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3.5 O CARNAVAL PARA ALÉM DA PRAÇA

3.5.2 Carnavalização e religião

Outro aspecto que não escapa ao satirista que, nas palavras do próprio autor, tomou conta de Verissimo em Incidente em Antares é a religião. Vimos já dois exemplos em que, de alguma maneira, já antecipamos essa discussão. Na cena de Quitéria

Campolargo despertando da morte, o riso é construído pelo fato da dama de Antares confundir a luz da lanterna do profanador de túmulos com a luz divina e entregar sua alma a Deus. Na cena de Acácia, a faixineira que tem em Getúlio Vargas, literalmente, um santo, temos o efeito de riso em seu sincretismo religioso, já que suas crenças abarcam qualquer espécie de culto, inclusive de filosofias opostas.

Ao ler Incidente em Antares, não é tarefa difícil construir relações entre o romance e a bíblia. A própria temática da morte, como sabemos, tem grande destaque no livro sagrado. A ressurreição dos mortos, como é o caso de Lázaro e de Jesus no Novo Testamento, sempre é acompanhada de um sentimento de esperança e triunfo, mas mesmo no Antigo Testamento ela se faz presente e traz consigo também o significado de esclarecimento, da vitória da “luz” contra as “trevas”:

Mas teus mortos hão de reviver e seus cadáveres se levantarão. Os que dormem no pó vão acordar e cantar, pois o teu orvalho é um orvalho de luz, e a terra das sobras te dará luz. (BÍBLIA SAGRADA, 1990, p. 970).

É esse sentido que é retomado no Apocalipse de São João, em que a morte e ressurreição voltam a ter destaque e se relacionam diretamente com o julgamento final. E esta talvez seja a imagem bíblica mais recorrente e explícita no romance, o juízo final, que é proclamado pelo próprio pároco, Pe. Gerôncio, com a volta dos sete mortos:

Estacou, traçou no ar um sinal da cruz na direção dos mortos, abriu a boca para dizer alguma coisa mas seus lábios começaram a tremer e deles não saiu o menor som. O vigário caiu de joelhos, pálido de horror, ambas as mãos sugurando o peito. [...] Ao recobrar a voz, o padre acercou-se do microfone, ergueu os braços e bradou: “Sete mortos acabam de ressuscitar e sair de seus caixões. É o Juízo Final! Deus Todo-Poderoso vai começar o julgamneto dos vivos e dos mortos. Arrependei-vos de vossos pecados enquanto é tempo! Ó senhor, tende piedade de nós. Oremos! Oremos! Todos de joelhos. Oremos”. (VERISSIMO, 1975, p. 261).

Ao introduzir na obra a imagem do juízo final, o autor recorre ao imaginário religioso cristão da bíblia e do Apocalipse de São João. O Apocalipse é um livro “de compreensão difícil, porque o autor faz largo uso de imagens, símbolos, figuras e números misteriosos” (BÍBLIA SAGRADA, 1990, p.1589). Um dos números de maior destaque no livro é o número sete:

No dia do Senhor, o Espírito tomou conta de mim. E atrás de mim ouvi uma voz forte como trombeta que dizia: « Escreva num livro tudo o que você está vendo. Depois mande para as sete igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélia e Laodicéia ». (BÍBLIA SAGRADA, 1990, p. 1590, grifo nosso).

Sete são os espíritos que estão diante de Deus na visão de São João, sete são as igrejas, sete são os selos que devem ser abertos, sete são os candelabros de ouro e sete são as estrelas na mão do “filho do Homem”:

No meio dos candelabros estava alguém: parecia um filho de Homem [...] na mão direita ele tinha sete estrelas de sua boca saía uma espada afiada, de dois cortes, seu rosto era como um sol brilhante do meio dia. (BÍBLIA SAGRADA, 1990, p. 1591).

Sete também são os mortos da praça de Antares, assim como seu dobro, quatorze, são os homens por eles destronados no sol do meio-dia. A palavra apocalipse, como também apontou Tânia Pellegrini (1996, p. 105), significa “revelação”; é o julgamento final e universal em que os reis, os vícios e as corrupções são destronados. Movimento semelhante ao causado pelos mortos de Antares, que se intensifica ainda mais se considerarmos que o livro sagrado

nasce dentro de uma situação difícil: o povo de Deus está sendo oprimido, perseguido e vigiado pelas estruturas de poder. Em tais circunstâncias não se pode falar principalmente porque o autor pretende mostrar a situação real e traçar uma estratégia de resistência e ação. (BÍBLIA SAGRADA, 1990, p. 1589).

Mas o “juízo final” de Antares é desconstruído logo no princípio, “A troco de quê Deus havia de começar o Juízo Final logo nesse cafundó onde Judas perdeu as botas?” (VERISSIMO, 1975, p. 02). E ao invés de causar o arrependimento dos fiéis, traz consigo a histeria:

O clamor então foi geral. Mulheres romperam a gritar, algumas rojaram-se ao chão e rolaram em ataques histéricos, uma delas rasgou as próprias vestes, ficando seminua e escabelada. Não poucas foram as que desfaleceram. Muitos homens choravam, ao passo que uns poucos, os mais calmos, tentavam, mas em vão, por alguma ordem naquela pandemônio, se é que se pode usar esta palavra em se tratando dum templo católico. [...] Muitas pessoas encaminhavam-se para o confessionário, onde a presença do Pe. Gerôncio foi exigida, primeiro com calma e depois aos gritos. E no afã de disputarem um lugar na fila dos que queriam confessar-se, as pessoas acotovelavam-se, empurravam-se e dois homens chegaram a atracar-se aos socos e rolaram pelo chão, agarrados em uma luta que parecia de morte. (VERISSIMO, 1975, p. 261-262).

Dessa forma, os fiéis são colocados em uma posição de ridículo, berram, lutam e brigam pela salvação, como se esta fosse um produto a ser fornecido pelo padre por meio da confissão. O próprio Pe. Gerôncio, passado algum tempo do evento, se envergonha de seu comportamento e de seus fiéis durante o episódio. Carnavalizado, o juízo final de Antares também tem seu julgamento, mas não é executado por Deus nem pelos anjos, mas sim pelos mortos do coreto. Assim como no apocalipse bíblico os

“reis” são destronados, mas diferentemente da escritura sagrada, não há triunfo, já que pouco tempo depois voltam a reinar novamente. Há ainda a ser mencionada a referência a cidade da Babilônia, que na Bíblia tem grande destaque e, no Apocalispe de São João, uma das profecias prevê a destruição desse grande império. No romance, Babilônia não é um império, mas um bairro pobre e marginalizado de Antares, que já encontra-se destruído pelo descaso e pela própria engrenagem político-social que impera na cidade.

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