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CAPÍTULO III: RESULTADOS E REVELAÇÕES DO ESTUDO

3.3. MICROSSISTEMA ESCOLA

3.3.1. A Casa Reversível, que Vira Escola – que Vira Casa

O lócus específico do estudo, ou seja, o local onde foi realizada parte substantiva da pesquisa funcionava, na ocasião, em uma casa de um morador do Rio que, no caso, era sogro da professora, o qual cedeu um compartimento da casa para que as crianças pudessem ter um local para estudar, durante o dia, pois à noite a escola vira casa; caracterizando aí o fenômeno da reversibilidade. Vale assinalar que o espaço em que a escola funcionava, anteriormente, era em um barracão improvisado de madeira coberto de palha, cedido pela Igreja Assembléia de Deus, a qual pediu de volta o espaço, para a construção da nova igreja.

Esta casa que vira escola, durante o dia, tal como todas as demais moradias, está situada às margens do Rio Araraiana. Todas as casas são construídas em sistema de palafita, sendo o acesso a elas feito, ou pelos caminhos de vizinhanças à direita e à esquerda, feitos com troncos do miritizeiro, ou pelas canoas de casco raso, comandadas à remo, pelas próprias crianças.

Ao ver a escola, o impacto e o estranhamento mútuo foi imediato. Aliás este, foi sentimento vivido continuamente, durante a presença dos pesquisadores no ambiente de estudo. Ao se defrontar com a casa reversível que vira escola, a equipe de pesquisadores constatou, perplexa, também a similaridade notável entre a realidade vista da beira do rio e por dentro da “escola”, com a situação presente na narrativa de Davis e Gatti (1993) cujo teor bem se aplica ao caso do rio Araraiana, que diz:

Não havia uma construção que lembrasse uma escola, nem várias salas de aula, nem diversas professoras, nem mesmo uma diretora. A começar pelo aspecto físico, e precariedade das instalações, a escola (...) parecia ser o reino do informalismo e da improvisação. De certa forma, foi mais fácil defini-la pela negação, na medida em que ela era a antítese do que se imaginava a respeito de uma escola. (...) era um espaço social institucionalizado segundo o arbítrio da professora. (Davis e Gatti, 1993, p. 77).

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Figura 50. A escola do rio Araraiana (maré seca).

Essa impressão foi corroborada por muitas e variadas razões, e a aplicação na continuidade da fala de Davis e Gatti (1993) também:

(...) não havia classes formadas por alunos melhores e classes formadas por alunos piores, professoras mais preparadas e menos preparadas, diretoras mais eficientes e menos eficientes, ao contrário, havia uma só classe, uma só professora, um só período de aula, nenhuma diretora. (Davis e Gatti, 1993, p. 77).

A fotografia é bastante expressiva, dispensando maiores comentários. Apenas mais um, apenas para compartilhar uma dúvida, que só veio à tona ao mirar essa imagem – que em nada lembra uma escola, dentro dos padrões convencionais: por que será que ela não tem sequer uma placa identificadora ou sinalizadora de que se trata de um espaço escolar?

Ao observar, mais de perto, a parte externa da casa/escola, é possível perceber que a estrutura é de madeira e parte da casa é sustentada por vigas para impedir que a maré alta alague a residência. Caracteriza-se, portanto, como uma palafita. Os troncos soltos em frente à escola permitem que, quando a maré fique cheia, as pessoas possam andar sobre estes para o acesso ao local. Este fato é percebido em todas as casas.

Em volta da casa há um grande terreno onde existem várias árvores, inclusive muitos açaizeiros, à sombra dos quais as crianças brincam na hora do recreio ou no momento em que as aulas são encerradas, quando não está totalmente alagado pela maré,

Quando se entra na sala de estar da casa na qual funciona a sala de aula, pode- se observar que esta possui apenas iluminação natural distribuída por quatro janelas que estão em três paredes do local. Como a sala não recebe luz direta e está em volta de uma cobertura de açaizais a impressão é de ambiente pobremente iluminado para

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fins educacionais.Entretanto, o ambiente é bastante ventilado por conta da proximidade com o rio e das inúmeras árvores que estão no terreno em volta da escola.

A dimensão da sala é ampla, medindo, aproximadamente, cinco metros de comprimento por quatro metros de largura. É baixa com apenas 2,50 de pé direito.

Considerando que o ambiente da escola deveria ser uma ambiente de letramento, não há nenhuma referência decorativa nas paredes referente a letras, números ou a quaisquer símbolos. Certamente, a sala de aula não parece ser um ambiente estimulante para alfabetização e aprendizagem de conceitos escolares. Os objetos encontrados em seu interior são cadeiras de braço, tipo escolar, dois quadros de giz e um filtro de barro.

As cadeiras são feitas de madeira, algumas estão quebradas, aparentando ser desconfortáveis. Há dois quadros de giz: um direcionado à primeira série pela parte da manhã e terceira pela parte da tarde e o outro direcionado à segunda série pela parte da manhã e à quarta na parte da tarde.

A decoração encontrada na parede da sala apresenta fotos dos moradores da casa, cartazes de campanhas de vacinação ocorridas na região e uma espécie de altar para santos católicos. A estrutura da sala de aula pode ser observada nas figuras 52 e 53:

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Figura 52. Vista interna da sala de aula ribeirinha.

O refeitório da escola funciona em uma espécie de copa da casa. Neste local encontra-se uma mesa grande de madeira coberta com uma toalha de plástico colorida, bancos ao redor desta e algumas cadeiras escolares que estão quebradas (sem o encosto que possibilita a escrita).

Há um fogão, com alguns sinais de ferrugem, que raramente é utilizado devido à falta de gás para preparação dos alimentos. A comida é preparada em fogão à lenha e a carvão. Este espaço é compartilhado tanto pelos alunos da escola quanto pelos moradores da casa, pois este local permite a passagem para um dos cômodos da residência. Visto por dentro, o “refeitório” apresenta uma imagem que as câmeras fotográficas registraram como na imagem seguinte:

Figura 53. Visão interna do refeitório/copa da escola.

O fato da sala de aula e o refeitório serem parte da residência do sogro da professora faz que com que os limites entre residência e escola não sejam evidentemente claros. Atividades cotidianas caseiras facilmente chamam atenção dos alunos que estão em tarefa escolares e as atividades da escola invadem o espaço da residência.

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As aulas funcionam em dois turnos (manhã e tarde), no sistema de turmas multisseriadas, ou seja, são turmas compostas por séries diferentes, portanto com conteúdos diferentes, e que acontecem no mesmo espaço físico, proporcionando o convívio de estudantes com diferentes estágios de desenvolvimento e aprendizagem.

Na escola do rio Araraiana é oferecido somente o Ensino Fundamental, de Alfabetização à 4ª série, sendo que até a 2ª série as aulas acontecem no turno da manhã e a 3ª e 4ª, no turno da tarde.

As disciplinas ofertadas são Português, Matemática, História, Geografia e Ciências. A disciplina Educação Física, apesar de apontada na LDB, lei 9394/96, não acontece nessa escola.

O apoio técnico-pedagógico não se faz presente direta e cotidianamente na escola, uma vez que se encontra residindo em Ponta de Pedras, com lotação na prefeitura que, através da secretaria de educação, coordena e planeja as atividades das escolas, inclusive as ribeirinhas, para as quais são previstas visitas sem regularidade temporal fixa. Esta supervisão do trabalho da professora e o controle de freqüência dos alunos também fazem parte de suas atribuições, ainda que seja um acompanhamento à distância e sem periodicidade regular.

O pessoal de apoio resume-se apenas à merendeira que, no caso, é a própria dona da casa que vira escola. Vale dizer que a merenda sempre está pronta e disponibilizada para as crianças no horário do recreio, em que pesem os esforços desta senhora, pois, utiliza o fogão e combustível (lenha) de uso da família.

Vale notar a existência de políticas de apoio aos estudantes que, de certa maneira beneficia estes alunos. São programas mantidos pelos governos federal e estadual, em apoio aos municípios e que se estendem às crianças, dentre os quais foram mencionados os seguintes: bolsa-escola, merenda escolar, livro didático, e transporte, nos quais se detêm brevemente, os itens seguintes.

1. Bolsa-Escola. Apenas 16 crianças que freqüentam a escola recebe a bolsa escola. O pagamento só é efetuado mediante comprovação de freqüência dos alunos pela professora, a qual é responsável por fornecê-la para a prefeitura. Foi verificado também que alguns alunos não a recebem por falta de certidão de nascimento.

2. Merenda Escolar. A merenda é constituída de massa de mingau, macarrão, carne enlatada, bolachas e sucos de pacote. Geralmente essa merenda atrasa e os alunos ficam por muito tempo sem recebê-la. Apesar de ser uma alimentação bem diferente da que eles costumam ter em suas casas, ela é sempre bem vinda por eles, pois muitos deles vão à escola para

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3. Livro Didático. A cada ano, os livros didáticos, são reaproveitados de outros estudantes da cidade de Ponta de Pedras, o que reforça a frase - já quase chavão, de que para o interior qualquer coisa serve, principalmente o já usado, descartado e inservível pelos “outros” da cidade.

4. Transporte. A maioria das crianças vem para aula em pequenos barcos a remo denominados de casquinhos rasos. Chegam, geralmente, acompanhados de irmãos ou parentes e, algumas vezes, pedem carona por não possuírem transporte próprio ou porque a família só dispõe de um e os pais necessitam do barco para sair, para pescar. Este é o meio de locomoção comum no contexto ribeirinho. Por causa deste tipo de transporte e por conta do risco de afogamento no rio, os alunos só passam a freqüentá-la quando aprendem a nadar. A imagem abaixo remete ao emocionante momento de chegada das crianças na escola.

Figura 54. Foto da entrada dos alunos na escola.