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UM COMPLEXO MONÁSTICO URBANO E OS SEUS TEMPOS

1 AVE WIAR1A GRATIA PLENA

11. O cartório

Finalmente o Cartório, em parte incerta. Mas existiu, quanto mais não seja porque havia uma cela de nome "cela ao pé do Cartório", o que nos leva a crer que este se situava no piso do sobreclaustro. Todos os mosteiros e conventos o tiveram e os masculinos acumularam-no com o "Scriptorio". Esta última divisão da casa comum era indispensável nas congregações beneditinas, a quem devemos os mais belos códices medievais, ornados do ouro das iluminuras, verdadeiras obras de arte saídas das mãos dos monges copistas, iluministas. O Cartório era algo menos exigente em termos de localização (boa exposição à luz solar), mas não de somenos importância por reunir e preservar toda a história económica e artística do cenóbio, e também, como em Avé Maria, funcionar como uma Torre do Tombo, pois ali se guardaram os vestígios de quase todos os mosteiros anexados que lhe deram origem e remontavam aos alvores da nacionalidade, como outros documentos referentes a demarcações e toponímias velhíssimas385. Requeria, não um local de luminosidade privilegiada, mas com a suficiente luz para a leitura e escrita, e sobretudo isenção de humidade. Não parece que no mosteiro do Porto isso se tenha verificado, não só porque todo o edifício era húmido (no dizer do cronista), mas e sobretudo pelo testemunho de João Pedro Ribeiro, que o terá conhecido em 1791, como a outros, na sua inspecção aos arquivos e que o descreve como um lugar degradado e sem qualquer conservação capaz: " Conservava um grande número de documentos antigos e interessantes, porém todos a montão e sem ordem alguma. Grande parte dos mesmos documentos se acham danificados pelos lavatórios de çumarge e galha, com que procuravam avivar a letra; e os puzeram em pior estado386". Podemos confirmar

pessoalmente esta última parte, porquanto, no decorrer das nossas deambulações pelos arquivos, deparámo? com códices (sobretudo os dos Prazos) em que muitas das folhas tinham sido escurecidas por aquela tinta simpática387. Quanto à propalada desarrumação e desordem, talvez o caso do pedido de cópia, em 1776, do decreto da fundação a ilustre. No entanto, o arquivo nacional não pôde satisfazer tal solicitação388 (também não primava pela organização?), mas em 1687 tinha sido capaz de emitir a certidão requerida, de confirmação de doações e de privilégios.

384 Cerimonial da Congregação dos Monges Negros , pp. 175/177.

385 Refere-se isto a uma nota de MAGALHÃES-BASTO, Artur de, Sumário de Antiguidades. Porto, 1963, p. 14.

386 CRUZ, António, Alguns Documentos Medievais do cartório de São Bento de Avé Maria, Bol. CMP, Porto, 1945,pp.6/7.

387 Substâncias usadas para a escrita mas só perceptíveis quando em presença de um produto reagente.

Os documentos mais antigos ali encontrados diziam respeito ao mosteiro de Tarouquela (século XI), mas também albergava alguns do mosteiro masculino de Couto de Cucujães. Do mosteiro de Tuias apenas um, pois- consta que as irmãzinhas terão ateado fogo ao seu Cartório em sinal de protesto pela incorporação forçada. Aquele escapou, por não estar de momento portas a dentro No entanto, os livros fundamentais em qualquer mosteiro e guardadas com todo o desvelo e em boa ordem eram os referentes às contas. As Constituições Beneditinas de 1590 apenas têm a preocupação de "exigir" às comunidades que de "biblioteca" tenham "... hum livro grande, com titulo que diga. Livro de deposito: em principio deste livro estarão por ordem as igrejas que cada casa tiver anexas asi e o que huns annos por outros rende cada hûa e como forem pagando os rendeiros...". Outro, o "Recebedor", e sobre este um relato pormenorizado da maneira como tudo deve ser assente, incluindo a existência de um índice numerado. Além destes dois, um para controlo das obrigações religiosas e suas despesas, chamado o da "Sancristia". O quarto volume fundamental onde se lançavam todas as despesas era o das "Offícinas" e sujeito a inventário no final de cada triénio. A falta deles dava direito a castigo dos Prelados, por parte dos Visitadores390 Por ocasião da visita que João Pedro Ribeiro fez aos cartórios do Porto mandou transferir para Lisboa os documentos do cartório de Santa Clara, pertencentes ao convento de Entre-os-Rios (fundido naquele) e também os pertencentes aos cenóbios anexados ao mosteiro de São Bento de Avé Maria. Começara em finais do século XVIII (1791) o arresto do património monástico. Em 1853/54, Alexandre Herculano recolheu os registos anteriores a 1279. A Portaria de 11 de Setembro de 1857 ditou a incorporação do resto do Cartório, por indicação da Academia Real das Ciências e, apesar do protesto das religiosas, a ordem de 15 de Julho de 1858 obrigou-as à sua entrega, ao comissário da Academia, Augusto Soromenho, que prometia devolvê-los logo que analisados e copiados, para o que passou recibo num total de 491 documentos, referentes aos séculos XI e XIV. Porfiados foram os pedidos de devolução, mas inúteis. Ontem como hoje, passa o tempo e fica o cansaço.

O senhor Lino de Assumpção, no dia 21 de Maio de 1892, ficou encarregado do resto do espólio escrito e documental. O cartório era vasto, rico e resistente! Mas nunca saberemos onde se situou. Na torre da Igreja, como em Lorvão e em Saint Gall? Quanto à biblioteca, parece ter-se resumido a um armário defronte da cela da abadessa, onde os livros partilhavam o sossego com cilícios e

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389 CRUZ, António, o .c. . Posteriormente, José Matoso encontrou mais documentos no cartório de Arouca; Santa Mafalda, que ali viveu e morreu, era senhora do mosteiro de Tuias. TAVARES, Fernão, Mosteiro de São Bento da Avé

Maria na memória do património perdido, in O Tripeiro, Setembro/Outubro, Porto, 1983, pp.240/243.

390 Constituições da Ordem de Sam Bento destes Reynos de Portugal, Lisboa, 1590, pp.85/88. 391 ASSUMPÇÃO, Lino, o.c, p. 150.