, não religiosas281. Usualmente, o determinativo relaciona-se com a componente fonética da palavra de forma metafórica; a sua atribuição traduz-se numa nova pertinência e consequente evolução semântica. Se a metáfora for concebida como um procedimento discursivo da linguagem, ela deixa de ser a simples substituição ou complementação de um termo por outro, para significar a tensão entre dois sentidos, criada em virtude da relação que existe entre eles e que reconfigura a realidade282.

Mas, a par desta forma de interpretação metafórica (categórica), há também uma forma de interpretação metonímica (esquemática), a qual sugere um tipo de domínio diferente. Algumas qualidades de determinativos rompem o esquema categórico «natural», reportando-se a outro tipo de distinção. De facto, algumas palavras comportam até dois tipos diferentes de determinativos representando ambos os alinhamentos. Por exemplo, o conjunto de palavras relativas a «mal» ou «prejudicial» podem apresentar determinativos que manifestam as suas qualidades de forma metonímica e que interferem

279 O esquema é retirado de Goldwasser 1995, 81. 280 Culler 1981, 26. 281 Goldwasser 1995, 100-101. 282 Maceiras Fafián 2005, 73-85, 78. Dim en são v er

tical o Termo SUPERORDENADO: «animal»

• Termo de nível BÁSICO: «cão», «gato», «pássaro»…

o Termo SUBORDINADO: «retriever», «bulldog»… Dimensão horizontal

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na categorização dos termos. Esta tendência foi nomeada por Lakoff como «princípio de propriedade importante» e desempenha um papel fulcral no estabelecimento de uma categoria SUPERORDENADA de «prejudicial»283. Quase todos os determinativos de isefet presentes na tabela, apesar da sua categorização natural, podem ser englobados nesta categoria SUPERORDENADA secundária de «prejudicial».

• (G37)

Pela tabela de ocorrências dos determinativos de isefet nos Textos dos Sarcófagos antes apresentada é evidente que o determinativo (G37) foi precocemente consolidado como referencial, mas revelam-se ainda espaços para variações referentes às categorias de «mal», «abstracto» e «setiano». Consequentemente, pode ser assumido que esta é a qualidade preponderante na sua categorização, de acordo com o «princípio de propriedade importante», ainda que sejam todos determinativos relativamente genéricos. Apesar de o signo (G37) aparecer já nos Textos dos Sarcófagos como o mais comum determinativo de isefet, o seu emprego neste conceito não parece ter sido generalizado antes do Império Médio284.

Arlette David faz um levantamento do uso deste determinativo nas estelas do Império Antigo e conclui que nas primeiras quatro dinastias o determinativo (G37) não tem conotação negativa, representando simplesmente o adjectivo nDs («pequeno»). A autora advoga que provavelmente durante a V dinastia o símbolo começou a ser usado como um determinativo que implicaria, genericamente, inferioridade através de um processo de associação metafórica e que, durante a VI dinastia e ao longo do Primeiro Período Intermediário, a noção de inferioridade se terá expandido ao nível da forma, função e estatuto, tornando-se gradativamente ligada à inferioridade moral representada pela ideia de bin, um conceito que lida com o problema da perturbação e do tipo de mal que mina a ordem social285. Ainda que, por esta altura, o seu enquadramento na categoria de «mal» não seja muito claro, o factor económico de uma sociedade agrícola egípcia angustiada durante o Primeiro Período Intermediário poderá ter-se juntado a este

283 Goldwasser 1995, 88.

284 É possível que esta mudança se inscreva num contexto mais vasto que inclui outras mudanças na

utilização de determinativos entre o Império Antigo e o Império Médio (Manassa 2004, 195-196).

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desenvolvimento do significado do , quando o pardal teria activamente contribuído para o pilhar das colheitas286.

Arlette David conclui que:

Le choix de l’oiseau pour représenter la catégorie est justifié par sa plasticité sémantique: parce qu’il est petit, il indique l’infériorité (nDs) par métaphore; parce qu’il est destructeur, il représente métaphoriquement la perturbation (bin). De plus, il s’agit d’un oiseau très commun.287

O «pássaro mau» torna-se, então, um termo de nível BÁSICO da categoria de

«pequenos elementos de perturbação» incorporada no termo SUPERORDENADO de

«inferioridade»288. Daqui decorre que os principais campos de aplicação de sejam a «inferioridade» e a «perturbação»: inferioridade inclui esferas específicas como «dor», «sofrimento», «pequenez», «juventude», «carência», «fraqueza»; «perturbação» inclui esferas específicas de «errado» e «transgressão/fazer mal»289. Um termo como isefet,

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