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CAPÍTULO 2 Cartografando a polícia em Bello Horizonte

3.1 Tríplice do prazer:

3.1.1 Jogo

3.1.1.1 Caso especial: A escopa de Victorio Lorenzatto

Estava Victorio Lorenzatto, italiano, junto com outros homens por volta de nove horas da noite (ou dez, segundo os registros policiais) em seu estabelecimento comercial, localizado no Barro Preto, jogando, ―simplesmente por puro divertimento‖, a escopa, quando o alferes João Baptista junto com soldados da Força Pública e paisanos recrutados, todos eles armados com um verdadeiro arsenal composto de armas de fogo, facas, cacetetes, invadem o local de forma ―abrupta‖ e, sem motivo justificado, levam ao xadrez da 2ª delegacia os jogadores de escopa que lá permanecem até o final da manhã do dia seguinte. A prisão de Victorio Lorenzatto é um dos poucos casos em que foi possível manusear uma documentação relativamente grande, tanto produzida pela polícia quanto pelos representantes legais dos homens presos, além de uma reportagem de jornal arquivada pela 2ª secção. Sendo assim, pude acompanhar o desenrolar do episódio que levantaram uma série de questões a serem discutidas.

Victorio Lorenzatto e os outros onze homens presos enviaram três documentos para a Secretaria da Polícia nos quais argumentavam que a prisão fora injusta, além de reclamar que o sub-delegado tinha difamado Victorio para imprensa ao classificar seu estabelecimento comercial como casa de tavolagem e jogatina. Mais uma vez, o duplo das pessoas revelou-se. É possível que os homens estivessem jogando a partir das regras e códigos da chamada jogatina, entretanto, eles não queriam se reconhecer e serem reconhecidos como parte dos

documentos do Fundo Polícia não tratam ipsis litteris dos acontecimentos. Ao transformar a intervenção em documento textual, muitos elementos perdem-se já que a dimensão da escrita não consegue capturar o vivido de forma absoluta. Nesse sentido, a escrita desse trabalho é, no limite, a tradução da tradução e por isso partilho

com Pesavento que ―sendo o método de construção da narrativa histórica uma renovada montagem, é na base

deste quebra-cabeças que se possibilitam as explicações, pela composição das peças, as correspondências, as

justaposições e os contrastes.‖ (2005, p.4) 177 APM, POL8 Cx.02 Doc.20.

―desoccupados‖ que agrediam a moral. Para desvincularem-se dessa imagem, utilizaram o discurso moralizante e se descreveram como ―cidadãos pacíficos e hordeiros‖ e ―operarios da Capital‖. Mais uma vez o trabalho é usado como contra argumento ao mundo dos divertimentos.

É provável também que a ação policial, nesse caso, tenha sido de fato violenta, exagerada e despropositada, além de possuir aspectos que mereçam destaque. Essa intervenção não envolveu a guarda civil, pois o policiamento da área suburbana também era feito por soldados da Força Pública.179 Outro desencontro refere-se ao argumento dado pelo sub-delegado para a prisão. Segundo ele, ela foi motivada pela forma desrespeitosa como Victorio Lorenzatto havia se dirigido à autoridade policial caracterizando desacato.

Victorio Lorenzatto e seus companheiros de escopa enviaram três documentos ao Chefe de Polícia solicitando a ocorrência policial a fim de tomarem providências legais sobre suas prisões. O Chefe de Polícia, motivado por esses documentos e pela repercussão do caso nos jornais, pediu explicações ao Delegado da 2ª circunscrição que saiu em defesa do sub- delegado afirmando que a prisão foi resultado de ―circumstancias de occasião‖ afinal, ―desacatado, como diz ter sido o sub-delegado, no exercicio da sua autoridade por Victorio Lorenzato, a prisão deste teve fundamento legal‖. Interessante observar a partilha opositora de linguagem nos documentos produzidos pelos homens presos e pela polícia. Enquanto Victorio Lorenzatto nomeou seu negócio como casa comercial, o sub-delegado o taxa de botequim. Ou seja, configurou-se uma luta de representações a fim de estabelecer distinções, embora as motivações tanto da polícia quanto de Victorio tivessem origem na ideia de filiar-se ao discurso moral.

Baseada no caso de Victorio Lorenzatto e nos jornais, já que a ocorrência de registros policiais sobre o jogo não era muito grande, pude perceber que apesar de todas as críticas e controles morais as pessoas continuavam a jogar, inclusive aquelas endinheiradas. Isso pode ser um indício de que, muito mais no discurso do que nas ações, a polícia foi um agente controlador do jogo, até mesmo porque algumas fontes indicam que os policiais também estavam envolvidos com ele.

O jornal ―A tarde‖, de dezembro de 1914, publicou uma matéria criticando a existência das chamadas ―casas chics‖ de jogo, onde ―as tentações do mundanismo mais irresistivelmente imperam‖ e ―o mulherio é a alma dellas, o chamariz‖. Casas essas que eram

179

Apesar de a intervenção ter sido efetivada pelos soldados, é interessante notar que esses documentos foram encontrados na notação correspondente à Inspetoria da Guarda Civil. Trata-se de mais um indício das nebulosas fronteiras entre policiamento civil e militar em Belo Horizonte.

lugar da ―corrupção e depravação dos costumes‖, frequentadas por gente ―não civilizada‖ atraída pela ―jogatina chic‖ em seus salões ―tarde da noite‖. O jornal ainda fez uma enquete com donos de cinemas e outros estabelecimentos para avaliar os efeitos da ―jogatina‖ na frequência a outros divertimentos. Segundo o proprietário da ―Maison Chic‖, apesar de todos os esforços para ―melhorar o seu estabelecimento, contractando sempre os melhores numeros que apontam no Rio de Janeiro‖, as pessoas continuavam entregues ―a febre do pano verde‖, inclusive os artistas contratados que cumpriam mal seus contratos, pois passavam ―as noites nos salões, esquecidos de seus deveres.‖ Para o jornal, a polícia precisava tomar medidas mais enérgicas e não mais tolerar a contravenção para conseguir promover o ―saneamento social‖, ―a tranquilidade‖ e a ―salubridade moral‖.180