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Capítulo IV – Apresentação das análises

B. Análise de categorias que reúnem os resultados de todos os

1. Categoria “A criança”

Ao propor uma categoria que investigue o conceito que os professores possuem a respeito da criança, pretendo observar as nuances nos discursos

desses professores que perfazem um saber sobre a criança deste tempo, no contexto atual e dentro de uma comunidade.

Entretanto, a ideia que se tem hoje de criança não é atemporal. A

criança tem ocupado diferentes posições frente às expectativas dos pais e frente à sociedade (ARIÈS, 2012). Sendo assim, os saberes dos professores não são herméticos, eles sofrem influências de diferentes concepções que foram formadas ao longo da história, circulam no meio de atuação desses professores e, de certa forma, encontra-se presente nos discursos.

Segundo Moss (2011) existe um discurso dominante que influencia o pensar, o falar e a praticar dos professores. Nesse discurso existem construções associadas à criança e estas, por suas vezes, produzem imagens distintas de crianças.

Ao indagar os professores, nota-se que representam a criança como um ser ingênuo, puro, carente de amor, de afeição e atenção.

As características que definem o que é ser criança acho que é a ingenuidade. (suj.1)

[...] a criança é involuntária, inocente, porque ainda e uma fase de inocência, pureza. (suj. 22)

Eu acho que criança pra mim representa isso, a pureza, a poesia, a sinceridade, a alegria, acho que pra mim é isso. (suj.14)

A ideia de criança como um ser puro se ancora nos conceitos defendidos por Pestalozzi, que preconizava um entendimento de criança não corrompida pelas influências sociais, um ser essencialmente puro e bom. O homem é naturalmente bom e as instituições o corrompem (PIOZZI, 2011).

É um ser perfeito, quem corrompe é a sociedade. É uma folha em branco. Em branco não por que ela tem os conhecimentos prévios dela. É um diamante que você precisa lapidar. Então, o que estraga é a sociedade, é tudo que acontece por que ela vem uma obra prima e você tem que ajudar aquela criança a se desenvolver, você junto com os pais. (suj. 5)

Cada um já nasce com sua personalidade, a criança que é metódica, de fazer daquele jeito as coisas, de querer aprender, isso é dela, nasce com ela. Você pode melhorar ou lapidar, mas a criança já nasce com aquilo. (suj. 1)

Corroborando com esse pensamento de pureza também aparece a criança como um ser natural e livre, que Froëbel e Pestalozzi já defendiam

influenciados pelo construto iluminista de Rousseau no século XVIII (ARCE, 2002).

Então criança é isso, é a naturalidade. As características que definem a criança eu acho que é o involuntário. (suj.18)

A criança é um ser que é livre, que não tem responsabilidades, que não tem entendimento, só quer saber de brincadeiras, por que ela esta conhecendo o mundo agora. (suj. 7)

Tanto Froëbel quanto Pestalozzi defendiam essa natureza livre da criança. Diziam que essa liberdade deveria ser mantida. Para Pestalozzi, a criança já era possuidora de uma natureza divina que deveria ser cultivada e descoberta com liberdade para que ela pudesse atingir a plenitude. Nesse sentido, o conhecimento era algo que já se encontrava internamente na criança, bastaria ser descoberto, a aprendizagem ocorreria de dentro para fora.

Para Froëbel, existe uma semente divina na criança que reúne o que há de melhor no ser humano. Algo que deveria ser cultivado como uma planta em um jardim, bastaria cuidar da criança para que ela mantivesse sua essência. O segredo para isso estaria em deixar a criança livre e espontaneamente ela expressaria seu interior e perseguiria seus interesses (ARCE, 2002).

Os discursos dos professores carrega a visão de criança buscando referências no conceito romântico. Essa concepção romântica não considera os aspectos sociais, culturais e políticos que produzem efeitos no mundo. Percebe a criança como alguém carente em diferentes aspectos, com características de ingenuidade, sinceridade, espontaneidade e alegria.

Outro conceito aparente nos discursos revela a criança como um ser em miniatura que absorve como uma esponja tudo o que está no meio ambiente.

É um ser em miniatura, criança muito pequena. (Suj. 31)

É a tua base, o que você é quando criança que você leva para vida inteira. Aquilo que é formado quando criança dará o perfil do que será aquela pessoa mais para frente, dependendo das dificuldades que ela vai tendo desde pequena na sua criação. (suj. 27)

Isso reflete uma visão de criança como promessa de futuro, vista como um potencial não realizado, um adulto em espera (MOSS, 2011). Comenius, no século XII foi o idealizador dessa visão, ele via a criança como ponto de partida para constituição do adulto (GAUTHIER, 2010).

A criança, naquele período histórico da idade média, era compreendida como um miniadulto. Isso se dava porque as famílias se constituíam de uma forma em que a criança tinha pouco valor. Para as classes menos favorecidas a criança não era importante, ela só passaria a ter algum valor se contribuísse para o sustento da família, ou seja, se a sua força de trabalho fosse utilizada. Nas famílias mais afortunadas a criança era concebida numa lógica moral de manutenção de bens e fortunas (ARIÈS, 2011).

A concepção de preparação para a vida adulta estava associada às exigências da vida social, ou seja, a criança na idade média iria para escola ou era preparada para os ofícios que constituíam a vida adulta. As idades da vida não eram consideradas pelas etapas biológicas características do processo evolutivo humano.

A criança naquele período era vista como totalmente dependente, A partir do momento que não fosse mais dependente, passaria à vida adulta.

Embora propagado há três século, esse conceito ancora as representações sociais destes professores sobre a criança.

Não obstante, a visão da criança como absorvente de informações é outra representação que se encontra presente no imaginário dos professores.

Ele é como uma esponja que absorve tudo que tem em volta, de bom e ruim. (suj. 27)

Dentro da minha sala de aula eu vejo eles como essa esponja que absorve informações e vão criando uma maneira de agir, tanto no individual quanto no coletivo. (suj. 23)

É como se fosse uma caixinha que você vai instruindo, colocando, e a criança vai absorvendo tudo aquilo, até quando ela tem o suficiente para começar a argumentar, para começar a te questionar, começar a se pôr como pessoas ali. Se colocar como pessoa. (suj. 15)

Este pensamento de crianças como depositárias de informação faz parte de um modelo educacional conhecido como pedagogia tradicional, que dá ênfase à repetição e à reprodução (FARIA, LOPES E MENDES, 2006).

Segundo Paulo Freire (1987), é uma concepção de “educação bancária”, onde a criança é a receptora da informação sem qualquer participação ativa nesse processo, sendo assim, nas palavras desse autor

A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em ‘vasilhas’, em

recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador (FREIRE, 1987, p. 66).

Nessa visão o professor representa a autoridade, cabendo à criança reconhecer e respeitar essa autoridade como forma de obediência. Em outras palavras a criança é vista como um ser passivo que deve obedecer, pois ainda não tem a maturidade adulta, faltando-lhe a razão e a experiência.

Sendo assim, as decisões são tomadas pelos adultos, que são sensatos e experientes. Ideologicamente, a criança não é reconhecida como um ser social, ela desempenha um papel marginal nas relações sociais (KRAMER E HORTA, 1982).

Embora os professores tenham esse entendimento, também manifestam um pensamento de que a escola é o local que reproduz melhor o ambiente social e acrescentam que as famílias impedem esse contato com a realidade social.

Viver no ambiente familiar permite com que as crianças tenham seus privilégios e as suas vontades sejam concretizadas. Na escola o ambiente é diferente. Aqui as questões sociais são mais presentes. Aqui de fato ela vive em sociedade. Aqui ela precisa entender seu momento de ouvir, seu momento de falar, seu momento de se colocar. (suj. 22)

Esse pensamento manifesta uma fragmentação, pois coloca a família à parte da sociedade, sem condições de educar as crianças, sendo assim, caberia somente à escola esse papel.

Essa perspectiva da educação das crianças foi proposta por Comenius no século XVII, quando a educação, muitas vezes, era feita em casa. Ele difundiu um método no qual as famílias teriam uma participação secundária e as escolas assumiriam quase totalmente a educação das crianças, pois, para ele, a educação não é uma questão de decisão pessoal que compete à família, cabe aos professores (NARODOWSKI, 2001).

Sendo assim, o corpo infantil deve ser transferido da esfera familiar para a esfera do educador, onde a disciplina, a dedicação à escola e aplicação aos estudos estariam implícitos no contrato estabelecido entre a escola e a família.

De acordo com o pensamento comeniano, essa aliança entre a família e a escola é garantida, pois a criança é incapaz de voltar-se contra o modelo (NARODOWSKI, 2001).

Os professores reforçam essa visão de criança como um ser incapaz e não responsável pelos seus atos.

Criança é uma pessoa espontânea, que não tem receio de falar nada, porque não tem noção do que é certo e o que e errado, não tem noção do que é proibido. (suj. 26)

Na legislação diz um ser incapaz, colocando dentro da legislação, fala que a criança é um ser incapaz. (suj. 11)

Isso coloca a criança em uma posição de vulnerabilidade. Nesse sentido, ela é posicionada como uma vítima em potencial (MOSS, 2011), com necessidade de apoio e orientação, caso contrário ela poderá sucumbir às exigências sociais. Um ser totalmente passivo e, nesse caso, atuação e responsabilidade ficariam a cargo do adulto-professor.

Simultaneamente, há o reconhecimento de que a criança é um ser de direitos.

Eu vejo as crianças assim, iguais nesse sentido, de ter oportunidade de estudar, de ter direito a saúde, de ter direito ao lazer, esporte, a cultura, se perceber dentro desse contexto. (suj. 30)

Quando os professores reconhecem o direito da criança à saúde, à educação, ao lazer ao esporte e à cultura, refletem em seu discurso a normatização legal já bastante difundida pela Lei nº 8069 (Estatuto da Criança e do Adolescente), editada em 1990.

Ao concordar com o discurso normativo legal, os professores manifestam uma representação de igualdade de direitos de todas as crianças. Freinet, segundo Paiva (1996), já propunha em sua pedagogia a busca de uma igualdade de direitos, mas com a participação da criança nesse processo.

Mesmo sendo um sujeito com pouca idade, é capaz de produzir conhecimento e provocar efeitos no mundo, não podendo ser considerado a partir de uma visão de neutralidade ou de essência que deve seguir uma ‘ordem natural das coisas’, mas que está o tempo todo (re)construindo suas próprias formas de estar e ser. (FARIA; LOPES; MENDES, 2006, p. 29)

A perspectiva freinetiana pressupõe dar meios para que a criança possa expressar-se, comunicar-se, cooperar, aprender e se organizar (AUDET, 2010). Nessa visão, se estes meios forem dados, a própria curiosidade da criança a fará buscar o autoconhecimento, permitindo-lhe se orientar para as novas

descobertas. Será nesse processo que a criança compreenderá o contexto no qual está inserida e buscará a melhoria da coletividade.

Em outras palavras, a educação da criança é a base das transformações sociais. Quando a criança assume o protagonismo dessa educação, sendo sujeito capaz de participar criticamente, constrói uma nova sociedade que lhe garanta um desenvolvimento integral. Nesse sentido, a criança é vista como a esperança de transformação da sociedade pela busca do direito de todos (PAIVA, 1996).

Entretanto, é preciso lembrar que em nossa tradição educacional encontram-se instalados valores autoritários e predominam as relações verticais entre o adulto/professor e a criança/aluno. Para a criança se perceber dentro de um contexto é necessário que ela tenha liberdade e, para isso, é preciso criar um clima de confiança, de aceitação, de alegria, de cooperação, de afetividade, um clima em que a criança exercite a liberdade. Mas, por outro lado, essa liberdade não será possível sem o exercício conjunto da reponsabilidade, pois em uma organização social o direito pressupõe deveres, uma vez que o convívio entre as pessoas se baseia no respeito mútuo. Assim, o exercício da liberdade ocasionará frustrações e limitações. Ao professor caberá auxiliar a criança para que ela desenvolva a capacidade de organizar- se para o convívio social democrático.