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Cartografias do cuidado em comunidade

3. Cartografia dos percursos de cuidado na educação: aprendendo com o povo Dagara e a

3.1 Compondo territórios existenciais como possível comunidade de cuidado

3.1.1 Cartografias do cuidado em comunidade

Iáuê ererê aiô gumbê Com licença do Curiandamba Com licença do Curiacuca Com licença do senhor moço Com licença do dono de terra27 Como nas danças de roda, em que para dançar no centro da roda é preciso primeiro pedir licença aos tocadores e fazer reverência aos tambores, gostaríamos de aproximar-nos das crianças nas escolas e de suas histórias com todo respeito e reverência. Por isto, modificamos seus nomes para nomes africanos e pedimos licença para falar de Adebayo, Chiumbo, Afolayan, Shakwe e Akinlabi, contando o significado de seus nomes e, principalmente, como a comunidade de cuidado de cada um deles foi sendo formada, destacando aspectos importantes destas comunidades. Nosso foco de atenção são suas comunidades de cuidado.

Estas crianças chamaram a atenção pelo processo de medicalização e patologização da vida que estavam vivendo. Embora eu receba na escola o encaminhamento de diversas crianças para serem avaliadas, pela dificuldade de aprendizagem, ou por problemas de comportamento algumas me chamam a atenção pelo risco que correm de serem e brincadeira pelos amigos e amigas e desacreditados por professores e professoras e equipe de gestão. Identificava estas crianças pelo modo como estes se referiam a estas crianças. Expressões comumente utilizadas para referir-se à figura do louco na cidade e, por vezes, é possível ouvir 27 Este vissungo, identificado como Canto I no LP O canto dos Escravos, foi gravado por Clementina de

uma criança ser descrita desta forma. Os rótulos são, na verdade, tentativas de fixar, cristalizar uma identidade, romper com a fluidez das formas e forças que constituem a multiplicidade de cada ser. Reduzir a uma só possibilidade aquilo que um ser tem de possibilidades de existência é, na verdade, uma violência existencial.

A medicalização da educação vem sendo debatida há alguns anos, já foi tema de manifesto assinado por diversas entidades e eventos importantes. A tônica dessa questão tem sido a culpabilização do aluno por suas dificuldades, sem haver uma problematização das condições de ensino, das políticas públicas de Educação e de aspectos que também contribuem para produção do sintoma. Moysés e Collares, abordam medicalização da seguinte forma:

O termo medicalização refere-se ao processo de transformar questões não-médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e soluções para problemas dessa natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência médica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo sua determinação coletiva. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, a expressão do individual e do coletivo. Um exemplo gritante de como se medicalizam as grandes questões sociais constituem o próprio processo saúde-doença, que vem sendo transformado em um problema médico, referente a cada indivíduo em particular (COLLARES; MOYSÉS, 1994, p.25).

Em geral, o processo de medicalização na escola tem início com queixas de comportamento agressivo, agitação e impulsividade, encaminhamento à psicólogas para avaliação, com expectativa de encaminhamento aos profissionais de saúde para elaboração de diagnóstico e tratamento medicamentoso. Mesmo considerando que a psicologia escolar ou educacional tenha contribuído para estigmatização das crianças na escola, através de práticas psicométricas, a fim de quantificar suas inteligências, medir suas capacidades e prontidão para aprendizagem para identificar problemas educacionais no aluno, sem fazer a crítica as condições mais amplas ligadas a Educação, temos reafirmado na psicologia educacional o compromisso social que preza pela coerência das ações dos serviços públicos para atender as necessidades da população em busca de justiça social. Inicialmente, as atividades de psicólogos e psicólogas na escola restringiam-se a treinamentos e orientações sobre alguns aspectos do comportamento e acabavam sendo uma transposição de práticas de consultório para o espaço escolar. Os padrões de normalidade e de ajustamento começaram a instalar-se

na Educação. Os indivíduos mais e menos aptos poderiam ser então reconhecidos e separados. Guzzo (2005) nos diz do quanto esse modelo de atuação coloca o psicólogos e psicólogas escolares como agentes reprodutores de uma ideologia, a qual considera a criança como única responsável pelo seu fracasso e mantém o sistema excludente da escola.

No entanto, vários pesquisadores e pesquisadoras recorrem às teorias histórico- críticas para compreender a educação brasileira. Dentre eles, podemos mencionar Patto (1991) com maior importância. As explicações sobre o fracasso escolar passaram a considerar a escola e todo o contexto sócio-político-econômico do qual faz parte e recebe sua influência, e não exclusivamente o aluno. Desde então, passa a considerar a multiplicidade de fatores que envolvem o fracasso escolar, já na tentativa de romper-se com uma visão parcial e restrita de uma situação que é mais complexa. Nesta outra concepção do fazer psicológico, a atuação de psicólogos e psicólogas educacionais deve contribuir para interromper a produção do fracasso escolar, propondo estratégias, ações a serem desenvolvidas tanto no contexto da sala de aula, quanto nos procedimentos e ações da escola, enquanto organização. Trata-se de um papel relevante, à medida em que, estando no contexto escolar, pode contribuir para construir um entendimento mais integrado. Torna-se muito difícil propor qualquer intervenção nos problemas gerados nos contextos educativos quando avalia-se a situação sem estar implicados no cotidiano destes espaços. O papel de diagnosticar e encaminhar ou tratar, caso a caso, em um modelo de atuação que prioriza o indivíduo isolado de seu contexto, nada acrescenta se o contexto educacional também não se modificar para acolher o aluno diferenciado28.

Outra faceta dessa discussão é a patologização da vida. Tanto a medicalização como a patologização dizem respeito à transformação de aspectos comuns da vida em questões médicas, que são logo classificadas como transtornos, distúrbios e doenças, e mascaram questões políticas, sociais ou afetivas que também participam da produção de sofrimento.

28 Tem havido na rede municipal de educação da cidade de São Paulo o debate de um projeto de lei que

buscar identificar, cadastrar alunos disléxicos em toda rede municipal para acompanhar sua evolução de aprendizagem. O CRP/SP tem defendido que lei desta natureza, por deixar de considerar a quantidade de alunos em sala de aula, condições de trabalho do professor, só vem estigmatizar o aluno (CRPSP, 2010, p.44).