• Nenhum resultado encontrado

3.3 A DEMOCRATIZAÇÃO DO ATO NARRATIVO EM A SUL O SOMBREIRO

3.3.6 Um fio de narrativa para uma voz que resiste

Como vimos, muitas vozes se entrecruzam em A sul. O sombreiro. No entanto, além dos narradores apresentados, importa abrir um espaço e realçar a presença de uma voz que insiste em se fazer presente durante toda a narrativa: a voz de um narrador-comentador que muito parece confundir-se com a voz do autor. Suas entradas na narrativa aparecem tipograficamente sinalizadas em itálico e devidamente espartilhadas por colchetes. Assim, tal instância narrante discorre sobre os mais variados assuntos sem preocupar-se com o tamanho da informação, que pode apresentar-se desde a constituição de um pequeno período: “[Um dia

haveria de se nomear o lugar de Benguela-Velha e mais tarde Porto Amboim.]” (PEPETELA,

2011, p. 168), até construções maiores como estas que trazem ao leitor considerações histórico-geográficas da Angola contemporânea e seiscentista:

[Os claustros do convento de S. José dos franciscanos foram eliminados quando, no século XIX, deram origem ao hospital Maria Pia, hoje com outro nome oficial, mas continuando a ser um dos mais importantes de Luanda. Também o antigo colégio dos jesuítas cedeu o lugar do arcebispado, mesmo colado ao palácio presidencial. No entanto, permaneceu a igreja de Jesus, a mais antiga de Luanda e com a fachada característica dos jesuítas. Tornou-se na sé da cidade já depois de 2000. Durante os séculos XVI e XVII, várias outras igrejas, conventos e edifícios públicos foram construídos no espigão entre a fortaleza de S. Miguel e o antigo convento dos franciscanos, constituindo o que até hoje se chama a Cidade Alta, atualmente

como antes, o centro do poder político. Outrora também era o centro do poder religioso.] (PEPETELA, 2011, p. 14)

[Os chefes são enganados quando querem. Porque todo o monarca, do maior ao mais pequeno, tem seus espias e agentes de segurança. O espantoso nesta carta e em muitos outros relatórios de igual proveniência é o facto de o Cerveira sempre referir o clima como argumento decisivo na escolha, talvez por ter medo de revelar o verdadeiro motivo, imposição de Kianda, o ser mais mítico das águas do mar, charcos ou rios. Tal confissão podia ser mal interpretada, levando o rei católico a antecipadamente se arrepender de pôr à frente de uma conquista tão importante um homem com perturbações mentais, dando valor a avisos do diabo. De facto não seria novidades. O governador chegou em maio de 1617, tendo desembarcado no mesmo 17, altura do ano mais fresca e sem chuva, mas com aqueles restos de humidade que fazem o capim estar verdinho, dando a ideia, com muito boa vontade, de prados da Europa. Compreende-se o erro. Mas designar ares salutíferos os respirados no meio de pântanos já é mais difícil de aceitar. E que os dois rios, Cavaco ou Maribombo e Corinje, corram com excelente água é a mais deslavada das mentiras, pois só tem água nos últimos séculos ( e os arqueólogos geológicos poderiam apontar para milénios, para tanto não me arriscando eu) durante três ou quatro dias por ano, numa enxurrada de água barrenta depressa absorvida pela secura dos leitos. Quase sempre, para beber é preciso cavar cacimbas e rezar. Terá sido assim desde o primeiros vestígios, não havendo razão para alterações, pois se desconhece existência de falhas geológicas, vulcões, furacões ou outros fenómenos modificando bruscamente o clima ou roubando a água dos rios.] (PEPETELA, 2011, p. 227)

Ao mesmo tempo em que fornece informações ao leitor, o narrador-comentador neste último excerto, por meio da ironia, contesta as decisões tomadas por Cerveira Pereira e chama a atenção para sua capacidade de convencer o rei através de relatórios mentirosos. Vê-se ainda expressamente a valorização das culturas africanas, através da reverência feita aos poderes da Kianda, ao passo que se critica o fato de os portugueses não terem interesse em adotar os valores e tradições locais.

A desvalorização cultural – por meio da rejeição das línguas locais e imposição da língua portuguesa – e a exigência de adequação do dominado aos moldes do colonizador também podem ser vistas no excerto que segue, quando o narrador-comentador interrompe a narração que está sendo realizada em primeira pessoa por Manuel Cerveira Pereira para dirigir-se explicitamente ao leitor com a finalidade de orientá-lo sobre os signos toponímicos que estão sendo citados no enredo:

Mas, contaram os comerciantes, estavam em Calicassamba

[Aviso desinteressado aos leitores: inútil procurar os nomes num mapa, pois eles estão bem escritos, vindos todos da tradição oral e corrompidos pela péssima audição dos portugueses para as nossas línguas, nem fazem parte da paisagem há muito tempo.]

a resgatar peças e com grande apreensão, pois muito próximo era o acampamento temporário do grande jaga Imbe Kalandula, o maior de todos, reconhecido amigo do inglês. (PEPETELA, 2011, p. 41)

Saliente-se que o narrador-comentador não se limita a informações do plano real. Suas intervenções também dizem respeito ao plano da representação literária, apontando traços descritivos das personagens: [Pelos vistos, era característica da família e não nos admiremos

por Carlos Rocha também ficar dias ou semanas sem articular um som.] (PEPETELA, 2011,

p. 30); ou deixando o leitor ciente de fatos acontecidos em momento posterior ao tempo interno da narrativa:

[Andrew Battell conseguiu descer o rio Bengo sem percalços e na foz encontrou o comandante de um patacho português seu conhecido, o qual aceitou lhe dar boleia até ao reino do Loango, a norte do Kongo, onde andou por vários anos a comerciar, amealhando o suficiente para voltar ao seu país e escrever as célebres memórias. Mas isto Carlos Rocha nunca soube.] (PEPETELA, 2011, p. 103)

Como se pode perceber, esta instância narrante através de uma focalização interventiva vai veiculando informações, comentários, descrições que conduzem o leitor a deambulações reflexivas não apenas sobre o comportamento das personagens como também sobre o contexto histórico-social em que elas estão incluídas. Através dela, Pepetela com ironia e humor, introduz mais uma vez sua farpa afiada ao sistema colonial e aos seus representantes que se interessavam pela África, não por seus “ares salutíferos”, mas por causa da “árvore das patacas” que lá julgavam encontrar.