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2. Cuidar na aldeia

2.1 De que África falamos?

Nunca estive na África, embora almeje isso no futuro. A África que conheço é um reconto que se deu através de shows, espetáculos, reportagens, ritmos e notícias de excentricidades. Na verdade, a África que nós, do ocidente, conhecemos é um lugar desacreditado.

Assumindo o lugar de povo civilizado, o mundo ocidental, há muitos séculos, como nos contam Waldman e Serrano (2008, p.24), vem construindo seu relacionamento com as populações extra-

também inferioriza, desqualifica, desprestigia o território habitado por essas populações, suas sociedades, suas culturas impregnando de negatividade tudo a que se refere àquele povo. arraigados na cultura européia tenham se dirigido a vários outros povos, é o continente africano quem mais foi e continua sendo atacado pelo pensamento ocidental, como avaliam os autores. No período medieval, a cosmologia cristã, estigmatizava negros e negras como descendentes do personagem bíblico Cam, considerado indigno e que por isso estariam sofrendo com a escravidão, legitimando o regime escravista e desresponsabilizando os países europeus de seus atos.

Outro ponto considerado um problema tanto para a religião como para a ciência era o sol intenso do clima tropical que atinge todo o continente. Para a ciência, a baixa capacidade intelectual, a passionalidade e preguiça estavam relacionadas ao clima e a umidade do ar. Enquanto a igreja cristã européia associava o calor a aspectos negativos como a sensualidade, luxúri

associando ao clima africano.

A distância do continente do mundo europeu e o relativo afastamento da África negra contribuíram para o fomentar o imaginário medieval de forma espantosa. O calor tórrido levaria a existência de monstros e seres hediondos convivendo com humanos e semi-

humanos. Esses mecanismos de inferiorização, serviram aos propósitos da sociedade capitalista ocidental, que reafirmavam a condição de periferia no sistema de produção de mercadorias, uma vez subalternizada, a África fornecia braços para indústria açucareira e para o trabalho em minas de metais e pedras preciosas. Com a hegemonia do capitalismo industrial, a África passou a fornecer mão de obra barata e matéria-prima para as indústrias.

Novamente, no século XIX, a Europa voltou a se interessar pela África e sob o argumento de contribuir na tarefa de civilizar este continente repartiu entre alguns países europeus todo o território africano, com exceção da Etiópia, sem qualquer respeito às civilizações ali existentes e ao modo de organização de seu espaço. A África passou ser identificada como uma gigantesca colônia europeia. Iniciou-se assim, uma nova fase de desqualificação da África. Nesta etapa, o continente era local de seca e miséria humana sem medida, de origem das epidemias mundiais, governos ditatoriais e analfabetismo, assim sendo, só lhe restaria contar com a misericórdia europeia para sair de sua estagnação. Em um discurso ideológico a África seria incapaz de cuidar de si sozinha.

Esse afro-pessimismo, como chamam Waldman e Serrano (2008, p.33), é mais uma estratégia de inferiorização que atua com generalizações, preconceitos e falsas O afro- pessimismo é uma estratégia que vem sedimentar as políticas que têm perpetuado a

todas essas estratégias têm em comum é a ambição de dominar o continente africano ou configurá-lo como um contraponto ao mundo europeu que reivindica para si o papel central (WALDMAN; SERRANO, 2008, p.33).

Neste trabalho, assume-se uma posição de luta contra todas as estratégias de inferiorização da África contra o afro-pessimismo, descrito pelos autores. Gostaria que esta contrariando e escapando aos critérios cartesianos de desenvolvimento edificados pelo istindo apesar das tentativas de aniquilação, dominação ocidental e de invasão cultural, como diz Paulo Freire (1977).

Paulo Freire, esteve em alguns países africanos após período de colonização. Em Guiné Bissau, foi convidado por Amílcar Cabral para participar da tarefa de organizar os sistemas escolares para alfabetização de adultos, como disse, participar da tarefa

fontes culturais e históricas, de algo de bem seu, da alma mesma de seu povo, que a violência colonialista não pode matar. De zero, ela parte, com relação às condições materiais em que a deixaram os invasores quando, já derrotados política e militarmente, numa guerra impossível, tiveram de abandoná- 77, p.16).

Coerente com seu modo de pensar a educação, Freire cuidou para que o trabalho desenvolvido em Guiné Bissau, não fosse uma transposição das experiências realizadas em outros países, com outros contextos históricos, políticos e culturais14. Freire,

nos contou como pôde, ainda mais, experienciar uma educação dialógica. Uma Educação que partia da cultura guineense, basicamente de tradição oral, para organizar uma proposta de alfabetização de adultos sem realizar invasão cultural, prática antidialógica de educação tão acesso às escolas, que se mostravam cada vez mais seletivas e excludentes.

Em toda África, há milhares de línguas, culturas e etnias, a diversidade é um traço marcante do continente. Nesta pesquisa, me dedico a conhecer uma região africana conhecida como África subsaariana ou África Negra15, fica abaixo do deserto do Saara e vai

até a África do Sul. Apesar da grande diversidade étnica-cultural, é possível observar traços comuns nesta região.

Considerando a existência de peculiaridades em diversas sociedades africanas, Leite (1995/1996, p.103) destaca alguns valores que se mostram abrangentes diante da diversidade étnico-cultural. Estes valores são, na verdade, propostas de organização de mundo 14 Paulo Freire, em Guiné Bissau, se preocupou em não reproduzir experiências realizadas no Brasil, no

(FREIRE, 1977, p. 17), por isso ficava atento para não supervalorizar um aspecto ou outro das experiências dando validade universal a elas, mas procurou construir uma práxis em cada contexto. Assim, no primeiro momento de contato com Guiné Bissau se propôs a ver e ouvir, perguntar e discutir com as equipes que atuavam na Educação daquele país e quando se reportava a experiências tidas em outros contextos era para contar, narrar e não recomendar e exemplificar.

15 O deserto é o elemento divisor de dois grupos distintos na África, ao norte com grande influência dos

povos árabes se encontra a África Branca, como se referem vários autores e envolve países como Marrocos, Tunísia, Argélia, Líbia e Egito, já a África subsaariana também é chamada de África Negra se encontra ao sul do deserto e estão todos os demais países. Nesta pesquisa, utilizo o termo África Negra para fazer menção as culturas dos povos localizados abaixo do deserto do Saara e majoritariamente, negros.

nestas sociedades, por isso, chamada de valores civilizatórios. Oliveira (2006, p.13) também destaca elementos comuns nas sociedades que pesquisa e aponta que estes valores organizam as sociedades negro-africanas desde antes da colonização europeia, que sedimenta a organização política, social e cultural e compõem a cosmovisão africana. Dentre estes valores, a comunidade, a noção de Universo, de tempo, de forças vitais, de ancestralidade e a importância da palavra falada orientam esta pesquisa. Mesmo tomando alguns aspectos das sociedades tradicionais, estes valores não compreendem toda a África, há culturas diferentes, algumas não apresentam todos eles, por isso o interesse em preservar, nesta história-pesquisa, toda a riqueza cultural africana, e por isso irei me referir a elas no plural, sempre que possível. A palavra, um dos valores civilizatórios das culturas africanas apontado por Leite (1995/1996, p.105) tem um sentido religioso importante, mas também mostra sua importância na transmissão do conhecimento nestas sociedades (OLIVEIRA, 2006, s/p.). De boca a ouvido, é através da palavra falada e da atividade da memória que os domas ou tradicionalistas, no ofício de transmitir a cada geração o conhecimento de seu povo, garantem a continuidade de suas culturas. As culturas do povo Dagara e a filosofia ubuntu tem se mantido assim, pela tradição oral.

Ainda que o conhecimento aqui transmitido se dê pela escrita, penso que o se faz importante neste momento de conhecer o novo. De forma profunda, este autor nos diz das condições para transmissão do conhecimento pela tradição oral. É preciso afastar todo preconceito e etnocentrismo que nos atrapalham de entrar em contato com essa África. É preciso cuidar para que valores e crenças não nos impeçam de enxergar a potência, a importância e o conhecimento que essas culturas preservam por vários séculos. É preciso, como nos diz Paulo Freire (1983), amar profundamente o mundo e a humanidade, ter fé em seus homens e mulheres e humildade para aprender com a África.

O conhecimento apresentado nesta pesquisa surge a partir das minhas implicações, vivências e leituras por aquilo que experimentei das culturas africanas, por minha aproximação com o conhecimento milenar africano. É uma forma de teimar, resistir e insistir em divulgar uma África que poucos conhecem. Teimo em ficar com aquilo que a África tem de potente. Não que me prefira alienada de suas mazelas sociais, mas que assim

contribuo para preservar uma diversidade de modos de ser e viver que pode tornar a vida das pessoas melhor em qualquer lugar do mundo. Melhor porque é mais ligada à vida em comunidade, à espiritualidade e à natureza.

Desta região gigantesca conhecida como África Negra optamos por falar de duas culturas. A cultura do povo Dagara que se localiza na região de Togo, Gana, Costa do Marfim e principalmente em Burkina Faso, e da cultura presente entre os povos falantes dos idiomas do grupo linguístico bantu, o ubuntu. Penso que os valores civilizatórios destas culturas podem ajudar a criar uma noção de cuidado e recriar experiências de acordo com as culturas tradicionais africanas. Como diz Oliveira (2012), esse é nosso modo de ser africano.

A África por nós criada é em tudo mais africana que a África que perdura no continente negroide dos dias atuais. Optamos por essa escolha como ponto de partida: somos africanos ao nosso modo, o que nos regala uma singularidade única. Nós afrodescendentes, reintroduzimos a África perdida em solo brasileiro, seja através de uma recriação idílica, epistêmica, política, artística e até mesmo econômica. (OLIVEIRA, 2012, p.38).