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4.2 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E OS D IREITOS H UMANOS

4.2.1 O S D IREITOS H UMANOS DAS M ULHERES

Um dos pontos centrais do curso de PLPs, realizado pela UMSP, é a discussão sobre os Direitos Humanos das Mulheres. Alinne Bonetti, que pesquisou sobre o curso de PLPs, em Porto Alegre, avalia que o recurso a esses direitos é uma estratégia das feministas para propiciar a construção de políticas públicas no combate à violência, sobretudo aquelas que se dão no espaço afetivo e doméstico. Portanto, argumenta que essa é uma forma dos movimentos feministas pressionarem o Estado e, assim, “a luta contra a violência às mulheres passa a ser uma luta pela cidadania das mulheres”.377

As agressões, as apropriações violentas e os assassinatos são, sem dúvida, os maiores problemas enfrentados pelas mulheres em diversos pontos do mundo. No relatório da Anistia Internacional, de 2004, consta que as formas de violência direcionada às mulheres são universais, pois, acontece contra ricas ou pobres, negras ou brancas, muçulmanas, cristãs ou de qualquer outra religião. De acordo com o documento, “(...) uma em cada três (mulheres) do planeta já foi espancada, forçada a ter relações sexuais ou submetida a algum outro tipo de abuso”.378

A violência contra a mulher foi considerada como uma violação aos Direitos Humanos a partir do reconhecimento, em 1993, dos Direitos Humanos das Mulheres. Em 1995, durante a Convenção Interamericana para Punir e Erradicar a Violência, em Belém do Pará, a categoria foi definida como “toda e qualquer forma de violência baseada no gênero que cause danos físicos, psicológicos e materiais à mulher”.379

Essas discussões aparecerem no texto elaborado pela UMSP durante o II Encontro de Violência Doméstica, Sexual e Racial, em 1993, no qual se afirma:

Os direitos das mulheres foram reconhecidos porque houve um movimento mundial para denunciar a violência contra a mulher. Foi feito um Tribunal para julgar alguns casos de violência, dentre os quais, um era o Brasil. Esse Tribunal teve o mérito de mostrar que a prática da violência contra a mulher é uma violação aos Direitos Humanos das Mulheres. Ou seja, nós passamos a ser reconhecidas como portadoras dos Direitos Humanos por termos tido a coragem de mostrar nosso rosto torturado pela violência de gênero e não por termos apresentado um trabalho científico, ou outro tipo de manifestação cultural,

377 Alinne. Entre feministas e mulheristas: uma etnografia sobre as Promotoras Legais Populares e as novas

configurações da política feminista em Porto Alegre. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010, p.41.

378

Vidas Rotas: Crímenes contra mujeres en situaciones de conflicto Relatório da Anistia Internacional 2004 Disponível no site: http://www.amnesty.org.

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artística ou política. Fomos reconhecidas como seres humanos a partir do momento que demos visibilidade mundial para a violência doméstica e sexual, uma violência cotidiana praticada contra as mulheres.380

Como foi dito, entre as décadas de 1975 a 1985, as feministas trouxeram para o debate nacional e internacional as discriminações e formas de violência que cruzam o cotidiano feminino. Abriu-se, então, um diálogo entre movimentos feministas e os órgãos de Direitos Humanos, possibilitando, por exemplo, a criação da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), em 1979, a qual constitui o marco da definição dos Direitos Humanos das Mulheres. Outros encontros foram realizados para firmar esses direitos, tais como a Conferência Internacional das Mulheres, na Cidade do México, em 1975 e a IV Conferência Internacional da Mulher, em Beijin, em 1995.

Esses encontros construíram pontos importantes na defesa dos direitos das mulheres e na tentativa de superação das desigualdades existentes entre os gêneros nos aspectos sociais, culturais e econômicos, refletindo na conquista de leis locais. Em 1996, em uma manifestação na Câmara Municipal de São Paulo, a UMSP defendeu os Direitos das Mulheres como uma violação dos Direitos Humanos e teceu uma crítica ao conceito masculino de humanidade que não “sexualiza os sujeitos”. Segundo o documento, a crítica era decorrente:

(...) da nossa condição de militantes de esquerda, que via com desconfiança a política dos Direitos Humanos, que escamoteava a luta de classes, como na condição de militantes feministas que já percebia o conceito androcêntrico dos Direitos Humanos. Ou seja, na política dos Direitos Humanos o homem é o único paradigma de humanidade.381

Emílio Crenzel, ao analisar os processos políticos de reconstituição da memória sobre o desaparecimento dos militantes de esquerda, na Argentina, durante o regime militar, avalia que houve uma “humanização” dos desaparecidos políticos como tentativa de politizar a vida desses indivíduos e evitar que os horrores perpetrados pelo Estado naquele período voltassem a ocorrer. 382 Nesse sentido, a democracia política seria a solução para que as situações “onde tudo é possível” não mais se repetissem. O autor avalia, porém,

380

Texto do II Encontro Violência doméstica, sexual e racial. Painel I - Resgate e Reparação, 1993. Arquivo da UMSP.

381

Os Direitos Humanos das Mulheres. Documento apresentado na Câmara Municipal de São Paulo, junho de 1996. Arquivo da UMSP

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que esse processo apaga os conflitos e paradoxos existentes na militância de esquerda e se afasta do discurso revolucionário que compreendia a violência do Estado como algo inerente ao sistema capitalista e liberal.

Entre as feministas, o recurso à defesa dos Direitos Humanos das Mulheres também passa por paradoxos e não é consenso. Nessa trilha de reflexão, Braidotti afirma que de um lado os Direitos Humanos é uma espécie de “guarda-chuva” que tenta dar conta de responder às omissões do sistema legal clássico, às contradições do capitalismo avançado, à explosão e à fragmentação do sujeito na modernidade, enfim, à invisibilidade ou a “ilegalidade”, como diz, que representa uma série de indivíduos sociais flutuantes. Por outro lado, falar em tais direitos lhe é preocupante, pois, associa-se à clássica declaração dos “Direitos Humanos” que é um discurso normativo, branco, eurocêntrico e “muito masculino”.383

Nesse sentido, em sua análise “há muita retórica nos direitos das mulheres como Direitos Humanos” e, portanto, ao invés desse sujeito neutro, deveríamos falar de ética, de formas de subjetividades duradouras, simbólicas e políticas que possam ser vividas.

Se nos anos de 1980, o feminismo se pluralizou e desfez a categoria monolítica e universal “Mulher”, apontando para as diversidades de experiência que compõem o indivíduo feminino, como, então, lutar pela (re) afirmação dos direitos representativos desse sujeito? Não estaria, novamente, caindo nas armadilhas linguísticas e impondo valores que fazem parte de uma determinada sociedade a um sujeito universal? E quais caminhos seguir para que haja um reconhecimento social de que as mulheres partilham de determinadas experiências que devem ser erradicadas, a exemplo da apropriação violenta e sexual dos seus corpos, sem cair em guetos conceituais ou nos discursos do relativismo ou da imposição cultural?

Ao tratar dos Direitos Humanos das Mulheres, um dos principais pontos de contrassenso é, sem dúvida, a universalidade destes. Nessa trilha de pensamento, Segato reflete sobre até que ponto pode-se falar de uma universalidade de direitos que não interfira na cultura local e que, ao mesmo tempo, não compactue com um sistema de valores que

383 BRAIDOTTI, Rosi. “Deleuze, Ética y Derechos Humanos” In: BRAIDOTTI, Rosi. Feminismo, Diferencia

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autorize, por exemplo, a subjugação e a domesticação dos corpos femininos ou ainda de outros indivíduos marcados por um status de inferioridade e dependência na sociedade. 384

Flávia Piovesan, advogada feminista, avalia que defender os Direitos Humanos das Mulheres não se trata de uma forma de imposição ou de relativismo cultural, mas, de uma maneira de colocar as questões de gênero no discurso jurídico e propor-se a alterar os paradigmas e valores deste campo. Desse modo, a autora afirma que:

Neste cenário as mulheres devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial. O direito à diferença implica o direito ao reconhecimento de identidades próprias, o que propicia a incorporação da perspectiva de gênero, isto é, repensar, revisitar e reconceptualizar os Direitos Humanos a partir da relação entre os gêneros, como um tema transversal.385

Ainda nesta trilha de reflexão, Lagarde afirma que é necessário, dentro do discurso jurídico e do imaginário social, acabar com o “mito” de que a palavra “humana” que acompanha os direitos universais refere-se, também, às mulheres. Para a antropóloga, a humanidade feminina só vem à tona com as marcas da apropriação do seu corpo e de sua subjetividade pelos homens. Portanto, afirma que se trata de reconhecer, neste espaço de luta, a diversidade e pluralidade das experiências das mulheres. Em suas palavras:

A humanidade das mulheres só é reconhecida se sua existência é reduzida à sexualidade, à inferioridade e à minoria. (...) Ser humana, no entanto, significa para nós ter como possibilidade a diversidade das experiências e a inclusão das mulheres como sujeito, como sujeitas, em uma nova humanidade e como protagonistas de nossas próprias vidas. Ser humanas remete às mulheres a estar no mundo, sem mediações, para existir no mundo, conviver e compartilhar com outras e outros, em condições de igualdade.386

A UMSP trabalha com a perspectiva dos Direitos Humanos para as mulheres e partilha das concepções apontadas por Piovesan e Lagarde. Amelinha, em seu livro O que

são os Direitos Humanos das Mulheres, que acredito ser representativo da posição da

associação, enfatiza que tratar de políticas públicas por esse caminho, é estender

384 SEGATO, Rita. “Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos

direitos universais”. Mana 12(1): 207-236, 2006, p. 211.

385 PIOVESAN, Flávia. “Mulher e o debate sobre Direitos Humanos no Brasil”. Disponível em:

http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br.

386

LAGARDE, “Marcela. Identidade de Género y Derechos Humanos: la construcción de las humanas”. In: GRETA, Papadimitriou Cámara (Coord.). Educación para la paz y los derechos humanos. Distintas miradas. Asociación Mexicana para las Naciones Unidas. A.C./ Universidad Autónoma de Aguascalientes y El Perro sin Mecate. México. p. p. 71- 106, 1998.

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visibilidade a setores sociais excluídos ou vulneráveis como mulheres, crianças, populações negras e indígenas, imigrantes, gays, lésbicas, transexuais, entre outros. Seria um modo de reconhecer, juridicamente, a existência desses indivíduos tratados em muitas sociedades de forma marginal e abjeta. Contudo, de acordo com a Amelinha, o principal ponto desse recurso é sua universalidade que permite estabelecer que esses indivíduos marginalizados sejam reconhecidos, também, como humanos. Como afirma:

A principal característica dos direitos humanos é a universalidade, o que quer dizer que todas as pessoas são titulares de direitos humanos e não podem ser usadas diferenças políticas, sociais ou culturais como pretexto para ofendê-las ou diminuí-los; a inalienabilidade, ou seja, não pode ser transferidos de uma pessoa para outra.387

Segundo Bonetti, essa é uma linha de atuação de outros movimentos feministas brasileiros, a exemplo da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA) e o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA). Portanto, avalia que o termo é uma categoria política que tem sido utilizada pelos feminismos como forma de criticar o caráter sexista do discurso jurídico centrado na figura masculina do cidadão. Assim, afirma que a ênfase dada nesse discurso se passa “ao se levar em conta os obstáculos legais do sistema jurídico brasileiro se tratando de questões como aborto, violência doméstica e violência sexual”.388

Assim, o recurso a esse instrumento opera como um mecanismo de crítica ao discurso androcêntrico do Direito a fim de pressionar para que ocorram alterações na legislação brasileira contemplando às especificidades de gênero, como foi o caso da Lei Maria da Penha. Nesse sentido, pode-se dizer que o curso de PLPs atua, também, uma forma de se construir uma crítica feminista ao Direito, ou seja, trata-se de refletir como as mulheres são vistas dentro desse discurso construído no masculino.