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Carlos da Maia

No documento Despojos de Guerra (páginas 99-102)

Em vésperas da Grande Guerra, chegava a Macau Carlos da Maia, o novo Governa- dor enviado pela República. Ficaria para a História, por boas e más razões. O seu consu- lado foi objeto de apreciações abonatórias na historiografia oficial, mas como veremos, a

administração que liderou esteve longe da consensualidade. O seu legado foi assinalável, mas também gerou controvérsia ao ausentar-se do território em circunstâncias não total- mente esclarecidas, para não mais regressar.

Carlos da Maia chegaria a Macau em 10 de julho de 1914, depois de ter sido recebido com a pompa e circunstância características das autoridades britânicas em Hong Kong. O novo Governador, uma das figuras fundadoras do regime republicano onde desempe- nhara cargos de destaque, conhecia bem a colónia de Macau onde havia estado destacado como oficial da Armada (1903-5).

Fora nomeado por Bernardino Machado, o republicano que dera seguimento ao desiderato colonial da monarquia, considerando abertamente que as possessões ultrama- rinas eram um património tão sagrado como o território da mãe-pátria. Cabia agora ao seu correligionário, Carlos da Maia, zelar pela perpetuação do desígnio imperial. Foi o que Maia fez, ainda que de modo algo excessivo. O herói da revolução republicana estava

apostado em abalar o statu quo em Macau, sem olhar a consequências. Nessa medida, terá

subavaliado as especificidades geopolíticas da colónia oriental.

À época, a segurança da colónia corria riscos reais, fruto da instabilidade vivida na China. A comunicação entre as Repúblicas, China e Portugal, era feita a dois tempos: Lisboa privilegiava Pequim, enquanto Macau cuidava de manter boas relações com os sucessivos poderes instalados em Cantão, província geograficamente próxima e que exer- cia grande influência na vida da colónia portuguesa.

Para complicar ainda mais o cenário, a governação de Macau era frequentemente vítima da comunicação desconexa entre o Ministério das Colónias, de que dependia, e os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Guerra.

No mesmo dia da chegada de Carlos da Maia a Macau, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Freire de Andrade, enviava um telegrama confidencial ao chefe da legação em Pequim, dando conta das reservas colocadas pelo encarregado de negócios da China em Lisboa às novas negociações para a delimitação da colónia.

O Governador de Macau intervém no diálogo, confirmando a sua disponibilidade para apoiar a diplomacia portuguesa na ansiada solução para a questão da delimitação da

colónia.4 Carlos da Maia deixa patente o problemático relacionamento com a China,

fonte de frequentes incidentes, provocados ou permitidos, pelas autoridades chinesas. A China não reconhecia, por exemplo, o direito à Capitania dos Portos de registar e conce- der licenças a embarcações.

A perniciosa dependência da China para abastecimentos de víveres e água a Macau era outra das questões sublinhadas pelo Governador ao poder central em Lisboa, a par da atividade dos piratas em redor de ilhas em litígio entre Portugal e a China. Para quebrar essa dependência, Carlos da Maia propunha a criação de gado na ilha de Coloane e a ocupação da ilha da Lapa, que abastecia água potável a Macau. Nenhuma destas propos- tas viria a concretizar-se nas décadas vindouras.

4 AHD, caixa n.º 1236/Limites de Macau, Governo da Província de Macau, Expediente geral n.º 39, confi- dencial, 23 de julho de 1914, p. 1.

Dando sequência à comunicação inicial de julho, o ministro com a pasta dos Negó- cios Estrangeiros mostra-se cético quando ao reatamento dos contactos bilaterais para a delimitação de Macau. Em despacho enviado para Pequim, opina:

“Devo dizer a V. Ex.ª que não tenho grande esperança de que nesta nova negociação sejamos mais felizes que nas anteriores. Em Cantão, mais do que em qualquer outra parte da nova república continua a dominar o espírito da recuperação dos direitos que os estrangeiros possuem na China”.5

A avaliação feita pelo MNE estava correta, até porque, conforme era sublinhado naquela telegrafia, o eventual insucesso das negociações poderia provocar um recrudes- cimento das hostilidades dos cantonenses contra Macau. Acautelando desenvolvimentos que poderiam ficar fora de controlo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros acaba por dar instruções ao seu diplomata em Pequim para evitar o início das negociações. A recor- rente questão da delimitação territorial de Macau teria que esperar até ao final da Grande

Guerra.6

A Guerra

A 9 de março de 1916 Portugal entra finalmente na Grande Guerra. Oficialmente, já que o conflito armado com a Alemanha estalara muito antes nas colónias africanas. Pou-

cos dias depois, a 11 de março, o suplemento do Boletim Oficial de Macau dava conta da

histórica notícia.

Desde o início da guerra que a vizinha colónia britânica de Hong Kong tomara pro- vidências para a eventualidade de vir a tomar parte ativa no conflito (Man, 2014). Mas a conquista da colónia alemã de Shandong pelo exército imperial japonês, no final de 1914, neutralizara a eventualidade do alargamento do conflito à China (Cunha, 2014). Fruto da aliança anglo-nipónica, firmada em 1902 e renovada em 1905 e 1911, a Grã-Bretanha confiara a proteção dos seus interesses em águas chinesas ao Império do Sol Nascente.

Nessa medida, para Macau o perigo imediato não provinha tanto de uma eventual extensão do conflito entre Aliados e potências centrais europeias àquela zona do globo, mas antes da recorrente ameaça chinesa, protagonizada pelos incontroláveis “senhores da guerra” da região de Cantão. O poder central em Pequim não estava em condições de garantir que a República chinesa seria una e indivisível. Pelo contrário, as províncias cha- mavam a si uma problemática autonomia, apoiada em exércitos a soldo de generais ape- nas interessados na busca de fortuna e proveitos políticos.

5 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, despacho confidencial n.º 3, caixa n.º 1236/Limites de Macau, 19 de setembro de 1914, p. 2.

6 Os problemas relacionados com a antiga questão da delimitação territorial de Macau não foram exclusivos da era colonial. Em dezembro de 2015, o Conselho de Estado da República Popular da China (RPC) apro- vou um novo mapa demarcando as zonas terrestre e marítima da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Para o efeito, as autoridades da RAEM e o Governo da Província de Cantão negociaram as demarcações que careciam de regulamentação específica, o que dava origem a dificuldades no domínio da segurança marítima. A transição administrativa do território sob administração portuguesa para a China, ocorreu, recorde-se, a 19 de dezembro de 1999. Com a decisão do Conselho de Estado da RPC, em 2015, a delimitação de Macau conhecia finalmente um desfecho – 457 anos depois da chegada dos portugueses.

O anúncio da entrada de Portugal na guerra teve um reduzido impacto na vida quo- tidiana de Macau. um despacho para Lisboa do gerente do Banco Nacional ultramarino (BNu) dava conta da paralisação nos negócios e aumento do custo de vida, mas a colónia

vivia uma situação financeira desafogada graças aos proventos do ópio e do jogo.7 Era

caso excecional no império ultramarino português, que se estendia de Lisboa a Timor.

No documento Despojos de Guerra (páginas 99-102)