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3.3 N ÃO DEIXAR ESQUECER : A POLITIZAÇÃO DA VIDA DAS MULHERES

3.3.1 O CASO DE M ÁRCIA L EOPOLDI

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Entre as mobilizações feitas pela UMSP, durante a campanha, destaca-se nas narrativas das entrevistadas o caso de Márcia Leopoldi, uma jovem estudante de arquitetura que foi assassinada pelo ex-namorado, José Antônio Brandão Lago, em 1984, em Santos. Para Amelinha, esse caso foi expressivo do momento, pois transmitia a tônica da violência crônica que existia e que veio a público nos anos de 1980; e, por outro lado mostrava a banalidade com que o assunto era tratado, mesmo com a instauração das delegacias das mulheres e de outras políticas públicas. Portanto, avalia que tanto por parte do Estado, como da sociedade, havia uma dificuldade muito grande em reconhecer e condenar alguém por assassinar uma mulher. Como narra:

O Laguinho é um caso que está dentro disso aí, mas a Deise vem em 1990, mas o caso é dessa época (1980). Então, nesse período, tiveram muitos assassinatos e muita impunidade e, ao mesmo tempo, tem essa violência cronificada que é contra as mulheres que acontece todo dia dentro de casa e que as mulheres, com medo de serem mortas, denunciam e acabam sendo assassinadas ou se sentem ainda mais ameaçadas.301

Deise Leopoldi, irmã de Márcia e militante da entidade desde então, procurou a associação feminista em busca de mobilização política para conseguir fazer com que o acusado fosse condenado. Cabe destacar que, longe de muitos casos que apareciam na UMSP, o de Márcia tratava-se de uma família de classe média com recursos para a contratação de advogado. No entanto, nem esses fatores, que são lidos em nosso sistema jurídico como pontos que “favorecem” a conquista da justiça, foram eficientes para que o autor, também pertencente à classe média alta, não saísse em liberdade. Deise, que na época morava no interior do Estado, conta que se articulou, desde os anos 1970, em movimentos sociais. Contudo, diz que, mesmo tendo o feminismo como parte de suas experiências, o envolvimento na militância se deu a partir da morte de sua irmã. Como ela se lembra:

E em 1992, eu entrei para a União de Mulheres. Em 1989, eu consegui apoio porque ela era uma jovem estudante de arquitetura em Santos, mas quando eu busquei a mídia eu não tive receptividade. E em 1992, por meio do movimento feminista, muito mais articulado, tornamos a questão política. Nós levamos três ônibus de Pindamonhangaba, contratamos um advogado de primeira linha, que era um machista, mas o único que poderia bater o outro. Nós articulamos muito bem com a Casa das Mulheres Negras de Santos e com o movimento de Direitos Humanos e aí ele saiu condenado por quinze anos e saiu preso. Foi uma grande vitória. E isso porque a gente não desistiu, procuramos contato aqui e acolá.302

301 Entrevista Maria A. A. Teles, São Paulo, 12/01/2012. 302

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Julgamento do caso de Márcia Leopoldi, Santos-SP, 1992. Arquivo UMSP.

Em 1992, antes do segundo julgamento, as militantes da UMSP e do Coletivo de Mulheres Negras de Santos entraram no desfile das escolas campeãs da cidade de Santos carregando faixas e distribuindo panfletos para alertar a sociedade sobre o assassinato da jovem cujo acusado permanecia em liberdade há oito anos. Em seguida, organizaram uma passeata com carros, alto-falantes, faixas e folders que enfatizavam o poder de vida e de morte dos homens contra as mulheres. Denunciava-se, assim, que mais uma mulher havia sido morta por ter se negado a permanecer em um relacionamento marcado por violência, cenas que se repetiam cotidianamente. Terezinha, ao se recordar sobre a mobilização, narra que:

Além de levar o ônibus daqui, eu fiquei uma semana com a Deise em Santos e nós panfletamos a cidade inteira, a gente ia para a praia panfletar! Nós entramos em todas as faculdades, porque ela era estudante de arquitetura na época, inclusive panfletamos a faculdade de Direito na qual o diretor era o advogado de defesa do Laguinho. O centro acadêmico topou aderir à manifestação. Lá no Fórum cabiam quatro mil pessoas e nós o mantivemos lotado a noite inteira. A faculdade de Direito em peso foi para lá. Nós paramos a cidade! Nós saímos em passeata da Casa da Mulher Negra com uma placa até chegar lá. O carro de som ficava andando em volta do Fórum. Além do que nós sentamos na rua em frente ao Fórum onde passavam os ônibus que entram no centro de Santos, então, parou tudo! Foi muito legal! 303

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A manifestação contou com a participação do movimento estudantil e de outros grupos sociais, intensificando o repúdio à banalidade. Criméia, ao se recordar desse dia, sugere que a manifestação nas ruas sensibilizou as pessoas, fazendo com que muitas se reconhecessem naquela situação e solidarizassem com o movimento, a exemplo de um grupo de prostitutas que foi levar alimento para as ativistas durante a noite. Como se recorda:

Teve muita mobilização contra essa violência no Fórum de Santos, fechou até as ruas! E teve muita solidariedade, porque nós passamos a noite lá e na rua. E o que eu acho mais bonitinho é que lá pelas tantas da noite um grupo de prostitutas veio trazer sopa para a gente e eu fiquei pensando que elas tinham se identificado com aquele julgamento, porque quantas delas já não tinham apanhado ou não foram mortas, então, elas se sentiram dentro daquele processo.304

A articulação do movimento feminista conseguiu, em um primeiro momento, conquistar a condenação do acusado. No entanto, com o pedido de habeas corpus, o réu foi posto em liberdade e foragiu. Na avaliação de Deise, mesmo com a conquista que as feministas tiveram, o discurso jurídico centrado no poder patriarcal representando pela figura do homem branco e rico permitiu que a condenação não fosse efetivada. Como ela narra:

Nosso judiciário é uma falência, extremamente patriarcal, machista e elitista, e a justiça realmente é cega quando se trata dos despossuídos. Considerando um fato de que a gente tinha condições financeiras de buscar um bom advogado, então, é um processo que não deixou nada para trás, teve apoio de movimento social e foram quase nove anos. Mas era um sujeito masculino e de classe média alta, que tinha uma ficha extensa, nove boletins de agressão contra duas mulheres e um contra um taxista.305

A UMSP, junto ao CLADEM (Comitê Latino Americano e Caribenho de Defesa da Mulher) mobilizou uma ação jurídica transnacional e levou o caso de Márcia Leopoldi à OEA (Organização dos Estados Americanos), ou seja, denunciou o descaso do Estado brasileiro na tentativa de erradicar os crimes de gênero. No mesmo período, o caso de Delvita da Silva Prates, uma jovem que estava grávida quando foi assassinada pelo marido, também foi encaminhado pelo CLADEM à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, configurando-se, ao lado do caso apresentado pela UMSP, nas primeiras denúncias

304 Entrevista Criméia A. S. Almeida, São Paulo, 05/02/2012. 305

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internacionais de violação dos Direitos das Mulheres no Brasil.306 Essas mobilizações jurídicas foram possíveis devido às bases lançadas pela Convenção do Belém do Pará, em 1994, da qual o Brasil foi signatário e que possibilitou aos movimentos feministas acesso a outros instrumentos de mobilização jurídica. A denúncia à Comissão Interamericana é permitida quando todos os demais recursos às instâncias internas do país foram esgotados e, portanto, pode-se apontar a negligência do Estado em cumprir os direitos estabelecidos na Convenção.

Terezinha, ao se lembrar desse momento, aponta para os esforços da UMSP para que o caso de Márcia, assim como outros assassinatos, não caísse no esquecimento, a exemplo das constantes idas ao Departamento de Investigação Criminal para acompanhar a reedição do mandato de procura do acusado que deve ser feita a cada dois meses. Esse era um passo importante para que a denúncia à OEA pudesse ser efetivada. Como diz: “olha era uma vigia constante. E nós tínhamos que arquivar todos esses documentos, pois como nós entramos com um processo na OEA tínhamos que provar que o Estado não estava fazendo nada”.307

Outros casos, como de Maria da Penha, que nomeia a atual lei de inibição e prevenção à violência doméstica e familiar contra mulheres, foram encaminhados por ONGs aos grupos de mobilização do Direito Transnacional, a fim de que o Estado brasileiro fosse punido por colaborar na banalização e naturalização das formas de violência de gênero direcionada às mulheres. O caso de Márcia, o qual teve resposta recentemente, após a publicação do livro Do Silêncio ao Grito não foi considerado pelos órgãos internacionais como exemplo de omissão do Estado, justificado pela falta de legislação compatível com o tipo de crime no período.