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CARTÃO-POSTAL: UM TEXTO-IMAGEM A DECIFRAR

No documento O labor criativo na pesquisa (páginas 100-104)

INVESTIGANDO CARTÕES-POSTAIS

CARTÃO-POSTAL: UM TEXTO-IMAGEM A DECIFRAR

Os cartões-postais, como um dos exemplos mais significati- vos de representação iconográfica de cidades, parecem corroborar

19 Trata-se do arquivista cearense Miguel Ângelo de Azevedo, conhecido por Nirez, proprie-

tário de uma vasta coleção de discos, livros, postais e fotos considerados expressivos da “memória de Fortaleza”. Todos os postais apresentados neste texto fazem parte do seu acervo.

com a ideia de que uma imagem vale mais do que mil palavras. Na condição de alusivos a uma totalidade, funcionam como imagem- -síntese do espaço urbano, ou cena reproduzida em série, transfor- mando locais ou monumentos em suportes de narrativas.

As considerações de Walter Benjamin sobre a existência de textos, folhetos, brochuras e cartazes, como materiais indicativos ou pistas que caracterizam a feição estrutural de uma cidade, constituem fontes de inspiração na observação dos postais. Mesmo desencan- tado com o potencial desaparecimento da narrativa, em um mundo de rápidas transformações, lideradas pelo mercado das trocas, Ben- jamin não cessou de procurar nas cidades sinais expressivos de uma totalidade histórica, a exemplo das alegorias e “passagens parisien- ses” como representação arquitetônica do traçado urbano moderno.

Em um mundo atravessado pelo comércio de imagens, os pos- tais podem também constituir alegorias de espaços urbanos, cor- roborando com o princípio da construção da imagem como mer- cadoria. Para além de uma função original utilitária, referente ao exercício da correspondência, os postais são indicações de cenas especiais da cidade, ou seja, mostras que funcionam como meto- nímias – o recorte que pretende exprimir uma totalidade urbana. Como apreendê-los, do ponto de vista sociológico, constituiu o de- safio metodológico inicial que deu suporte a este artigo.

Os postais constituem, em princípio, imagens retiradas de um cenário social, comungando com a fotografia, uma dimensão “real” do objeto apresentado (BARTHES, 1990). Mesmo que o colorido e o teor estético tendam a dar um realce impressionista ao visual, exercendo a condição de propaganda, a imagem apresentada cor- responde a um espaço urbano efetivo. Os postais fazem parte do circuito de memórias que buscam indicar uma valorização da ci- dade pelo recorte de cenários considerados representativos. É nessa perspectiva que esses registros visuais podem ser abordados como “textos” a serem decompostos, observando-se sua forma de edição, seu conteúdo e a sua historicidade, associados a processos urbanos e interesses econômicos e políticos.

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A imagem focalizada nos postais, ao tornar-se fruto de uma escolha arbitrária, suscita a mesma questão feita por Bourdieu (1982) a respeito da fotografia: por que determinados tipos de registro tor- nam-se legítimos em detrimento de outros? Adequando a questão para o objeto em pauta: que espaços ou objetos são dignos de um postal? Ou ainda, que objetos ou locais possuem a capacidade de representar a cidade? Por que esses e não outros? E, ainda, quem define o que tem tal capacidade e com base em quais critérios o faz?

Imagens recorrentes utilizadas ao longo do tempo, tais como edificações, praças e ruas, constituem uma “linguagem universal” desses materiais visuais. Em princípio, a matéria do postal é me- nos voltada para apresentação de pessoas, conferindo prioridade a espaços, abertos ou focalizados em monumentos. A valorização do ambiente urbano supõe a cidade como cenário estético, semelhante à pintura de um quadro, invertendo o sentido da fotografia, que toma como registro preponderante a presença de pessoas.

Os postais também anunciam “marcas” ou ícones de cidades. Imagens tomadas do alto sinalizam a verticalização de metrópoles, di- ferenciando-se de outras caracterizadas pela preservação de espaços verdes e edificações históricas. Os materiais visuais, nesse sentido, são objeto de valorização estética, pela qual cada cidade se dá a conhecer.

Por esse motivo, o postal é indicador do “bom uso” da ci- dade, sendo dele excluídos os “contra-usos” (LEITE, 2004), isto é, as paisagens degradadas, ou as restrições geográficas que tensio- nam a ideia positiva de cidade a ser difundida. Exceção de locais em processo de destruição ocorre quando é possível associar a imagem com a “história”, transformando-a em ruína.

Assim, favelas circundantes a locais nobres, ou zonas de baixa conservação usualmente não fazem parte do acervo de pos- tais. Mesmo que inspirações artísticas, evocações humorísticas e “apropriação do típico” invertam essa ordem de registro, as imagens emitidas nos postais constituem um marketing da cidade. Não por acaso, utiliza-se a metáfora da “cidade que parece um cartão-pos- tal”, o Rio de Janeiro, em referência à especificidade estética de um

cenário urbano evocado de modo recorrente. Como testemunhos da beleza, os postais realizam o pacto da imagem idealizada de cidade.

As imagens apresentadas em postais são geralmente “paca- tas” e “resolvidas”, no sentido de omissão das tensões urbanas. Na medida em que os cenários visuais estão fortemente conectados ao circuito da propaganda, funcionam como emblema da cidade idea- lizada. Novas edificações, por exemplo, são apresentadas como “re- sultado” de uma intervenção bem-sucedida, indiferente a eventuais conflitos e processos de destruição do cenário anterior. Na mesma perspectiva, exposições de postais em eventos instituídos em nome do patrimônio são reveladoras de um pendor pelo passado, contendo imagens da “história da cidade” sugestivas de um sentido de “evo- lução” naturalizada de processos de transformação espacial. É sob o marco de um “crescimento urbano” que os postais instituem uma cronologia da cidade, apontando o fato como sinalização de um movimento linear.

Os cartões-postais podem, em princípio, ser considerados ícones da cidade. Nessa condição, buscam informar a visitantes e moradores singularidades especiais e identidades urbanas por meio de paisagens, artesanatos, monumentos e edificações diversas. A existência de postais, por outro lado, encontra-se inseparável da vida moderna e das articulações entre turismo e consumo visual, questões assinaladas por Urry e Crawshaw, 1995), referindo- se à forma como visitantes exercitam o olhar como parte significativa da experiência de conhecimento de cidades. As reflexões do autor, mais voltadas para entender o papel da fotografia na memória de viajan- tes, podem servir de referência para o significado dos postais como fonte de conhecimento e produção de memória.

Uma rápida enquete feita com alunos do curso de sociologia urbana,20 sobre o significado de postais, trouxe elementos para refle-

20 Disciplina ministrada pela autora, no Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal

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xão acerca do uso desse veículo como forma de sociabilidade, recor- dação ou testemunho de viagens:

“O cartão identifica a cidade, chama atenção para coisas que outras cidades não têm”.

“Acho que o cartão-postal, como o artesanato, é uma lem- brança da cidade”.

“Quando estou em outra cidade, costumo mandar cartões para amigos, para compartilhar experiência. Às vezes, compro os cartões e trago comigo, quando não há tempo de enviar. Às ve- zes, compro só para guardar”.

Observa-se, portanto, uma plasticidade no uso dos postais, aliando funções de comunicação pessoal com a difusão de percep- ções da cidade e imaginários urbanos. Os postais põem também em evidência espaços legitimados, que reforçam investimentos aliados a interesses comerciais e ação de gestores públicos. Prédios que sediam serviços governamentais e atividades comerciais, situados no centro da cidade, tornam-se exemplos de apresentação de uma região político-administrativa. Também ideais de progresso e em- belezamento informam um conjunto de registros visuais, realçando locais frequentados pela elite. No contexto de observação dos pos- tais como fonte de narrativas, torna-se importante verificar o que foi digno de registro, exprimindo a apresentação de cidades segundo a estética urbana de uma época.

Uma reflexão sobre os postais como fonte de lembranças e memória da cidade torna-se interessante para se pensar sobre a rela- ção entre processos sociais e imaginários urbanos.

No documento O labor criativo na pesquisa (páginas 100-104)