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Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2002 Caro Saviani,

Somente hoje, com muito interesse e grande respeito, consegui ler o artigo que você me enviou há dias. Conti- nuar um diálogo, compatível com o cuidado com que o texto foi desenvolvido, exigiria certamente muito mais tempo do que disponho, pela sua demanda. Entretanto, não gostaria de interromper o que julgo a via áurea da produção acadêmica: o debate entre pares. Esta é a razão porque optei pela carta. Escrevo no mesmo dia em que fiz a leitura.

Tratarei diretamente da parte em que dialoga com a minha leitura a respeito do texto que você apresentou na lª CBE, e que foi publicado em Escola e democracia (1983). Ele foi um dos seis textos que utilizei na primeira parte de minha tese que versava sobre a desconstrução da memória-monumento de Fernando de Azevedo sobre o Movimento da Escola Nova no Brasil.

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Você começa seu artigo mais recente explicitando o contexto e as intenções do autor (você) do texto apresentado oralmente na 1ª CBE e, posteriormente, publicado como “Escola e democracia I: a teoria da curva­ tura da vara”. Assinala o seu caráter polêmico e caracteriza a transposição indevida deste texto por alguns dos seus leitores (incluindo-me entre eles) para o campo da historiografia. Neste sentido, cita Gramsci: [...] como é possível confundir, de boa-fé, uma linguagem polêmica com um princípio gnosiológico? (p. 22).

Embora sua argumentação me tenha alertado sobre a impropriedade de tomar seu texto como historiográfica, explicito abaixo o contexto e a “intenção” de meu texto — pelo menos no que consigo recuperar “dela” por meio de um retomo reflexivo sobre a minha tese de doutorado — na expectativa de evidenciar que, apesar do equívoco no tratamento que dei a seu texto, não houve má-fé na utilização que fiz dele.

Do meu ponto de vista, aquele texto desempenhou um importante papel na constituição de uma nova interpretação sobre a Escola Nova no Brasil, ainda que a intenção do autor não tenha sido produzir historiografia. Na época em que comecei a pesquisa sobre a presença de Paschoal Lemme entre os Pioneiros (final da década de 1980), dominava na área da educação um imaginário bastante negativo sobre o protagonismo político da Escola Nova no Brasil. Minha intenção (objetivo da pesquisa) então, era construir uma interpretação do mesmo movimento tomando como material empírico o testemunho/depoimento de Paschoal Lemme e as fontes históricas que o percurso por entre essas memórias fossem me sugerindo ou oferecendo. Na introdução do meu texto, que você conhece, explicito detalhadamente esse percurso, inclusive indicando a suposição inicial de que a Escola Nova no Brasil tivesse contribuído para inviabilizar uma efetiva democratização do ensino, fundamentada em boa parte na sua apresentação na 1ª CBE.

Do que consigo me lembrar, neste esforço de retorno reflexivo, o diálogo com o seu texto não estava claramente previsto ao iniciar a pesquisa, embora a sua análise da Escola Nova estivesse, conforme assinalei anteriormente, subjacente ao problema que suscitou a pesquisa; a importância do autor daquele texto no cenário educacional e, muito especialmente, a polêmica que levantara sobre o papel da Escola Nova não teriam como estar de fora do “idioma geral” do campo acadêmico à época em que comecei a desenvolver a minha pesquisa.

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Na medida em que prosseguia no percurso com Lemme por entre as memórias dos Pioneiros, a interlocução com a memória de Fernando de Azevedo foi se tornando central para o entendimento de como se “forjara” um imaginário sobre o Movimento da Escola Nova no Brasil. Foi portanto a “força” da memória-monumento de Azevedo que me levou, no contexto de um outro imaginário sobre a Escola Nova, à metáfora heróis-vilões. O contraste, portanto, entre o imaginário sobre a Escola Nova nos dois momentos (década de 1930 e década de 1980) decorreu do próprio processo de construção do meu objeto de pesquisa.

O processo de desconstrução da memória-monumento de Azevedo foi um desdobramento necessário ao entendimento de como e por que se estaria fixando uma memória oposta àquela tão cuidadosamente urdida por Azevedo. Com este objetivo recorri aos textos e autores mais citados sobre o tema (Pioneiros e Escola Nova) na tentativa de reconstruir o itinerário de leituras que teriam contribuído para a construção de uma outra e emblemá­ tica leitura do movimento da Escola Nova no Brasil. Em meio a inúmeras hipóteses formuladas então, selecionei quatro autores e textos que me pa­ receram constituir os pilares mais importantes desta nova leitura do campo da educação sobre o significado histórico e político da Escola Nova, que se contrapunha marcadamente à leitura construída pelos Pioneiros (Paschoal Lemme, inclusive) sobre aquele movimento.

No item 1.3 de minha tese explicito a minha leitura do seu texto, à época. Reafirmo hoje a minha convicção sobre a pertinência da correção que você faz àquela minha análise de seu texto de 1983: eu o questionava ali pela ótica da historiografia, desconhecendo portanto os desdobramentos do tratamento esquemático e polêmico que você explicitamente conferiu ao texto. A minha leitura, portanto, distorcia - involuntariamente reafir­ mo - a intenção do autor (você), apesar de a intenção do leitor (eu) ter sido explicitar as bases textuais da construção de uma “contra-memória” à memória-monumento de Azevedo.

Entretanto, ainda agora, nesta nova leitura que faço da minha tese (1992) e do seu texto de 1983 provocada por você, continuo convencida de que mesmo não tendo sido a intenção do autor (você) desenvolver uma análise historiográfica, o (seu) texto impactou fortemente a historiografia sobre o tema.

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e o propósito do intérprete (leitor) existe a intenção do texto, servindo este (o texto), em última análise, como elemento controlador da superinter- pretação dos textos.

Espero que estes rápidos comentários, motivados pelo seu paper, venham a contribuir para motivar o debate sobre as condições e os desafios do processo de produção do conhecimento e, sobretudo, sobre a importância da escuta e do debate acadêmico no processo de aperfeiçoamento da pesquisa.

Receba um grande e afetuoso abraço de quem sempre admirou a seriedade e a competência que têm marcado a sua presença no meio acadêmico.