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3.5 O CARNAVAL PARA ALÉM DA PRAÇA

3.5.1 Carnavalização e o Fantástico

Vimos, então, como o fantástico se concretiza no interior da obra, com todas as características mais típicas de um texto tradicional do gênero. A ambiguidade, ou hesitação, como prefere Todorov, tem destaque nesse contexto por ser um elemento de difícil execução, sobretudo em um romance extenso como o de Verissimo, já que seu gênero mais comum é o conto. O próprio autor parecia estar ciente dessa dificuldade

quando, questionado sobre a construção fantástica de seu último romance, em uma entrevista, afirmou:

A operação é delicada como a de procurar travessar um abismo numa frágil pinguela feita de palavras e imagens. Eis uma acrobacia que o escritor deve fazer de tal modo que o leitor não perceba em nenhum momento a fragilidade da ponte ilusória ou do abismo. (VERISSIMO, 1974).

Mas a verdade é que nem mesmo essa construção tão frágil escapou do olhar ironico e paródico que percorreu toda a narrativa:

E um nobre inglês empobrecido pelos impostos de pós-guerra, a ponto de ter de abrir as portas de seu castelo ao público, como um museu com entrada paga, escreveu ao Times de Londres uma carta na qual insinuava que só um castelo inglês secular tinha direito de possuir fantasmas próprios (como era o caso seu), mas que uma pequena comunidade como Antares, perdida nos confins dum país subdesenvolvido como o Brasil, não podia de maneira alguma gozar daquela pletora de almas de outro mundo. (VERISSIMO, 1975, p. 466).

Temos nessas duas imagens, do “lorde inglês” e do “castelo gótico”, todo o imaginário do conto fantástico do século XIX remontado. É durante esse período que o gênero teve seu auge e o castelo gótico e sombrio, sem sombra de dúvidas, era um de seus elementos mais recorrentes; tal confirmação pode ser feita por Lovecraft (1973, p. 25), citado já neste trabalho, que ao descrever a “parafernália” típica do texto fantástico dá destaque ao castelo. Outro aspecto interessante, presente no trecho, refere-se à localização do evento: Brasil. Ora, sabemos que a literatura fantástica não é frequente em nossa história literária, embora, na contemporaneidade, esse quadro venha sofrendo alterações.

Segundo Murilo Gabrieli, em “O lugar do fantástico na literatura brasileira” (1990), diferentemente do que acontece nas literaturas vizinhas, no Brasil talvez apenas dois autores possam ser considerados representantes da literatura fantástica em seu sentido estrito: Murilo Rubião e José J. Veiga (GABRIELLI, 1990, p. 25). De acordo com o estudioso, isso se deve, em grande medida, ao fato de tradicionalmente estarmos conectados a uma produção em que há um predomínio da observação e da documentalidade, que seriam “inibidores das liberdades imaginativas assumida pela literatura fantástica”. De fato, há em nossa literatura – e isso pode ser percebido em qualquer antologia ou história literária – um predomínio da “observação e documentalidade” em detrimento da fantasia fantástica. No entanto, isso não quer dizer que ela não exista e muito menos que esteja fadada somente aos dois autores citados,

embora, sem sombra de dúvidas, estes sejam dois de nossos maiores nomes neste campo.

Maria Cristina Batalha (2011) não retira o problema do fantástico da produção literária, mas desloca-o também para crítica, que tradicionalmente menosprezou esse gênero no Brasil:

Do ponto de vista da nossa série literária, a presença do gênero, quase que subterrânea, pautou-se por uma produção cultural de resistência à estética realista, tomada como canônica, durante um largo período de nossa vida literária. Ao considerarmos as nossas histórias da literatura e antologias, damo-nos conta de que, de um modo geral, o fantástico foi muito pouco examinado e frequentemente subestminado pelos críticos e praticantes da literatura em nosso país, que manifestavam uma propensão majoritária para a literatura documental, voltada para a consolidação de uma concepção substancialista da nacionalidade. (BATALHA, 2011, p. 11).

Não há dúvida de que o gosto pela documentalidade tenha sido um dos “empecilhos” para o fantástico no Brasil. Todavia, a questão que surge é: não há, de fato, uma produção fantástica considerável ou essa produção recebeu novas cores, adaptando-se à realidade do país? Na nossa opinião, o fantástico aqui jamais poderia receber as mesmas cores do fantástico tradicional, europeu, dado que houve todo um processo de transplantação e adaptação de modelos literários europeus para o Brasil. Em grande medida é o que coloca em discussão Erico Verissimo, com a ironia do trecho apresentado.

É dessa forma que ele, então, parodia o fantástico, buscando seguir as “regras” e até a linguagem, em determinados momentos, do fantástico tradicional, mas ao mesmo tempo rindo delas:

A brônzea voz do sino de nossa matriz chamava os fiéis para a missa das sete quando os sete mortos, em sinistra formatura, desceram sobre a cidade, ao longo da popular Rua Voluntários da Pátria, semeando o susto, o pavor e o pânico. Pareciam – segundo o depoimento de várias pessoas idôneas ouvidas pelo nosso repórter – figuras egressas dum grotesco museu de cera. [...] Causou estranheza o fato de seus corpos não produzirem nenhuma sombra. Não foram poucos os cidadãos antarenses que recusaram dar crédito ao que viam, julgando-se vítimas duma alucinação. Mortos ressurrectos? Fantasmas? Era incrível! Pavoroso! Algo de inédito não só nos anais desta comuna como também nos da Humanidade! E aquilo acontecia na nossa querida e pacata Antares! Éramos, entretanto, obrigados a dar crédito a pelo menos três de nossos sentidos – o da visão, o da audição e o do olfato – já que nada podíamos dizer dos dois restantes, pois ninguém havia tocado os corpos daqueles mortos ambulantes e muito menos – perdoe-se-me a brutal alusão – provado de suas carnes putrefatas. E mesmo agora, passada a crise, ao escrever as presentes linhas, este jornalista ainda se pergunta se tudo não foi apenas um sonho mau sofrido por toda uma população, ou, antes, um pesadelo que oprimiu nossa cidade como uma nuvem de escuro chumbo.(VERISSIMO, 1975, p. 258-259).

[...]

Olha para o papel em branco. Desenha cuidadosamente o título: A TRAGÉDIA DE ANTARES. Ou seria melhor A MORTE EM ANTARES?

Acha que OS MORTOS NO CORETO DA PRAÇA tem mais sabor literário e um quê de novela fantástica. (VERISSIMO, 1975, p. 407).

Temos no primeiro trecho, tal qual classifica o narrador do romance, a “prosa barroca” do jornalista Lucas Faia, um dos únicos a narrar o incidente por escrito. Através do texto do jornalista pedante, Verissimo consegue mais uma vez remontar ao clássico conto fantástico, por meio da linguagem, dos questionamentos e das reações expressas por Faia: “Causou estranheza”; “Mortos ressurectos? Fantasmas? Era incrível! Pavoroso!”; “este jornalista ainda se pergunta se tudo não foi apenas um sonho”. Resolve também com esse texto, como vimos, a questão do narrador em primeira pessoa, que tem a função de questionar e duvidar dos eventos insólitos. No entanto, ao colocar como narrador oficial da “novela fantástica” a figura ridicularizada do jornalista, que é conhecido por seu pedantismo e malandragem, transforma esse texto em motivo de riso e, por conseguinte, ridiculariza o próprio evento fantástico e a obra. Isso fica claro no trecho em que personagens, frequentadores do bar Kafka, discutem sobre o evento insólito:

[...] a coisa toda não passou de uma paródia dum conto gótico... Antares é um caso perdido. Podendo ter sido cenário duma novela kafkiana de boa qualidade, contentou-se com um Edgar Poe de terceira ordem. (VERISSIMO, 1975, p. 454).

O conto fantástico tradicional ou de terror, remontado na figura de Poe, é colocado pelos personagens como obsoleto, sendo a narrativa kafkiana um exemplo de fantástico modernizante. Entretanto, não é o que ocorre em Antares e não é a escolha do próprio Verissimo – assim como também não o foi, e o próprio autor fazia questão de frisar, o realismo mágico hispano-americano. A inadequação do fantástico tradicional no contexto brasileiro permite que o autor carnavalize, por meio da paródia, esse gênero, já que, em um contexto de violência e repressão, em um país com uma história de corrupção e desigualdade, o medo não está – e nem poderia – nos monstros, vampiros ou zumbis, mas na própria realidade.

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