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Como o título acima sugere, esses personagens, muitos dos quais moradores de rua, estão em pleno processo dialético de requalificação social, vindos lá de baixo.

Eles já foram vistos como “mendigos”, “catadores de lixo”, “maloqueiros”, em suma, como um problema para a sociedade. Hoje, exercem uma profissão que é reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações e executam um trabalho que é

considerado como de grande utilidade para a sociedade, o poder público e o meio ambiente, além de importante na cadeia da economia. São, assim, “catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis” (eles pronunciam essas palavras com visível orgulho, conscientes que são da importância de seu trabalho).

O trabalho dos catadores é de grande utilidade para a sociedade porque, como vimos, o modo de produção capitalista caracteriza-se pela produção contínua de mercadorias e embalagens que têm de ser destruídas e repostas rapidamente. É conveniente para o poder público porque o dispensa de fazer a catação e ainda o ajuda a economizar nos gastos com a limpeza pública, já que concorre expressivamente para a diminuição dos resíduos que são coletados pelos caminhões.

E é indispensável ambientalmente porque viabiliza a reciclagem, graças à qual menos resíduos são levados para os aterros, prolongando-se a vida útil destes, e mais recursos naturais virgens são deixados onde estão, inexplorados, como reserva para as futuras gerações.

Há catadores e catadores. Muitos preferem trabalhar por conta própria, sem patrão ou chefe e sem horário fixo. Uma parte destes atua em lixões, outra nas ruas, usando bicicletas ou carros/carroças de mão que, engenhosamente, eles mesmos montam. Onde tem um coletor de lixo, eles param e rapidamente fazem a coleta, desempenhando uma atividade tipicamente extrativista, só que na selva de pedra e asfalto.

Outros têm se organizado em associações e cooperativas, conquistando assim um melhor ambiente de trabalho, com menos riscos à saúde e chances de maior renda. Através de suas entidades, estabelecem parcerias com empresas, órgãos públicos e prefeituras e se colocam em condições de obter benefícios e desenvolver-se, mediante o aumento do volume e melhora da qualidade dos resíduos, treinamentos para melhorar a produtividade, a gestão etc.

Outros, ainda, têm se revelado atores políticos capazes de levar a classe a se organizar nacionalmente e se articular internacionalmente, na luta pelo reconhecimento e valorização do trabalho que realizam e na afirmação de seu protagonismo social. Nas palavras do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), “Nosso objetivo é garantir o protagonismo popular de nossa classe, que é oprimida pelas estruturas do sistema social. Temos por princípio

garantir a independência de classe, que dispensa a fala de partidos políticos, governos e empresários em nosso nome”.32

Como classe oprimida, os catadores, diferentes como sejam entre si, sonham com a transformação da sociedade, a qual querem mais justa, sustentável e sem dúvida que também mais sensível e solidária para com a relevante atividade que executam. Gostariam, assim, que as pessoas descartassem os resíduos de um jeito que lhes fosse favorável, isto é, separando os resíduos secos dos úmidos. Um gesto que não custa nada, mas que faz muita diferença para eles, concretamente (menos risco de acidente, menos mau cheiro etc.), e também, espiritualmente, para quem de repente cai em si e muda de atitude na direção da sustentabilidade, responsabilizando-se pelos resíduos sólidos que produz e ajudando a devolver à biosfera o que é da biosfera e à tecnosfera o que é próprio dela.

Os dados a seguir, constantes do Plano Nacional de Resíduos Sólidos (MMA, 2012, p. 25), apresentam o contexto em que ocorre a atividade de catação de recicláveis no Brasil:

Há hoje entre 400 e 600 mil catadores de materiais recicláveis no Brasil.

Ao menos 1.100 organizações coletivas de catadores estão em funcionamento em todo o país.

Entre 40 e 60 mil catadores participam de alguma organização coletiva, isto representa apenas 10% da população total de catadores.

27% dos municípios declararam ao IBGE ter conhecimento da atuação de catadores nas unidades de destinação final dos resíduos.

50% dos municípios declararam ao IBGE ter conhecimento da atuação de catadores em suas áreas urbanas.

Cerca de 60% das organizações coletivas e dos catadores estão nos níveis mais baixos de eficiência.

A renda média dos catadores, aproximada a partir de estudos parciais, não atinge o salário mínimo, alcançando entre R$ 420,00 e R$ 520,00.

A faixa de instrução mais observada entre os catadores vai da 5ª a 8ª séries.

32 http://www.mncr.org.br/box_1/o-que-e-o-movimento (acessado em 11/6/2014).

7 O EX-LIXO COMO SENHA PARA A MUDANÇA PARA A SUSTENTABILIDADE

Uma das principais figuras da Escola de Chicago de sociologia na década de 1920 e o primeiro a propor os termos “ecologia humana” e “ecologia urbana”, Robert Park dizia que “as cidades e particularmente as grandes metrópoles são a mais grandiosa criação do homem, o mais prodigioso dos artefatos humanos”. “Por isso”, ele propunha, “devemos pensar nossas cidades como laboratórios de civilização e, ao mesmo tempo, como a moradia natural do homem civilizado” (Park, apud HARVEY, 1980, p. 167).

Quase um século depois, período no decorrer do qual o mundo passou por profundas transformações, tais como o surgimento da sociedade de consumo, a emergência da crise ambiental, a quadruplicação da população para os atuais 7,2 bilhões de habitantes e um intenso processo de urbanização que levou mais da metade da população a viver nas cidades, a proposta de Park não pode ser encarada senão como um mandamento. Mesmo as cidades ocupando menos de 2% da superfície terrestre, seu impacto estende-se por todo o planeta. Assim, ou de fato fazemos delas “oficinas de civilização”, forjando um urbanismo e um viver genuinamente humanos e sustentáveis, ou só vamos agravar a crise ambiental, comprometendo o bem-estar das atuais e futuras gerações. Qual é a nossa escolha?

Se é passar da insustentabilidade à sustentabilidade e nessa travessia, na condição seja de profissional do setor de resíduos sólidos ou de cidadão esclarecido que prima em fazer a sua parte, dedicar-se à gestão e ao gerenciamento dos resíduos sólidos, o ex-lixo, então um passo fundamental a ser dado é conhecer e seguir a Política Nacional de Resíduos Sólidos (lei 12.305/2010). Nela são encontradas as definições, os princípios básicos, os objetivos e o conteúdo mínimo que cada plano de gestão integrada de resíduos sólidos deve ter. Seu conteúdo incorpora experiências debatidas e consagradas pela ONU e União Europeia até hoje, além de considerar soluções e experiências apresentadas em todo o mundo.

Outro passo indispensável é nos reeducarmos ambientalmente. Há pelo menos 10 mil anos, desde o início da agricultura, vimos configurando praticamente todo o ecossistema de conformidade com a nossa conveniência.33 Revelamo-nos capazes

33 Acredita-se que o homem vem moldando a paisagem e interferindo no ecossistema desde que passou a dominar o fogo e a usá-lo como arma e ferramenta, cerca de 400 mil anos atrás.

de mudar o mundo, amortecendo o impacto do meio ambiente sobre a sociedade, e fomos ao mesmo tempo modificando a nós mesmos enquanto espécie e indivíduos, biologicamente, culturalmente, socialmente... Mas aí, em consequência do rumo que demos às mudanças, sobreveio a crise ambiental, exigindo que façamos agora o caminho inverso: uma mudança em nós que leve a sociedade a amortecer o seu impacto sobre o meio ambiente.

A hora dessa mudança é já, até porque a geração de resíduos sólidos urbanos tende a aumentar não apenas com o aumento da população, mas também com o aumento da renda e a ascensão das classes desfavorecidas ao consumo, o que é justo. Aquilo que se verificou nos países desenvolvidos pós-Segunda Guerra está agora, guardadas as proporções, ocorrendo nos países em desenvolvimento como o Brasil e a China, entre outros: o aumento da classe média e de seu consumo, o que inclui o acesso a muitos produtos industrializados e embalados que até há pouco não se tinha. Tudo isso, obviamente, aumenta a necessidade de um maior cuidado por parte de quem já consome, se é que, solidariamente, queremos que o conforto e bem-estar materiais sejam universalizados, passando a incluir os dois terços da população mundial que sobrevivem com menos de três dólares por dia. Nesse sentido, coerentemente com os princípios que a norteiam – princípios como a prevenção e a precaução, o desenvolvimento sustentável,34 a visão sistêmica e holística que leva em conta as diversas variáveis (ambiental, social, cultural, econômica, tecnológica e de saúde pública), a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, a cooperação entre as diferentes esferas do poder público, o setor empresarial e demais segmentos da sociedade –, uma das diretrizes da PNRS (BRASIL, 2010a) é:

Art. 9o Na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.

34 Sustentável é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de satisfazer as suas próprias necessidades. O conceito considera o crescimento econômico como inseparável da conservação da natureza. O primeiro documento público a mencionar o termo “desenvolvimento sustentável” foi o relatório Nosso futuro comum, elaborado em 1987 pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU. Esse documento é também conhecido como Relatório Brundtland.

7.1 PRATICANDO OS PRINCÍPIOS DA GESTÃO E GERENCIAMENTO DE