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3. HILDA HILST: DA MORTE (DES) FIGURADA

3.3 Da face desfigurada

Os moldes da morte analisados anteriormente servem como eixo metodológico e “abre alas” para o conjunto de alegorias móveis e mutantes que se segue. Ao se pensar nas esferas figurativas mais protuberantes, o feminino e o animal, dentro da multiplicidade performativa de Da morte. Odes mínimas, o conceito de devir, de Gilles Deleuze oferece subsídios para se analisar as mutações coexistentes entre essas duas matrizes simbólicas.

Para Deleuze (1997), escrever não é impor uma forma a uma matéria vivida, mas, ao contrário, esse ato está do lado do inacabamento. E o devir assinala essa transmutação, processo infinito. Trâmite gerador de um devir-mulher, devir-animal ou vegetal, devir-molécula, e até um devir-imperceptível. “Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, mimese), mas encontrar a zona de indiscernibilidade ou de indiferenciação [..] O devir está sempre ‘entre’ e no ‘meio’[...]” (DELEUZE, 1997, p.11). Segundo o filósofo, não há um processo mimético, transfusão representativa entre os meios, pois não se imita um animal ou uma planta, mas este trabalho origina-se de linhas de fuga6, na medida em que, no processo da escrita, animal, planta e

homem são, de forma intercambiada e concomitante, adulterados pela palavra poética. “É, antes, um encontro entre dois reinos, um curto-circuito, uma captura de código onde cada um se desterritorializa” (DELEUZE, PARNET, 1998, p.36).

O devir em questão se constitui por vias de mão dupla entre eu-lírico e Morte na poesia de Hilst. A própria metáfora-conceito “Dorso mutante” – verso da ode III – direciona-se para o trânsito de máscaras a serem (re)modeladas e transfiguradas como a enumeração deleuziana suscita. Na dimensão do jogo apropriativo entre significante e significação mortuária, nota-se certo processo de metamorfose num mesmo poema. A partir dos rótulos de natureza mais fixa apontados (feminino e animal), o eu-poético embaralha, redimensiona as vestimentas

6 Este conceito aponta para o ato da escrita como experimentação. Representa uma transgressão das palavras de

supostamente definidas ao estatuto de máscaras provisórias. No campo do desejo, a própria “cavalinha” adquire outros travestimentos:

Os cascos enfaixados Para que eu não ouça Teu duro trote. É assim, cavalinha Que me virás buscar? Ou porque te pensei Severa e silenciosa Virás criança

Num estilhaço de louças? Amante

Porque te desprezei? Ou com ares de rei

Porque te fiz rainha? (HILST, 1998, p.41)

Pode-se pensar na progressão desse trânsito de disfarces duplos: prisão/liberdade, repulsa/desejo, saber/conhecer, homem/animal, homem/planta como disfarces sobrepostos que culminam com a desfiguração mortuária:

Funda, no mais profundo osso. Fina, na tua medula

No teu centro-ovo. Rasa, poça d’água Tina. Longa, pele de cobra, casca. Clara numas verticais, num vazado de sol Da tua pupila. Paciente, colada às pontes Onde devo passar atada aos pertences da vida. Em tudo és e estás. (HILST, 1998, p.49)

A compilação de imagens opostas “Funda”/“Rasa” e a tessitura multiforme projetada desnudam a apreensão da morte enquanto corpo camaleônico, disforme, em devires que abarcam entranhas “Fina, na tua medula” e exterioridades “pele de cobra”. O Verso final “Em tudo és e estás” corrobora a constante perspicácia observadora do eu-poético e o valor onipresente da outra figurada.

Esse advento da máscara mortuária em transfiguração pode ser encontrado na poesia de Henriqueta Lisboa, por meio da metáfora, em “O véu”:

Os mortos estão deitados e têm sobre o rosto um véu. Um tênue véu sobre o rosto. Nenhuma força os protege Senão esse véu no rosto. Nenhuma ponte os separa dos vivos, nenhum sinal os distingue mais que o véu baixado ao longo do rosto. O véu modela o perfil [...] acompanha o arco dos olhos, sobe na asa do nariz,

cola-se aos lábios. O morto respira por sob o véu. [...] Um véu como os outros, tênue, guarda o segredo dos mortos. Nada mais do que um véu. Reminiscência de outros véus, de outras verônicas, de outras máscaras. Símbolo, estigma. Dos inumeráveis véus

que os vivos rompem ou aceitam, resta para o morto, apenas, um véu aderido ao rosto. Entre a vida e morte, um véu.

Nada mais do que um véu. (LISBOA, 2004, p.9)

O véu é caracterizado como recurso constitutivo da máscara dos mortos, traceja o contorno da face, configura a existência, apresenta-se como divisor entre a vida e a morte. No entanto, ele revela a própria fragilidade da máscara, de maneira que há um “não saber”, palavra velada, uma parte desfigurada da morte que se instala nessa fronteira fina, linha tênue entre os dois espaços, pois “Entre a vida e a morte, um véu/Nada mais do que um véu.”. Em “Reminiscência de outros véus,/de outras verônicas, de outras/máscaras. Símbolo, estigma.” vigoram as pequenas mortes em vida como Hilst retrata (“Perdas, partidas,/Memória, pó”) representadas por um estigma, cicatriz no corpo discursivo de ambas as poetas ao tratarem do tema. Contudo, a face proposta por Henriqueta concebe o véu como item minimizado, máscara, ainda que enigmática ou frágil, mas definitiva: “resta para o morto, apenas,/um véu aderido ao rosto”. Ao contrário, na poética hilstiana há uma motivação de ruptura do véu:

Porque é feita de pergunta De poeira

Articulada, coesa Procuro tua cara e carne Imatéria.

Porque é disjunta Rompida

Geometral se faz dupla Persigo tua cara e carne Resoluta.

Porque finge que franqueia Vestíbulo, espaço e casa Se sobrepondo de cascas Gaiolas, grades

Máscara tripla

Persigo tua cara e carne.

Comigo serrote e faca. (HILST, 1998, p.51)

A Morte assume nessa ode feições dissonantes potencialmente mescladas “de pergunta”, “de poeira”, “articulada”, “disjunta”, “geometral”, o que lhe confere formato perecível e fugacidade representativa. O devir-animal é aqui minimizado pelos seus resquícios espaciais de circunscrição e aprisionamento “cascas,/Gaiolas, grades”. Em “Geometral se faz dupla” pode-se reconhecer os móbiles fixos do animal e do feminino, símbolos insistentes como se evidencia em “Persigo sua cara e carne”, junção objetiva do sujeito poético ao intentar somar prazer e conhecimento. “Serrote” e “faca”, instrumentos cortantes, servem, respectivamente, de metáforas indumentárias para a escrita: máquina de datilografar (ruído) e caneta (furo na página) para elucidar a morte.

É característico da poesia lírica reproduzir involuntariamente imagens efêmeras e disformes, pois “quando falamos em poesia lírica, por essa razão, em imagens, não podemos lembrar absolutamente de pinturas, mas no máximo de visões que surgem e se desfazem novamente, despreocupadas com as relações de espaço e tempo”. (STAIGER, 1997, p.45). É o que representa a configuração mortuária presente em Da morte. Odes mínimas. Ainda que haja formatos pictóricos e verbais explicitados, observa-se a máscara modelada de acordo com o fluxo nominativo fugidio da linguagem, que apresenta contornos perfilados híbridos e desfigurados.

O advento da máscara como alegoria poética é pertinente, pois como bem ressaltou Edson da Costa Duarte (2006), a poesia hilstiana compreendida entre 1974-1995 é fundamentada pela encenação dramática, tentativa intrínseca de diálogo com um interlocutor discursivamente mascarado (amor, morte, erotismo, Deus e loucura). Observação de grande valia, uma vez que a poeta escreveu sua dramaturgia em fins dos anos 1960 e, possivelmente, alguns resíduos desse trabalho adquiriram outros atributos e significações sob o viés da poesia.

Essa poética desfigurativa em Hilda Hilst difere de Henriqueta Lisboa pelo uso da enumeração dos poemas em substituição ao ato de intitular, bem como pelo uso de nomes mutantes, rasuras identitárias a ela ofertados, tais como “dorso mutante”, “corpo de ar e marfim”, “Rosto de ninguém”, “Nada”, “cara de cal”. Elementos que acabam por inscrever a obra numa poética de desmetaforização de um conceito decisivo acerca da morte, que é por si própria sem face, de natureza imprevisível.

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