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Carpinteiros x grandes literatos

No documento raquelbarrososilva (páginas 158-161)

4. NACIONAL OU LIGEIRO?

4.1 FRÁGEIS DICOTOMIAS TEATRAIS

4.1.2 Carpinteiros x grandes literatos

Aqui chegamos a um segundo ponto importante a ser considerado, ao pensarmos no sentido do termo “teatro nacional”, a partir do final da década de 1860: a diferenciação entre o “teatro nacional” dos grandes literatos e o “teatro nacional” dos carpinteiros teatrais (SOUZA, 2010). Existia um preconceito contra a produção teatral dos chamados carpinteiros, não apenas por parte da elite letrada, mas também por parte

dos próprios “carpinteiros” que não reivindicavam para si o título de escritor nacional. Podemos identificar essa diferenciação sócio-intelectual marcada entre um e outro grupo, produtores de literatura dramática, mesmo nas manifestações de elogio e incentivo às composições que não saíam da pena de grandes literatos, como o drama A

Honra de um Taverneiro, de Francisco Corrêa Vasques.

[...] consta-nos que este [o conservatório] abundou em elogios acerca de um novo original do Sr. Vasques, e que vai à cena hoje na Phenix Dramática. [...] Em menos de um mês deram-nos os teatros duas produções originais, esta do Sr. Vasques, e a Mulher que perde e mulher que salva, da Sra. Velluti. Continuem ambos e não imitem a indolência de nossos dramaturgos 43.

Noticiando a boa recepção que o drama de Vasques recebeu do conservatório dramático, o artigo deixa claro que ele, assim como a peça Mulher que perde mulher

que salva, de Maria Velutti (atriz e escritora), não foram escritos por nossos

dramaturgos, que são “indolentes” em relação ao estado do nosso teatro. Mas por que Vasques e Velluti não eram assim considerados? Para tentarmos compreender a exclusão dos atores-escritores do rol de "nossos dramaturgos", pensemos em suas produções literárias.

O critério para a definição do que seria um dramaturgo em oposição a carpinteiros como Vasques e Velutti, certamente não era o da regularidade ou quantidade da produção de peças de teatro. Numericamente, a produção teatral de Vasques, cinquenta e cinco peças, entre as quais trinta e seis são cenas cômicas (MARZANO, 2008), era bem maior que a de grandes nomes da literatura dramática do período, como Joaquim Manoel de Macedo, que escreveu um total de dezessete peças (MACEDO, 1863. I, II, III; MAGALDI, 1997), e José de Alencar, autor de sete peças teatrais (FARIA, 1987), apenas para citarmos dois exemplos. Também não podemos defini-los como carpinteiros pelo fato de esses autores não terem sido exclusivamente escritores. Se, por um lado, Maria Velluci e Vasques dividiam-se entre a criação de textos e os palcos, a maioria de nossos “dramaturgos” também dividia-se entre a produção letrada e outros ofícios como foi o caso de França Junior, Machado de Assis e José de Alencar. Mas que tipo de ofício esses homens desempenhavam paralelamente ao de escritores? França Junior, Machado de Assis e José de Alencar eram também funcionários públicos, o que lhes colocava em um lugar social superior ao de ator. Essa é uma das chaves para a compreensão da diferenciação entre carpinteiros teatrais e

dramaturgos. Além disso, Vasques e Velluti, diferentemente dos outros autores que acabamos de citar, não eram provenientes dos bancos das academias, e nem portadores de uma tradição no mundo das letras.

Dessa forma, podemos afirmar que essa oposição evidenciada no meio teatral, especialmente a partir da década de 1860; remete, em última instância, a um incômodo causado pelo extrapolamento de fronteiras sociais por parte dos chamados carpinteiros teatrais 44. A interferência desses atores, atrizes e mesmo de alguns jornalistas satíricos, como Augusto de Castro, na dramaturgia não era bem vista pela elite letrada formadora de opinião, pois alterava um projeto de nação pautado no modelo civilizacional europeu. Esse projeto de civilização não havia sido concretizado nem mesmo na Europa, como admitem raros artigos, a exemplo do que foi citado no início deste capítulo - assinado por V.H. no Diário do Rio de Janeiro 45 - ou do que relata as impressões sobre a

conferência de Ernesto Rossi 46. Podemos, assim, perceber que parte da opinião pública reconhecia que o fenômeno ligeiro não foi exclusividade do Brasil.

Nas trocas culturais feitas em “circularidade” (GINZBURG, 1987) entre os diferentes grupos que compunham a sociedade, são nítidas as resistências impostas por parte de uma pretensa elite cultural urbana em aceitar a perda de controle de suas criações – o que se deu, por exemplo, a cada vez que uma ópera se transformou em opereta e, por fim, esta deu pretexto a uma paródia. A resistência também se manifestou quando as criações (ou recriações) culturais populares invadiram os espaços mais distintos, redutos das respeitadas famílias do high life carioca 47, ou que deveriam sê- los.

A música de Offenbach passou da cena para a praça pública, assobiada pelo garoto, tangida pela rabeca desgrudada do carcamano, e introduzida a princípio como um contrabando no seio das famílias, foi aceita finalmente em os nossos salões aristocráticos, disfarçada em polcas, valsas e quadrilhas. [...]

A febre tem durado mais do que pensávamos, e é tempo de se opor um paradeiro a esses tristes desmandos, que tanto depõem contra a nossa civilização 48.

44 O historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira (PEREIRA, 2000) observou o mesmo incomodo

quando, décadas depois do contexto em questão, o futebol, usado como símbolo de distinção social, começou a ter sua prática disseminada pelos subúrbios cariocas, que, por sua vez, começaram a ocupar espaço nas arquibancadas – ou nos morros no entorno dos estádios – com uma torcida menos polida e mais apaixonada do que se desejava.

45 A ARTE dramática. Publicações a pedido. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ed.78, p. 2. 20

mar. 1869.

46

NOTICIÁRIO. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ed.189, p.1. 10 jul.1871.

47

A expressão é usada por França Junior em seus folhetins.

Como uma erva daninha, o teatro ligeiro, uma vez enraizado, lançava seus ramos nos distintos salões da elite urbana que, a contragosto, a elite cultural, dançava, divertia- se e comparecia às apresentações. As polcas, quadrilhas e valsas que compunham as mágicas, dramas fantásticos e aparatosos que ocupavam os teatros possuíam suas partituras vendidas separademante e anunciadas diariamente nos jornais, especialmente a partir da década de 1870. Isso facilitava a “entrada” do teatro ligeiro nos salões e nas aulas de música das meninas prendadas que se preparavam para serem boas esposas; aprendendo, por exemplo, as polcas para piano “Sim, avozinha” e “Cruzes, minha sogra”, da peça aparatosa A filha do Ar 49

, compradas na loja de músicas, pianos e águas minerais da Viúva Canongia, na Rua do Ouvidor 50. Para citarmos mais alguns exemplos desse aquecido comércio de partituras das músicas produzidas para o teatro ligeiro, em 1872, quando Fausto (um drama aparatoso) se apresentava no Phenix, partituras da música original de Henrique de Mesquita foram logo anunciadas no Jornal

do Comércio: “Faustino, quadrilha pelo maestro Henrique de Mesquita, sobre os

motivos do Fausto, que se representa no teatro da Phenix” 51

. Em 1875, encontramos uma “elétrica polca lundu para piano” 52

do “sucesso espantoso, Que é da chave!” 53, “que tanto furor está fazendo no teatro da Phenix” 54

. Para desgosto daqueles que viam no teatro ligeiro, e especialmente nas mágicas, o fim definitivo de um “teatro nacional”, Vanda Bellard Freire afirma que “a indústria de música impressa para o uso doméstico tinha nas mágicas [...] um rico manancial” (FREIRE, 2011) 55.

No documento raquelbarrososilva (páginas 158-161)