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Catando entre os fios da identidade: mãos que se encontram

3 RECICLANDO PARA TRANSFORMAR A VIDA: CONTANDO A HISTÓRIA DA

4.3 Catando entre os fios da identidade: mãos que se encontram

Paulo Freire (2008, p. 30) observa que ―o homem está no mundo e com o mundo‖. Tem a sua responsabilidade pelo mundo, pela perpetuação da realidade como ela se apresenta, bem como pela sua transformação. Vivemos em uma realidade de consumo e as relações que permeiam todo o nosso modo de ser e de viver remetem à competição, concorrência e exclusão. Existe uma concepção de que o homem basta a si mesmo, que é preciso possuir, dominar e conquistar sempre. Aquilo que pode ser pesado, quantificado, parece receber mais atenção e maior valor. Faz-se necessário, em nossos dias, a consciência do compromisso com o outro, deixando o egoísmo e individualismo. Ter atos responsáveis. Ser presença no mundo, deixando-se afetar e afetando. Mover-se no mundo, sentir-se parte dele e ter consciência de sua ação, sabendo refletir sobre si e acerca de sua ação sobre o mundo, não de forma coercitiva, mas espontânea, criativa. Signor (2004, p. 21) diz que ―o real de verdade está além da pele, mas não sem a pele. Isso quer dizer que é possível tocar a identidade na pele se o toque tiver sensibilidade para isso‖. Os catadores, ao narrarem suas trajetórias de vida, nos falam de seu mundo, sua cultura, valores, sociedade e da forma como se estabelecem as suas relações nesse meio, conforme Lisboa (2009, p. 101):

Nesse processo de construção de uma identidade narrativa, percebemos, enfim, duas pertencimento, referindo aos processos constitutivos de um modus operandi de determinado grupo social com o qual manifesta algum tipo de associação (neste caso, os grupos de recicladores).

Ao realizar as entrevistas com as catadoras, percebe-se que o sentimento de pertencer a uma cooperativa traz novos significados. Muda a relação com o trabalho e com as pessoas.

Muda a forma de olhar para a vida e de perceber o mundo. Elas se reconhecem como trabalhadoras. Estabeleceu-se um vínculo com uma organização, consoante podemos perceber em um dos depoimentos: ―Depois que entrei pra Associação e entrei pra usina, nossa vida melhorou cem por cento. Antes eu estava desempregada. Agora eu já adquiri muitas coisas desde que eu entrei na usina‖. Fazer parte da Cooperativa, de um grupo de trabalhadores de materiais recicláveis, e reconhecer-se catador, superando sentimentos de injustiças, de estereótipos, de estigmas e rótulos, contribui para o prestígio do catador e para a garantia de uma posição social na sociedade. Além disso, cria sentimentos que potencializam os trabalhadores para novos movimentos e ações e para a transformação de suas realidades, afetando e constituindo a identidade. De acordo com o que professa Melucci,

a possibilidade de distinguir-nos dos outros deve ser reconhecida por esses ―outros‖.

Logo, nossa unidade pessoal, que é produzida e mantida pela auto identificação, encontra apoio no grupo ao qual pertencemos na possibilidade de situar-nos dentro de um sistema de relações. A construção da identidade depende do retorno de informações vindas dos outros. Cada um deve acreditar que sua distinção será, em toda oportunidade, reconhecida pelos outros e que existirá reciprocidade no reconhecimento intersubjetivo. (MELUCCI, 2004, p. 45).

É horário do almoço. Todos sentados debaixo de árvores para a refeição. Conversam em tom de voz alto. Liane almoça com certa pressa. Precisa ligar para a sua mãe para saber como está o filho de apenas 10 anos que ficou em casa. Está no horário de o filho ir para o colégio, e algumas recomendações são necessárias. Coisas de mãe. Há, porém, um problema: Liane não tem créditos no seu celular para fazer a ligação. Nesse momento, prontamente e de forma espontânea, Ângela toma o celular que traz no bolso da jaqueta e o empresta para Liane.

Outro dia é Ângela que não tem créditos em seu celular e Liane, ou Rosane, ou outra catadora empresta o seu celular. São gestos de bondade e de solidariedade muito comuns na convivência com as catadoras e catadores.

Na usina, todas as mulheres ocupadas com a seleção do material. A esteira, regulada numa velocidade acelerada, transporta o material, que vem todo misturado. De repente, vêm

espigas de milho verde, que passam por mim e por Odete, que trabalha do outro lado da esteira, quase na minha frente. Odete está ocupada e com as mãos cheias de material, mas sua voz está livre para gritar e pedir: ―Alcance-me o milho‖, para a colega Ângela. Esta responde prontamente, alcançando meia dúzia de espigas, que vão servir uma refeição na casa da catadora. Liane separa o milho, que será levado no final do dia, e volta para a esteira, que continua transportando o material. Desta vez vêm algumas peças de roupa, e Liane as examina para verificar o que pode ser útil para ela. Separa o que lhe serve e alcança as demais peças para a sua irmã, Rosane, que é mãe de dois meninos, 17 e 11 anos. Rosane separa com carinho e coloca em algum lugar próximo da sua posição de trabalho. De acordo com Signor,

a realidade mais real é inatingível por estes olhos, estes dedos. Para se chegar a ela é necessário que intervenham outros olhos, outros modos de tocar. É outra maneira de aprender a ler. (...) Estes outros olhos têm a capacidade de ler dentro, além da palavra, mas não sem a palavra. (SIGNOR, 2004, p. 78).

Rosane trabalhava do meu lado na esteira. Era vaidosa. Suas unhas sempre bem pintadas. O rádio, também como oferta do lixo, estava sempre em volume alto. Enquanto trabalhava, acompanhava cantando as letras ou as cantarolava de memória. Quando precisava me dirigir a ela, minha voz tinha que se sobressair ao volume do rádio. Um dia precisei de uma faca para cortar as sacolas plásticas que vinham sobre a esteira, porque minhas mãos estavam doloridas de tanto fazer força para rasgá-las. Disse a ela que traria uma faca de casa na semana seguinte e ela, mais do que rápido, virou-se para a mesa que ficava atrás de si e alcançou-me uma faca. Depois percebi que ela tinha uma coleção de facas guardadas; todas retiradas do lixo. Estava sempre disposta a ajudar. Foi para ela que Ângela pediu que me ensinasse como fazer a seleção do material.

Nas minhas idas à usina, junto à esteira, foram inúmeras as vezes que presenciei catadoras recolherem roupas, eletrodomésticos, eletrônicos, perfumes, desodorantes, cremes, esmaltes e bijuterias. Frascos contendo um resto de perfume ou desodorante eram esvaziados sobre seus corpos. Muitas vezes eu era atingida por jatos lançados com movimentos intensos, ficando minha roupa impregnada pelos cheiros. A combinação de cheiros parecia não se adequar. Quando os diferentes cheiros se misturavam, causavam uma sensação estranha.

Rosane gostava de esmaltes e recolhia todos os frascos que continham alguma quantia razoável e em condições de uso. Suas mãos também se estendiam em direção a Odete e a Liane, que trabalhavam do outro lado da esteira. As ofertas dificilmente eram rejeitadas por aqueles a quem era oferecido algo.

Seguidamente era encontrado algum celular em bom estado. Quando a pessoa que encontrava o aparelho já tinha o seu, ou o levava para casa ou o dava para uma colega.

Acessórios, como carregadores e baterias, eram retirados em quantidade. Tudo era guardado e, quando vinha um aparelho incompleto, logo estava funcionando. Era interessante a habilidade no processo de montagem. Muitas vezes me ofereciam algo retirado do lixo.

Percebi que me davam com carinho. Era uma forma de me presentear. No início, era tudo muito estranho, mas, com o tempo, procurei compreender a relação que tinham com o lixo.

Era comum ver catadoras irem para casa levando alguma sacola com materiais selecionados durante o dia por elas ou recebido de alguma colega. Certo dia fui surpreendida por Odete, que me alcançou um par de sandálias e, numa outra ocasião, por Rosane, que me alcançou um par de tamancos muito bonitos e em bom estado. Agradeci gentilmente e, ao conferir o número, percebi que não conseguiria usá-los, porque eram de número menor.

Sentiam-se livres para dar e para receber. Seus olhos dos sentidos e da alma não parecem amortecidos e nem contaminados pela sociedade moderna ou pós-moderna para seguir padrões e comportamentos impostos. Para vivenciar outras realidades, com outras formas de expressão e de vida, faz-se necessário transpor fronteiras, permitir-se ir além e despojar-se de preconceitos.

Podiam, com seus gestos, muitas vezes cobrir a pele de uma colega. Quando não chegavam a tocar a pele, conseguiam tocar além dela. Tinham uma sensibilidade para ver e sentir. O gesto de estender mãos que carregavam algo para oferecer não era um movimento no vazio. Havia beleza no gesto. Havia vida. Compreender essas mulheres catadoras em seus gestos é buscar compreender a sua identidade. Não é possível ver a identidade, somente entendê-la. Falar de identidade é falar de vida, de movimento, de emancipação, de autonomia e liberdade. Para Ciampa (1984), não existe uma identidade dada pela natureza. A identidade é um processo que é construído e conhecido pela ação, pelo movimento, ou seja, através da atividade do indivíduo. Outra importante concepção de identidade, para esse autor, é a psicossocial. A identidade com caráter de metamorfose, ou seja, as mudanças ocorrem constantemente, o que, entretanto, não aparece. A aparência da identidade é de algo que não muda.

Góis (1995) refere identidade como o sentir a vida, ou sentir-se vivo, como presença, como vivência biocêntrica, expressão natural e espontânea da vida acontecendo como singularidade, como autopoiesis particular (si mesmo) da autopoiesis universal. É sentir-se vivo e de forma integrada com o outro – um semelhante a mim – e com o Universo. A

identidade se dá numa relação intensa de vida, em um encontro consigo, com o outro e com o mundo.O humano traz em si um potencial de vida que lhe possibilita múltiplas escolhas e realizações. É um ser com autonomia, com singularidades, com liberdade para escolhas e decisões. É uma semente que traz em si um potencial de vida com capacidade de se expandir.

Assim como a semente necessita de nutrição, vínculo e crescimento para a sua sobrevivência, também o humano é uma semente com tais necessidades. É a vivência primordial do sentir-se vivo que fortalece e possibilita o desvelamento da identidade.

Para Toro (2002), a identidade se manifesta somente na presença do outro, ou seja, na relação. A identidade tem gênese biológica e está representada na identidade celular e em outras formas de identidade psíquica e comportamental. A identidade é pulsante e é expressão de potencialidades. Toro organiza e apresenta as potencialidades em cinco linhas de vivências e/ou canais de expressão: vitalidade, criatividade, afetividade, sexualidade e transcendência, que favorecem o autodesenvolvimento do ser humano. São canais de expressão saudáveis e necessários para o pleno desabrochar da vida do ser humano. Para Menezes (1999, p. 6), ―os canais de expressão são necessários para uma identidade saudável‖.

Durante o tempo de permanência no campo com os catadores e catadoras, foi possível sentir um pouco a sua realidade de vida, tentar compreender o que dizem, como pensam e interpretam o mundo em que vivem. Este é sentido por elas, muitas vezes, de forma bem cruel. Ali, na usina, homens e mulheres excluídos de formas reconhecidas de trabalho procuram na catação e reciclagem uma forma de reconhecimento de trabalho, ou seja, uma busca de recuperação da identidade de trabalhadores. Eles conseguem ver o que muitos não veem ao transformar o ―resto‖ da sociedade, o ―descartável‖ e as sobras em matéria-prima, em um bem inestimável para si mesmo, para a sua família e para toda a sociedade. Este bem vai contra os princípios da lógica dominante ao fazer do lixo o seu meio de vida.

Em suas narrativas, percebe-se que compreendem as reações que a sua presença provoca em outros quando estes se sentem ameaçados ou incomodados de alguma forma.

Percebe-se a sensibilidade de Ângela e a sua consciência em relação ao ser catadora, a sua presença neste mundo e com o mundo. Ângela não esconde que é catadora. Estende o seu braço e aponta para a porta da frente de sua casa e diz: ―Tá minha placa ali. Todo mundo que chega na minha porta sabe o trabalho que faço. Então, eu não preciso me anunciar como catadora. Eu já deixo ali. Eu não tenho por que mentir o que eu faço. Minha bandeira tá ali‖.

Bandeira do MNCR afixada na porta da casa da catadora