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Meu querido Mestre

Recebi hontem, 2ª feira, o seu postal e se não escrevi immediatamente foi por não poder dar ‑lhe uma resposta segura. No seu postal limitava ‑se a dizer que era a continuação das explorações de Torres e so com estes informes fiquei sem saber bem do que se tratava. Como recebesse o seu postal à tarde e esteja em Sintra (tenho

83 Refere -se a Vergílio Correia. Recorde -se que este tinha publicado havia pouco tempo atrás um estudo sobre o Ca-

chão da Rapa, embora apenas com base na representação histórica de Contador de Argote (Correia, 1916b), visto o sítio arqueológico só ter sido relocalizado cerca de duas décadas depois (Santos Júnior, 1934). Não espanta que, sem novos dados, J. Fontes não considerasse justificado voltar a abordar o tema, independentemente da falta de financia- mento para o efeito, questão que se aborda a seguir.

84 A questão da falta de verbas para financiar os trabalhos arqueológicos que J. Fontes desejava realizar pelo País e o im-

passe a que se chegou a tal respeito estiveram, naturalmente, na origem do seu afastamento progressivo da arqueologia, tanto mais que, com a obtenção do diploma de médico, nesse mesmo mês de agosto de 1916, J. Fontes teria diante de si uma promissora carreira profissional e académica com evidentes vantagens face à referida alternativa. Ver nota 80.

familia em casa que recebe a correspondencia) não me foi possivel procurar hon‑ tem o Dr. Felix 85 o que fiz hoje pela manhã. Elle porem tambem não sabe do que se trata, não conhece a gruta, não sabe se levará muito ou pouco tempo. De maneira que com esta escassez de informes não posso dar ‑lhe resposta segura. Sabe o meu querido Mestre do que se trata? A gruta é grande, ou é de difficil exploração? No caso de não a conhecêr quer que eu vá ali tirar informações? E ahi vae o tempo que agora posso dispor. Tenho agora 10 ou 12 dias que posso pôr á sua disposição mas preciso de partir immediatamente. Com o tempo que levará a sua resposta em tempo (???) 2 ou 3 dias. Parece ‑me pois que agora não valeria a pena, mas se entender que alguma coisa se pode fazêr estou á sua desposição. Depois tenho que ficar a substituir um collega na Associação dos Empregados do Commercio que já tem licença. E é isso que me dá algum dinheiro e não posso de maneira alguma perdê ‑lo. Depois lá para 10 d’Outubro posso talvez com um pouco de esforço dispôr de um mez menos pou‑ cos dias. Se qualquer d’estas fugas à minha vida medica se aproveitam peço ‑lhe que me avise e pode dispôr dellas. Era com o máximo prazêr que acceitaria o seu convite, que muito reconhecidamente agradeço, e se não fosse o eu têr que pensar a serio na maneira de ganhar o meu pão ter ‑lhe ‑hia escripto immediatamente dizendo que marcasse o dia da minha partida. Não só me era muito agradavel proceder a uma grande exploração como tinha muita satisfação em lhe sêr util e de algum modo pagar ‑lhe a minha grande divida para consigo a sua amisade e os seus conselhos.

Mas não posso sêr archeologo tenho que sêr medico. Puz ha um mez e meio consultorio que custou 400:000 reis e mais uns cobres. Devo a meu pae ainda 100:000 reis e tenho a renda e o ordenado do criado. A clinica é pouca e mal chega para as despesas. Alem d’isso eu no começo de vida quando não devo per‑ der uma chamada para me tornar conhecido e ganhar dinheiro que preciso para as minhas despezas (meu pae no dia em que acabamos o curso disse ‑nos que não podia dar ‑nos mais dinheiro), não podia nem comprometter gravemente o meu futuro dospôr de 2, 3 ou 4 mezes sem proveito algum e com despezas que orçam por 15:000 reis mensaes, afóra as despezas que tenho com a minha pessoa. Eis a minha vida. Se não vou é porque não posso. Vontade não me falta mas preciso de pensar e resolver em armonia com o meu futuro.

Eu sei que a archeologia e muito prejudicada se não fizer a exploração de Torres, se não se aproveitar o offerecimento do homem, mas entre dois males tenho que evitar aquelle que menos pessoalmente me incomoda. É um egoismo de que fatal‑ mente me enervo. Hontem com o Dr. Felix estivemos a fallar sobre o assumpto e acordamos em que o meu querido Mestre se vem a encontrar em varios embaraços

85 Ver nota 71. Note -se que, mesmo depois de afastado do Museu, por incompatibilidades com o lugar que ocupou

no Congresso da República, a partir de 1911, Félix Alves Pereira continuou ligado à instituição, sendo a sua opinião muito considerada.

por falta de quem o ajude no Museu. O Chaves 86 não chega como (???). O unico processo de evitar estes inconvenientes é segundo a opinião do Dr. Felix e minha, reformar por completo o Museu. Seria preciso criar duas cathegorias de logares: os da secretaria e os de conservadores. Os primeiros seriam sujeitos aos pontos e tratavam exclusivamente da parte burocratica. Os conservadores encarregavam ‑se da parte technica sem estarem sujeitos a nada d’isto. Era o que eu lhe dizia noutra carta: obrigados a trabalhar e não obrigados a entrar as 10 e sahir as 4 sem nada fazerem. Os conservadores teriam a sua especialidade a que dariam incremento. D’esta maneira os três ou quatro carolas que ai na terra tem coragem de se dedicar a estes estudos podiam fazer alguma coisa. O Museu lucraria e talvez que se conse‑ guisse criar uma tradicção nestes estudos e à archeologia portuguesa estariam reser‑ vados melhores dias. Foi o que aconteceu em Hespanha. Debaixo da direcção do Marquez de Cerralbo estão trabalhando quasi todos que no paiz visinho se dedi‑ cam a esta sciencia 87. É a Comision de investigaciones paleontológicas y prehis‑ toricas. Alem disso era o unico processo de inutilisar, digo, afastar por completo do Museu o nosso amigo que é um grande estorvo á archeologia 88. Enfim isto são desabafos mas vejo muito entroviscado o futuro d’estes estudos das coisas velhas.

Eu agora sou medico e como tal vou orientar a minha vida. Como todos os outros d’aqui a 5 ou 6 annos posso fazêr 200:000 ou 300:000 reis mensaes o que é muito melhor que 50:000 ou 60:000 reis que podia vir a ganhar no Museu.

Tenha paciencia de me aturar tanto tempo.

Felicito ‑o por todos os seus achados. Quando vem? Espero a sua resposta. Abraça ‑o com muita amizade o seu discipulo e amigo

Joaquim Fontes (assinatura) P.S. – Se lhe pedi para ir ao Cachão de Rapa era porque a exploração duraria poucos dias e estaria de volta antes de fazêr falta na Associação.

86 Ver nota 70.

87 O Marquês de Cerralbo (1845 -1922) foi um dos mais importantes arqueólogos espanhóis da sua época; dinamizador

da Comisión de Investigaciones Paleontológicas y Prehistóricas, funcionando no Museo Nacional de Ciencias Naturales (Madrid), conseguiu agregar em torno da mesma uma plêiade de investigadores cujos méritos científicos se encontram claramente expressos pelas notáveis monografias publicadas nas décadas de 1910 e 1920, bem conhecidas de J. Fontes. Este modelo, caso tivesse sido transposto para Portugal, teria certamente como resultado importante impulso na investi- gação arqueológica, centralizada, como já então estava, no Museu Etnológico Português e no seu Director.

88 Refere -se de novo a Vergílio Correia. A questão do futuro de J. Fontes na arqueologia encontra -se claramente ex-

posta nesta missiva. O próprio, pelo muito amor que tinha a esta ciência, estava inclusivamente disposto a ganhar ao fim de alguns anos de trabalho uma quantia quatro ou mais vezes inferior àquela que viria a auferir como médico com consultório montado (como era o caso); mas mesmo essa disposição obrigava a que fosse revista orgânica do Museu Etnológico, criando ali um quadro de investigadores sem horário atribuído e cuja única fonte de avaliação consistiria nos trabalhos publicados, com um salário compatível com o que na Faculdade de Medicina se praticava para com os Assistentes, reforçando o que em anterior missiva já alvitrara, a extensão deste regime à Faculdade de Letras, e, por maioria de razão, ao Museu Etnológico, àquela ligada por laços funcionais. Ver notas 80, 81 e 84.

51. Bilhete ‑postal n.º 8570 (identificação MNA),