• Nenhum resultado encontrado

ESCUTAR OBJETOS

No documento O labor criativo na pesquisa (páginas 34-38)

EXPERIÊNCIAS DIDÁTICAS

ESCUTAR OBJETOS

Solicitamos aos alunos que expusessem, oralmente, em sala de aula, seus objetos de investigação, atentando para a clareza de ideias e possibilidade de pensar coletivamente “o que cada um gos- taria de pesquisar”. Isto se transformou em uma das experiências mais significativas da disciplina. Na medida em que apresentavam suas propostas e se viam diante de perguntas de esclarecimento, os alunos constatavam o quanto determinadas ideias precisavam ser amadurecidas, tanto na fala quanto na escrita. Nossa ideia é que eles incorporassem para si o princípio de autoria, fazendo com que as escolhas tivessem consequência sobre a compreensão clara do que queriam eleger como prioritário, dentro das formas sociológicas ou antropológicas de fazer pesquisa.

Precisar a historicidade do objeto, as formas de observação e as questões envolvidas no tratamento do mesmo significava tanto o respeito ao desejo de pesquisa de cada um, como indicava a res- ponsabilidade subjacente às escolhas. Nesse processo, ficava clara a não separação entre teoria e metodologia, assim como as possí- veis chaves de leitura para analisar o que estava sendo considerado como “problema”. A separação entre problema social e problema sociológico tornava-se exemplar, no momento em que a exposição das questões deixava emergir os discursos construídos sobre o tema provenientes de instituições, meios de comunicação e outros lu- gares de enunciação. Expor o tema de pesquisa era uma forma de explicitar as questões nele envolvidas que impunham a cada aluno

um tratamento diferenciado do que é visto socialmente como “pro- blema”. Nessa direção, textos teóricos como o de Remi Lenoir7 ad-

quiriam sentido para as diferentes experiências ou propostas. Aliás, a perspectiva fundamental da disciplina era a de não anteceder a “teoria” ou a “metodologia” aos objetos, de modo a introjetar a fei- tura dos mesmos como processo artesanal, montado com base em “idas e vindas”.

Em quase todas as ocasiões de exposição, nas quais o aluno lia em voz alta a descrição do objeto e as maneiras de realizar o processo de investigação, ficavam claros para o autor os impasses ou caminhos a percorrer. A prática de escuta operava de forma co- letiva e individual, de modo que os impasses referentes a um tema repercutiam diferentemente, na ampliação da clareza, praticidade e, sobretudo, opção de cada autor. Considerando que as teses serão necessariamente avaliadas, reforçar o sentido de autoria tornou cada investigador ciente da tarefa sociológica de “criar” objetos sem aban- donar, evidentemente, os caminhos trilhados por outra investigações. A exposição também tornava conectados os processos de deli- mitação do tema, a bibliografia utilizada, as categorias operacionais, as delimitações temporais, enfim os procedimentos comumente ado- tados em projetos para seleção que, na verdade, possuem mais o dom do protocolo a ser seguido do que aquilo que é efetivamente realizado na pesquisa.

A possibilidade de desconstrução dos objetos passava, as- sim, por uma análise crítica dos projetos apresentados no exame de seleção feito pelo Programa de Pós-graduação. Sem dúvida, o projeto era ponto de partida, mas ficava evidente que havia muito ainda a ser efetivado no que poderia ser denominado por caminhos da investigação.

Em muitas ocasiões, ficava também claro para o próprio expo- sitor o que ele não gostaria de fazer em sua tese, sendo essa uma pri-

7 LENOIR, Remi. Objeto sociológico e problema social. In: CHAMPAGNE, Patrick; RENOIR,

O LABOR CRIATIVO NA PESQUISA: experiências de ensino e investigação em Ciências Sociais 35

meira elucidação, baseada na exclusão de opções. A linguagem utili- zada para falar sobre os objetos era também oportunidade de escuta. Assim, expressões normativas ou nativas tais como “ausência do estado”, para referir-se à carência de políticas públicas ou “falta de percepção comercial”, para mencionar as formas não hegemônicas de troca econômica, entre outras, geravam tema de reflexão e opor- tunidade de esclarecer em que a perspectiva sociológica ou antropo- lógica distanciava-se das formas usuais de descrição das questões.

A elucidação da proposta implicava também a explicitação dos não ditos ou implícitos da pesquisa, um “inconsciente” que cada exposição trazia em sua forma de apresentação. Assim, a vontade de não repetir a investigação anterior, baseada no princípio de origi- nalidade que cada tema supõe, muitas vezes, fazia com que os alu- nos evitassem falar no objeto da dissertação ou buscassem afirmar diferenças nem sempre evidentes da tese de doutorado. A trajetória dos assuntos pesquisados era, assim, uma oportunidade de deixar claro, para cada autor, as escolhas e os percursos nela envolvidos. A relação com outros temas convergentes era também outro ponto im- portante de reflexão. A ideia de que o objeto já havia sido pesquisado por outros, inscrevendo-se, portanto, em uma linhagem comumente tratada por “revisão bibliográfica” era também o momento de traba- lhar com o sentido de autoria sem a perspectiva da exclusiva origina- lidade. Dialogar com autores, sobretudo colegas do mesmo nível, re- cuperava o sentido da pesquisa como acumulação do conhecimento.

Uma articulação entre o “desejo” de cada pesquisador e as possibilidades científicas de elucidação dos processos de pesquisa permeou o conjunto das apresentações.

O fato de todos os alunos apresentarem, mais de uma vez, seu objeto de investigação e metodologia por meio de textos escritos que eram lidos por todos e debatidos viabilizou um sentido de amadu- recimento. O princípio de artesanato vigorou muito bem no espaço desse laboratório de experimentação.

Considerando o conjunto de disciplinas ministradas citadas até aqui, pode-se dizer que elas tiveram em comum a apresentação

das múltiplas possibilidades de investigação, suscitando também o recurso de fontes que serão abordadas nos escritos a seguir.

No documento O labor criativo na pesquisa (páginas 34-38)