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4. A MORTE NOS CONDUZ A UM CANTO

4.2 Casas da palavra

Para Eneida Maria de Souza, a crítica biográfica permite o estudo da literatura “além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção” (SOUZA, 2002, p.111), numa proposta distinta do biografismo que privilegia a totalidade do sujeito pelo viés da linearidade histórica de sua trajetória. Ao seguir essa linha de influência teórica, o estudo de fontes primárias de acervos literários articulado à produção literária dos escritores proporciona a análise e construção de peças ornamentais e polimorfas de interesse investigativo para o pesquisador, no que se refere à conjugação de múltiplos discursos entre vida e obra, além de viabilizar a conservação imortalizada da imagem autoral.

Louis Hay (2003), ao traçar um panorama histórico sobre a eclosão da crítica genética na Europa – sobretudo na França e Alemanha – aponta como essa área inicialmente vinculada à arte e à análise literária consolidou-se como disciplina em outros campos do conhecimento como história, psicanálise e semiótica. Hay afirma que os estudos de manuscritos possibilitaram – a partir da análise do processo criativo – que a literatura saísse das gavetas de acervos privados para se legitimar como saber artístico. Ademais, o estudioso acrescenta a importância da disposição desses documentos ao acesso público.

O surgimento dos acervos literários no Brasil se dá oficialmente em 1962, com a criação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), que possui acervos de importantes autores da nossa literatura, dentre eles Mário de Andrade, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Uma década depois, a Fundação Casa de Rui Barbosa decidiu reunir arquivos de escritores e outros intelectuais. Localizada no Rio de Janeiro, ela dispõe de mais de 66 arquivos e 29 coleções de nomes como Cruz e Sousa, Pedro Nava, Cornélio Penna, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Clarice Lispector, Lúcio Cardoso, Caio Fernando Abreu, dentre outros. Para a chefe do arquivo de Literatura Brasileira, Eliane Vasconcelos, “os arquivos são caracterizados como conjunto de documentos organicamente acumulados, cujas informações permitem a trajetória de vida do seu titular. As coleções, ao contrário, são documentos esparsos, que não permitem essa reconstituição” (VASCONCELOS, 2000, p.46).

A partir de então, universidades públicas também se interessam pela preservação da memória de seus representantes culturais. Em 1978, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) criou o Centro de Estudos de Murilo Mendes (CEEM), que possui uma biblioteca com mais de 2.800 volumes. Em 1984, foi a vez da fundação do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CeDAE) na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), cujo objetivo é reunir documentos de interesse literário e linguístico. Seu espaço contém fundos documentais de Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Nestor Perlongher, Hilda Hilst, entre outros.

Em 1989, em virtude da Semana Henriqueta Lisboa na Faculdade de Letras (UFMG), comemorou-se a chegada do arquivo pessoal da escritora, seguida de outros autores que compuseram o Acervo de Escritores Mineiros (AEM): Murilo Rubião, Cyro dos Anjos, Oswaldo França Júnior e Abgar Renault e, mais recentemente, Fernando Sabino, Octávio Dias Leite, Wander Piroli e Lúcia Machado de Almeida. Tais acervos têm o intuito de recriar o ambiente de trabalho dos respectivos autores. Como espaço de investigação cultural, o AEM – por meio de

seu caráter museológico – possibilita o estudo de inúmeras trajetórias e conjugações biográficas e documentais.

O Fundo Henriqueta Lisboa foi doado pelos familiares à UFMG quatro anos após a morte da poeta, ocorrida em 1985. Nele se encontram documentos pessoais, quadros, móveis, fotografias, periódicos, correspondências com outros intelectuais, primeiras edições de seus livros, poemas manuscritos/datiloscritos e sua biblioteca. Já o Fundo Hilda Hilst foi vendido pela escritora à UNICAMP nos anos de 1995 e 2000. É composto por correspondências, fotografias, agendas/diários, recortes de jornais, manuscritos/datiloscritos, primeiras edições de seus livros, documentários, dissertações e teses escritas sobre a poeta e parte de sua biblioteca. Objetos pessoais e grande parte do seu acervo bibliográfico, assim como documentos primários e móveis, encontram-se na Instituição Hilda Hilst Casa do Sol Viva, sítio localizado a 11km de Campinas, lugar onde a escritora viveu da década de 1960 até sua morte, ocorrida em 2004.

Ao revisar o acervo poético pertencente à biblioteca de Henriqueta Lisboa, encontrei como vestígio para esse encontro o livro Da morte. Odes mínimas (1980), de Hilda Hilst com dedicatória da escritora datada de 1984, o que transparece o interesse da poeta mineira em colecionar livros sobre morte e seu interesse pela literatura da poeta paulista. Pesquisando o Fundo Hilda Hilst, localizado no Centro de Documentação Alexandre Eulálio/CeDAE/UNICAMP, encontrei os livros Vivência poética (1979) e Pousada do Ser (1982), de Henriqueta Lisboa enviados como agradecimento pelo livro ofertado por Hilst. Esta troca marca certa aproximação, supostamente único contato entre as escritoras.

FIGURA 7 – Dedicatória de Henriqueta Lisboa para Hilda Hilst. Centro de Documentação Alexandre Eulálio/CeDAE/UNICAMP. Foto: Rodrigo Oliveira.

FIGURA 8 – Dedicatória de Hilda Hilst para Henriqueta Lisboa. Acervo de Escritores Mineiros/AEM/UFMG. Foto: Henrique Teixeira.

Em substituição a missivas não trocadas entre as poetas, ambas as dedicatórias, marcadas pela palavra “admiração” – que em sua etimologia aponta para espanto, surpresa –

revelam formalidade, reverência e impessoalidade da correspondência. Afinal, tudo que é privado pertence ao íntimo? Tal representação convida a refletir sobre uma das aporias mais freqüentes em arquivos pessoais tornados institucionais, considerando as interferências e consonâncias existentes entre o âmbito público e o âmbito privado.

Conforme observa Leopoldo Comitti (2000), o próprio processo inicial de doação, traslado, realocação, deslocamento de documentos pertencentes à esfera pessoal, já postula modificações contextuais no que tange a sua recepção, organização e exibição no espaço público. Como especificidade dessa prática, Terry Cook salienta a participação e interferência do arquivista não somente como protetor, arconte, guardião da memória alheia, mas também sua importância na função de mediador no circuito de divulgação e análise dos processos criativos dos documentos:

os arquivistas precisam mudar o foco primordial de sua atenção, deixando o cuidado daqueles artefatos físicos (os documentos) para passar à pesquisa e ao entendimento das funções e atividades dos criadores de documentos, e dos processos correlatos de geração de registros, para que o arquivos possam efetivamente ser criados. (COOK, 1998, p.143)

Além do controle patrimonial, do regime classificatório dos inventários e da conservação dos fundos documentais, há simultaneamente a dimensão infinita de articulações informativas que se pode produzir em arquivos e, consequentemente, a construção de impressões subjetivas provenientes do trabalho investigativo. Como pesquisador do Acervo de Escritores Mineiros (AEM) e membro da comissão institucional de política de acervos da UFMG, Reinaldo Marques concebe a representação cultural dos arquivos de escritores por meio de uma ótica transdisciplinar, pois esse exercício científico promove o trânsito entre os saberes oriundos da arquivologia, sociologia, história, filosofia, psicanálise, crítica literária, crítica genética, arqueologia e artes (fotografia, pintura, escultura, etc).

Além disso, a permanência e função utilitária desse espaço incluem intervenções do público visitante em geral e, diretamente, do leitor especialista, que pela via do olhar propõe articulações entre documentos esparsos, biografias descontínuas e, consequentemente, deixa suas “pegadas”, leituras subjetivas ao construir o seu itinerário investigativo dos elementos componentes. Para Marques, nesse campo de atuação, objetos e documentos proporcionam a poética do olhar, pois:

destituídos de sua função prática, seus elementos constitutivos se oferecem como que voluptuosamente aos nossos olhares, estabelecendo secretas relações entre o presente e o passado, entre um mundo visível e um mundo invisível – uma biografia, um contexto histórico e cultural arruinados pelo tempo – que procuramos recuperar como pesquisadores. Há um prazer voyeurístico no lidar com os arquivos e acervos. (MARQUES, 2000, p.31)

Além da possível busca do tempo perdido do arquivo literário, no que se refere à presentificação/reelaboração do passado. Wander Melo Miranda concebe esse movimento enquanto garantia e projeção de uma memória futura, pois:

penetrar no labirinto de livros há muito lidos ou folheados, velhos manuscritos e cartas, antigas fotos e objetos, é desfiar o tecido dos acontecimentos a que dão forma – resíduos, rastros –, até transforma-los numa urdidura sempre refeita, recriada, renovada: o passado como lugar de reflexão do futuro a que somos chamados a inventar. (MIRANDA, 2007, p.3)

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