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Nueva (Asturias) 17/X/1917

Meu caro Mestre e amigo

Escrevo ‑lhe do solar do Conde de la Vega del Sella 95 onde estou hospedado optimamente, num quarto de castello feudal, perdido entre os Cantabricos, à beira do mar 96. Por aqui tenho andado em explorações pelas muitas grutas que abundam nos arredores. Estes dois dias tenho ‑os passado mettido dentro de uma grande gruta cheia de estractos archeologicos, a escavar e a crivar a terra vendo aparecêr os fosseis e os instrumentos de silex e osso em niveis magdalenienses e asturienses 97. Todos os objectos que temos encontrados oferece ‑m´os o conde de maneira que posso bem fazêr ideia da estação. Hontem numa cueva descobrimos uns riscos gravados como muitos que se encontram em covas d’aqui. Hoje à tarde no automovel do Conde fomos a Peña Tu vêr o celebre idolo pintado e que tem tantas analogias com os idolos que publicou no archeologo. Lembra ‑se da publi‑ cação da Junta onde vem? Parece ‑me que a tem no Museu 98. O sitio é soberbo e a Peña distingue ‑se de toda a parte, parece um grande berrão no alto d’um monte isolado e fatalmente que havia de atrahir como atrahiu o homem do periodo calcolithico. É bem escolhido para altar, era um templo que de muito longe se avista e que portanto deveria chamar os fieis e lembrar ‑lhe nas suas cavernas a supremacia do seu idolo. Depois fomos a La Franca vêr um enorme kjoekkenmo‑ eddinger asturiense onde se esteve escavando e d’ali sacamos alguns picos como

95 Conde de la Vega del Sella (1870 -1940), de seu nome Ricardo Duque de Estrada, décimo primeiro conde do título,

arqueólogo e historiador asturiano que se celebrizou pelas suas investigações das cavernas asturianas com arte paleo- lítica das que possuíam ocupações pós -paleolíticas.

96 Na sequência da iniciativa do Prof. Eduardo Hernández -Pacheco querer envolver arqueólogos portugueses em tra-

balhos arqueológicos transfronteiriços, entre outros J. Fontes, desenvolveram -se diversos contactos que conduziram ao convite para o jovem arqueólogo português participar em investigações que então se encontravam em curso no país vizinho. Assim, sabia -se já que o Conde de la Vega del Sella tinha acolhido em Nueva (Astúrias) J. Fontes, e que este tinha colaborado em escavações que o Conde então tinha em curso, em grutas que distavam entre 7 e 9 km de Nueva, conforme missiva já publicada (Cardoso, 2006, p. 210), sendo por conseguinte o primeiro português a ter efetuado intervenções desta índole no país vizinho. O que não se sabia até agora era a extensão e pormenores dessa estada, sendo a presente missiva muito expressiva a tal respeito.

97 É interessante notar que J. Fontes já utilize o termo «Asturiense» para designar algumas das indústrias recolhidas

nas escavações do Conde de la Vega del Sella em cavernas das Astúrias, visto que só em 1923 o referido arqueólogo definiu cabalmente as características dessa indústria, numa memória intutilada El Asturiense. Nueva indústria preneo­

lítica (Vega del Sella, 1923).

98 O célebre ídolo pintado do final do Calcolítico de Peña Tú foi reproduzido na memória número 2 da Comisión de In-

vestigaciones Paleontológicas y Prehistóricas, Las pinturas prehistóricas de Peña Tú, da autoria de Eduardo Hernández- -Pacheco e Juan Cabré, publicada em 1914.

os que o Conde e Obermaier 99 tem já publicado objectos que me foram dados a par de muitos fosseis. Antes de vir para aqui estive numa caverna pintada nos arre‑ dores d’Oviedo em San Roman; soberbas pinturas paleolithicas cheias de vigor, de realidade. Ha ali uns veados, um rinoceronte e um cavallo que são verdadeiras obras primas. Amanhã iremos começar a exploração de uma gruta intacta para que eu assim possa sabêr como se começa e á tarde vêr outra gruta com pinturas. Depois d’amanhã vou a Cangas d’Onis e a Covadonga vêr a região, outras grutas pintadas e subirei um pouco pelos Picos da Europa. Por aqui estarei mais alguns dias e acabar alguma exploração e depois vou a Santander subindo então a Alta‑ mira, Castillo e Pasiega e regressarei a Madrid onde tenciono ficar uns dias 100. Irei depois mais uma vêz a Toledo e quero vêr se posso ir a Avila.

Parece ‑me que tenho aproveitado e aproveitarei bem o meu tempo e que vou para Portugal com bastante bagagem para explorar. Em França fiz a minha aprendizagem do paleolithico inferior e agora completo ‑a com a arte rupestre e paleolithico superior.

Quer alguma coisa de Nueva? Como tem passado o meu caro mestre? A Snra. D. Amália 101? Dizêr ‑lhe que sou tratado da maneira mais amavel parece ‑me des‑ necessario, bem como dizêr ‑lhe que a região não tem inveja à (???).

Abraça ‑o o seu amigo e discipulo grato

Joaquim Fontes (assinatura)

99 Hugo Obermaier (1877 -1946), padre católico de origem bávara, distinguiu -se pelas suas investigações sobre a arte

rupestre quaternária e o Homem paleolítico, especialmente na região asturiana. A gruta de Altamira correspondeu à sua mais célebre escavação, mas também foi autor de valiosos estudos sobre estações de épocas ulteriores, designada- mente de monumentos megalíticos. Autor de importantes obras arqueológicas de síntese, a mais célebre de todas El

Hombre Fósil, publicada em 1916, apresenta uma notável visão da Humanidade paleolítica, resultante essencialmente

das investigações peninsulares realizadas até então.

100 Pela descrição apresentada se verifica que J. Fontes, depois desta viagem, ficou detentor de uma formação prática

insubstituível e única entre os escassos arqueólogos portugueses da época, a qual se veio a somar à que tinha ad- quirido anos antes em França. No campo prático, no entanto, esta experiência acumulada não foi aproveitada, pelo seu definitivo abandono da Arqueologia de terreno, embora no campo teórico tenha providenciado a segurança e os conhecimentos depois utilizados na redação de obra de síntese, O homem fóssil em Portugal, publicada anos depois (Fontes, 1923). Note -se a identidade absoluta entre este título e o do célebre livro de Obermaier, publicado anos antes, mencionado em anterior missiva (Obermaier, 1916).

58. Bilhete ‑postal n.º 8580 (identificação MNA),