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Carlos Rocha: O sujeito na/da/ para a História – e sua estória

3.3 A DEMOCRATIZAÇÃO DO ATO NARRATIVO EM A SUL O SOMBREIRO

3.3.3 Carlos Rocha: O sujeito na/da/ para a História – e sua estória

Estrategicamente representado como protagonista, o negro Carlos Rocha assume por duas vezes o espaço diegético de A sul. O sombreiro. Através dele, Pepetela não só angolaniza a História do período inicial da colonização de seu país, como também amplia a denúncia sobre aquele que mais sofreu com o tráfico negreiro e que foi o sujeito real da história, o dominado.

A partir dessa perspectiva, Carlos Rocha é posto em cena sendo obrigado a fugir do início ao fim da narrativa por medo de ser capturado e vendido pelo próprio pai – comerciante de escravos arruinado pelo abuso do álcool – ou pelo governador português Manuel Cerveira Pereira. Sua posição no romance constituirá desse modo, a situação verdadeira dos africanos que assim como ele fugiam duplamente: tentavam escapar não apenas do invasor branco, como também dos grandes chefes locais.

Note que, ironicamente, a figura paterna que deveria proteger é a principal causa das constantes fugas deste personagem-narrador. Tal atitude pode ser comparada ao comportamento dos sobas africanos que, embriagados pelo poder, não se pejavam de sair pelo interior angolano para “kanzar” seu próprio povo e os vender aos portugueses, conforme observa Pepetela (2011, p. 29) em sinal de protesto, “Os príncipes e outros chefes eram mas [sic] é vendedores de escravos, grito eu, furioso”.

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A inscrição que nomeia este subcapítulo nasceu a partir da paráfrase feita do título O sujeito na/da/para a história – e sua estória, capítulo dez, do livro Poética do pós-modernismo, de Linda Hutcheon (1999).

Nesse sentido, pode-se afirmar, juntamente com Jill R. Dias (2002, p. 293), que o tráfico de escravos não se traduziu numa simples dicotomia entre uma sociedade europeia dominante, por um lado, e uma sociedade africana separada e passiva, por outro. “Paradoxalmente em termos globais, o tráfico de escravos transatlântico constituiu uma força coesiva que uniu as duas sociedades, europeia e africana, até à ocupação colonial militar do território angolano depois de 1900” (DIAS, 2002, p. 293).

Cabe acrescentar que muitos africanos ingressavam na caça de seus semelhantes, incentivados pelos portugueses e seduzidos pelas armas de fogo: “Aqui tem gente de mais. [...] Se eu puder ter armas boas a troco de escravos, porquê [sic] não vou vender? Só comer? A carne de pessoa é boa para certos momentos, não deve ser a comida de todos os dias” (PEPETELA, 2011, p.198). No entanto, tais artefatos eram usados como instrumentos de sedução, visto que, na maioria dos casos, a comercialização se dava apenas através do fornecimento de tecidos, espelhos e missangas distribuídos pelos navios portugueses provenientes de Luanda:

[...] Os portugueses entram de mansinho, com os padres, as missangas, alguns panos e muitas promessas de amizade e boa vizinhança. Depois compram muito barato os escravos e o marfim e mandam tudo para o outro lado do mar. Verás, o que eles te dão são missangas.

- Preciso de armas.

- Esquece. Nunca te vão dar. Não deram no Kongo, não deram no Ndongo, não deram nos jagas... as armas são a força deles contra nós. (PEPETELA, 2011, p.292) O comentário de Carlos Rocha, no excerto, sobre a exploração dos recursos africanos, ao mesmo tempo consciente e conscientizador, procura esclarecer a Ebo-Kalunda, personagem chefe da aldeia Sumbe Ambuela, o quanto ele e os outros sobas angolanos eram vítimas do ardiloso discurso colonial. Suas reflexões marcam ainda a inserção dos nativos num campo ilusório minado, pois ao passo que os portugueses lhes garantiam autonomia, liberdade e poder, o que promoviam na realidade eram submissão e agrilhoamento, este último no sentido próprio e no figurado, por meio de imposições sociais políticas e culturais.

Por carregar consigo símbolos culturais europeus como os ligados à religião cristã, a língua portuguesa, a escrita e o vestuário europeu – nomeadamente calças e, sobretudo, sapatos –, Carlos Rocha ainda pode ser visto como modelo representativo das novas identidades africanas que se formaram em Angola no período da colonização. De acordo com Dias (2002), o maior e mais visível destes grupos centrava-se em Luanda, “onde uma poderosa oligarquia de famílias mestiças dominava o tráfico esclavagista”, mas também

podiam ser encontrados no interior do território angolano, próximos dos postos fortificados e das povoações coloniais, como em Benguela. Destacavam-se dos negros interioranos por falar o português e se identificarem como cristãos. Eram tidos como brancos e considerados superiores culturalmente em relação aos africanos gentios (DIAS, 2002, p. 303). A situação apresentada no excerto que segue, mostra o personagem Mukilango tratando Carlos Rocha como “branco”, o que confirmaria, segundo Dias (2002), a participação deste personagem- narrador no grupo de novas identidades surgidas no território angolano no período colonial:

- Como faço para ficar com Kandalu? Pago o quê ao tio dela ou à família? Tenho de a pedir a Imbe Kalandula?

- Queres Kandalu para mulher? - É isso que estou a dizer. [...]

-Fizeste bem em falar comigo. Primeiro tens de saber se ela te quer para marido. Pode só querer experimentar como é um branco...

- Não sou branco, sou da tua cor.

- Está bem, és da minha cor mas és branco, até andas de botas. Não interessa. Fala com ela. Se quiser, então deves falar com a família. Tens de pagar alembamento. (PEPETELA, 2011, p. 195-196)

Ao apresentar um narrador que relata sua estória paralelamente à história real, Pepetela subverte o discurso do colonizador. Nesse encaixe de narrativas, o autor procura nitidamente um afastamento em relação à centralização e equaciona um movimento de “repensar as margens” (HUTCHEON, 1991, p. 85). Quando capacita Carlos Rocha para se colocar como sujeito na/da/para a História (no ato de contação de sua própria estória) possibilita-lhe falar de si e do outro, mesmo que este outro seja visto de maneira indireta, ou seja, por espelhamento.

Embora esse posicionamento do autor não altere o curso dos fatos anteriores registrados pela historiografia oficial, ressuscita poeticamente aqueles que participaram diretamente destes acontecimentos, testemunhando sua presença na História e permitindo que suas vozes outrora silenciadas sejam ouvidas.