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Capítulo 2 – Emma Wedgwood Invisibilidade e auto­‑sacrifício­

3. Uma sociedade em tensão

3.1. Casamento

O facto de duas das três figuras escolhidas para objecto desta tese serem casadas faz com que a instituição do casamento tenha especial importância para a análise; e a circunstância de a terceira não ser casada (na relação em apreço) é particularmente revelador, dado tratar‑se de uma relação não‑assumida, devido ao constrangimento social que tal atitude implicaria.

Ilustração publicada no Punch, a respeito do casamento na aristocracia vitoriana22

A ilustração do Punch aponta para a valorização dos bens materiais na nobreza e aristocracia vitorianas, ao exibir figuras femininas discutindo o poder económico dos seus futuros maridos. A crítica dos valores em causa para a juventude feminina da classe alta tem de ser, porém, enquadrada no estatuto editorial da publicação vitoriana, de índole satírica, e deverá ser entendida como uma generalização, e não uma avaliação rigorosa. Não é, no entanto, de desprezar a postura denunciada por aquele jornal, quando se sabe que a população feminina estava quase sempre completamente dependente do casamento para a sua subsistência, pelo que prevaleciam as alianças entre famílias. Estavam excluídas deste segmento as mais desfavorecidas, obrigadas a procurar trabalho num vasto leque de profissões exigentes a nível físico e intelectual. Uma aliança entre duas famílias foi exactamente o caso concretizado pelo casamento Wedgwood/Darwin, felizmente consensual para ambos os envolvidos.

22 1996. «Social satire in Punch and Trolope». The Victorian Web. URL: http://www.victorianweb.org/

A verdade é que o casamento passava, no século XIX, por uma profunda transformação, com implicações na História do Género, ramo de estudos sobre as mulheres, tema salientado por Bartley, que articula as questões do casamento com as da família e da vivência privada, já que é difícil considerá‑las em compartimentos estanques. (Bartley 1996/1999: 5). No entanto, esta autora assume uma posição crítica perante a produção teórica sobre o tema, predominantemente empírica, e que tem privilegiado a história das relações familiares das mulheres durante o século XIX. Para Bartley, a elaboração de um argumento teórico baseado nas categorias de classe e género, que considera as mais adequadas para o aprofundamento da questão em apreço, permitiria apercebermo‑nos das contradições que se verificavam neste período. Esta autora analisa a motivação para a celebração de uniões, estuda padrões de corte e casamento, o enquadramento legal da propriedade, e a reforma do divórcio, não esquecendo a regulação do poder paternal, que sofreu também alterações nesse período. Todas estas questões, pertinentes para a época, são‑no, por maioria de razão, para os três casos abordados, pois dois envolvem casamento, separação e divórcio.

O casamento fazia, assim, parte do projecto de vida da maioria da população. Considerada uma instituição popular, devido às elevadas taxas conhecidas – 87% das pessoas de cada geração, a partir de 1850, casava (ou seja, a maioria) – as uniões decorriam da sucessão natural dos acontecimentos, prendendo‑se com a permissão das relações sexuais, com a legitimação dos filhos e enquadrava o apoio à família. (Bartley 1996/1999: 8). A autora chega mesmo a afirmar que o casamento era considerado uma perspectiva de carreira e, ao mesmo tempo, uma inevitabilidade, dada a situação económica das mulheres, pois a maioria, no século XIX, na Grã‑Bretanha, teria muita dificuldade em ser financeiramente independente.

Com efeito, as deficiências do sistema educativo faziam com que dificilmente existisse possibilidade de escapar ao casamento: impedidas de receber uma educação de qualidade, arredadas do mercado de trabalho ou mal remuneradas e sem rendimento pessoal, as mulheres não tinham alternativa se não no casamento, independentemente do seu antecedente de classe, como refere Bartley. Este conjunto de circunstâncias colocava a mulher solteira, mesmo a da classe trabalhadora, numa situação precária, dadas as baixas remunerações, impedindo‑a de subsistir sozinha. Outras mulheres que figuravam no mercado de trabalho,

oriundas da classe média, como as governantas, também não usufruíam de um nível de remuneração que lhes permitisse viver pelos seus próprios meios. E, quanto às de origem abastada, podendo ser sustentadas pelas famílias, ainda assim, preferiam, na maioria, casar. (Bartley 1996/1999: 8­‑9).

A estes condicionalismos, que conduziam as mulheres vitorianas ao casamento, havia que acrescentar a pressão social, conducente à decisão de contrair matrimónio, dados os argumentos em causa, como se lê a seguir:

For the upper classes, marriage was an important social institution which merged property as much as people. For a young woman with a fortune, title and land it was crucial that she make a good match to secure her family property for generations to come. (Bartley 1996/1999: 9).(Bartley 1996/1999: 9).

Esta pressão levava a que, como salienta a autora, se desse muita atenção ao casamento, tendo em vista potenciais alianças que podiam estabelecer­‑se com outr­as famílias influentes, chegando uma jovem em idade de casar a ser encarada como se de uma mercadoria se tratasse, vendida pela melhor oferta. Considerando, como se viu antes, as questões de classe e género essenciais no casamento, Bartley acredita que este investimento nas uniões da geração mais nova não consistia apenas numa questão relevante para as classes altas, mas também para os estratos médios da sociedade. Um exemplo pode ser citado, respeitante às famílias do meio não‑conformista dominante do período vitoriano médio, em Birmingham, que asseguravam alianças para manter o poder na política local. (Bartley 1996/1999: 9). Esta é, de resto, uma das vertentes do contrato sexual, a que alude Carole Pateman e a que me referirei pormenorizadamente mais adiante.

Segundo a autora, o vínculo proporcionado pelo casamento era encarado de forma semelhante pelas classes trabalhadoras, embora regendo‑se por critérios distintos: as mulheres eram eleitas, tanto pela riqueza com que podiam contribuir para o casamento, como pelas suas aptidões domésticas e ainda pela sua capacidade de procriar. A pressão social levava a que preferissem casar a ser relegadas a uma desconfortável condição de solteiras, («na prateleira», como refere a autora, expressão nada lisonjeira, usada para aludir às

mulheres que não se casavam). Bartley refere a marginalização a que eram votadas na Inglaterra vitoriana e eduardiana, frequentemente confinadas à habitação, onde se esperava que ajudassem nas tarefas caseiras. (Bartley 1996/1999: 9). Com 31 anos à data do casamento, Emma Wedgwood já se aproximava desta condição, o que preocupava a família, tornando a perspectiva do casamento com Charles Darwin porventura ainda mais bem‑vinda do que se tivesse ocorrido anos antes.

E, embora se situem fora do âmbito desta tese as práticas de corte, anteriores ao casamento (ainda que não a moral sexual da época), é curiosa a referência feita por Bartley de que alguns homens das classes trabalhadoras23 não se dispunham a casar antes de se

certificarem da fertilidade da noiva, sendo uma gravidez a confirmação. Este dado é complementado com outro, de que 90% dos casamentos, numa cidade ligada à indústria têxtil, se deram após uma primeira gravidez.24 O casamento tinha implicações no estatuto

legal da população feminina, que perdia no momento em que casava. Bartley explicita aBartley explicita a expressão de William Blackstone, ao afirmar:

In 1815 the law stipulated that husband and wife were one, and the ‘one’ was the husband. Considered the chattels or possession of their husbands, women suffered from a chain of legislative inequality. (Bartley 1����1����� 11).(Bartley 1����1����� 11).

Refira‑se, ainda, que a questão da moral sexual é abordada nos casos de Harriet Taylor e Ellen Ternan, visto que o percurso destas duas figuras foi muito influenciado por um cruzamento entre as iniciativas pessoais e a moral vigente. Com efeito, a reger‑se pelo quadro moral da época, Harriet Taylor não teria encorajado, enquanto casada com John Taylor, uma relação com Stuart Mill, ainda que apenas de troca intelectual, como ambos

23 Naturalmente, a questão não se colocava da mesma forma nas classes média e alta, que cultivavam a

virgindade feminina até ao casamento como um valor.

24 A autora defende que a virgindidade não consistia num valor tão apreciado como poderá pensar‑se, no seio

das classes trabalhadoras, pelo menos durante a primeira metade do século XIX. Como efeito, tornaram‑se comuns, em contraste com as classes média e alta, as relações pré‑matrimoniais, aceites nos meios rurais, para que os maridos pudessem garantir a fertilidade da mulher. «In a northern weaving town, 90 per cent of first births were conceived outside of marriage in the first half of the century». (Bartley 1996/1999: 10).

defendem. Teria permanecido, assim, casada com Taylor até à morte deste, o que não se confirmou. Provavelmente o que viria a acontecer, em caso de uma personalidade mais conformada com os costumes vigentes, era o casamento com Stuart Mill passado um período considerado de decoro, após a morte do primeiro marido. Não tendo assim acontecido, tanto Harriet Taylor como Stuart Mill foram confrontados com a maledicência dos que os rodeavam, tanto os mais próximos, como a família, e ainda amigos e a sociedade em geral, que os condenou publicamente, ajuizou do seu comportamento e discriminou, conduzindo ao seu isolamento.

Já no que respeita a Ellen Ternan, trata‑se de um caso flagrante de simultânea conformidade com os costumes – no sentido em que Charles Dickens, se bem que separado da mulher, nunca assumiu publicamente a relação com a jovem actriz – e, também, um confronto, na medida em que o escritor deixou a mulher, a residência da família e encetou uma relação clandestina com Ellen Ternan, que se prolongou até ao final da sua vida. Fazendo um exercício semelhante ao do parágrafo anterior, a reger‑se pelos costumes aceites pela sociedade vitoriana, Dickens teria permanecido junto da mulher, muito embora infeliz e desavindo, como era público, podendo escolher manter uma relação, certamente clandestina, com outra pessoa, escolha essa no que certamente não seria excepção no seu tempo.

No âmbito do casamento, a desigualdade de homens e mulheres revelava‑se na forma como o poder de decisão cabia ao marido, quanto ao local de residência, e a legislação ainda legitimava – passe a redundância – a violência doméstica ou mesmo a ausência de mobilidade, situação que Bartley aponta como sendo ocasional. Seja como for, existiam enquadramentos legais para o casamento: a Common Law25 e a Equity Law. O primeiro

regulava os casamentos das classes trabalhadoras e penalizava profundamente a mulher, considerada propriedade do marido, embora também o tornasse responsável pelas dívidas eventualmente contraídas por ela, mesmo que sem o seu consentimento; quanto ao segundo, decorria da celebração de acordos pré‑nupciais, proporcionando segurança à família dos pais que, assim, se prevenia contra genros porventura gastadores. Este sistema previa a

25 A designação common law marriage podia referir‑se a uma união informal consagrada pelo hábito, ou ainda

instituição de fundos destinados aos filhos do casal e permitia às mulheres gastarem o dinheiro que lhes pertencia ao seu critério, tornando‑as financeiramente independentes. Ainda segundo a autora, este sistema legal era aproveitado apenas por 10% das famílias, dado a complexa preparação exigida e os consequentes custos, só acessíveis aos mais abastados. (Bartley 1996/1999: 12).

Neste contexto, há que ter em conta os diferentes níveis sociais e momentos da era vitoriana, que não foi uniforme, e durante a qual se assistiu a alterações de comportamentos, tanto sociais, como no âmbito da família e na organização desta instituição, consoante o poder aquisitivo e o estatuto social em causa. O casal Wedgwood/Darwin é exemplo desse processo. Paradigma da altura na forma de organização de uma família abastada e numerosa, de um casamento com longevidade, o casal Wedgwood/Darwin protagonizou, além do mais, a concretização de uma harmonia conjugal numa situação extrema, com vicissitudes de diversa ordem, à custa – acredita‑se – da índole complacente e conciliadora de Emma Wedgwood e, certamente, também da de Charles Darwin. Um dos momentos críticos, na história desta família, consistiu na perda da filha Annie (1841‑1851) e revela o perfil psicológico de Emma Wedgwood, comentado por Gerturde Himmelfarb: «She preferred to mourn in private and Emma Darwin has been described as a “stronger‑minded, tougher person than Charles”». (Himmelfarb 1959: 441).

As polémicas em que o cientista se envolveu, o impacte da edição das suas obras, em particular On the Origin of Species, e a fractura que a sua postura perante a Religião implicou, dadas as convicções inabaláveis de Emma Wedgwood, não devem ter sido fáceis de gerir no dia‑a‑dia da família. Estas questões colocam‑se em acréscimo às que a mulher de Darwin teve de enfrentar: o nascimento de dez filhos e a morte de três deles, para não falar na ocorrência, referida por Edna Healey, de gravidezes que não chegaram ao fim; a falta de saúde do marido, agravada com o envelhecimento; uma complexa gestão, a seu cargo, da residência familiar, apropriada à dimensão da família nuclear e agregada, com o pessoal inerente ao serviço; além da vida social a que o estatuto de Charles Darwin o obrigava, algo sobre o que não existe inteiro consenso nos testemunhos dos dois. Se, em

Autobiography, Darwin reclama isolamento social, o testemunho de Emma Wedgwood nos

A ideia de que a solução por instalar a família em Down foi uma forma de Darwin se resguardar de uma maneira que, em Londres, não lhe seria permitida é corroborada não só pelos seus textos, como os de outros autores. A própria forma de Darwin se socializar, pesando prós e contras, está bem patente na famosa lista em que avalia as vantagens e desvantagens do casamento, que vai ligá‑lo para alguém para toda a vida e, certamente, distraí‑lo da sua ocupação de eleição: as suas pesquisas. Por outro lado, o débil estado de saúde de Darwin impunha limitações à sua mobilidade, crescentes com o avançar da idade.

When all or most of you are at home (as, thank Heavens, happens pretty frequently) no party can be, according to my taste, more agreeable, and I wish for no other society. (Darwin 1����1���: ��).(Darwin 1����1���: ��).

Já Emma regista, nas suas agendas, uma vida social relativamente animada. O facto de se dispor a alugar casa, quase sempre na praia, para toda a família, incluindo Erasmus, irmão de Charles e os seus, e ainda alguns amigos, testemunha bem a disponibilidade de Emma para a vida social, numa altura em que as férias de Verão não eram a prática obrigatória de hoje em dia, extensiva a todas as classes sociais.

O papel esperado de Emma Wedgwood, visto não só o relevo social que a precedia, na sua origem familiar, era de acompanhar o marido, fazendo com que a residência, seu espaço de intervenção por excelência, fosse um garante de segurança e paz e permitindo que Darwin mantivesse um ritmo de trabalho regular, sem interferências. Dada a sua intervenção pública e a ressonância da sua produção escrita, o cientista já estava suficientemente exposto, ao figurar no centro de polémicas. Emma excedeu, no entanto, as funções de uma mulher, mãe e dona de casa exemplar: o que se sabe sobre ela representa‑a como alguém dotado de inexcedível energia, autêntico pivot da família, presença constante e com uma palavra a dizer em todas as circunstâncias. Era dotada, ainda, de uma cultura e informação actualizadas, o que lhe permitia acompanhar e fazer uma leitura crítica da produção teórica do marido, nunca se mantendo alheada dos seus progressos.

Outro traço de família que distingue Emma Wegdwood, herdado do pai, foi a consciência do seu lugar na hierarquia social. ��he was no snob, and had a strong commitment��he was no snob, and had a strong commitment to improving the lot of the poor. �he was no sentimental do gooder. ��eale�� 2��2�� 2���.�he was no sentimental do gooder. ��eale�� 2��2�� 2���. Para ilustrar esta faceta do carácter de Emma Wedgwood, a biógrafa recorda um episódio, que se prende com a chegada de Richard Litchfield26 ao círculo familiar, ao casar com

Henrietta. Litchfield mantinha ligações com um núcleo da classe trabalhadora, integrado por pessoas inteligentes e empenhadas em melhorar o seu nível cultural e social, um fenómeno que, até então, Emma desconhecia.

A descrição da sobrinha, �now Wedgwood, sobre Emma, sublinha a junção de dois elementos pouco frequentes. Por um lado, a extrema devoção a Charles Darwin; por outro, a imparcialidade. ��eale�� 2��2�� 2�2�. Ainda assim, surgiam, por ve�es, momentos de tensão��Ainda assim, surgiam, por ve�es, momentos de tensão�� «It was Emma’s – and Charles’s – sense of humor that saved many a difficult moment in their marriage». �Healey ������ ����. �ora das questões do �mbito familiar, Emma �edgwood�Healey ������ ����. �ora das questões do �mbito familiar, Emma �edgwood fa�ia justiça à sua herança familiar, como alguém informado �lia o Times�, sobre a actividade política no país e no estrangeiro.

Na intimidade, a informação conhecida a respeito da família Darwin leva a crer que o cientista não se comportou com os filhos da forma distante que caracterizava a conduta de um gentleman vitoriano do seu estatuto social. Manteve, ao contrário, um estreito contacto com os mais novos, acompanhando o seu crescimento e desenvolvimento físico, intelectual e emocional.27 O mesmo aconteceu com Emma Wedgwood, a julgar pelos testemunhos,

nomeadamente de �rancis Darwin e Henrietta Litchfield.

Não é de surpreender que, tendo construído a sua vida em torno da figura de Darwin, Emma se tenha ressentido profundamente do desaparecimento do cientista. Na fase subsequente, permitiu‑se a dedicação a interesses antigos, entretanto negligenciados, encontrando na família novos pontos de interesse para o seu quotidiano.

26 O marido de Henrietta, filha do casal. Ambos pertenciam a uma associação intitulada Working Men’s

College, que promovia excursões. Uma visita à casa de Down, no Verão de 187�, foi incluída numa destas

saídas, deixando Emma pouco à vontade com as visitasm o que não a impediu de os receber com elevada cortesia. ��eale�� 2��2�� 2���.