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Categorias centrais da pesquisa: religiosidade, etnicidade e educação

1.1 PERCURSOS DA PESQUISA

1.1.2 Categorias centrais da pesquisa: religiosidade, etnicidade e educação

Para melhor situar as categorias de análise, apresenta-se, no quadro a seguir, referências que pautaram teoricamente as discussões apresentadas nesta pesquisa.

Quadro 3 — Referencial teórico Religiosidade/ Catolicidade Etnicidade/ Italianidade Escolarização/ Educação

Azzi (1983; 1990). Barth (2011) Cambi (1999)

Beozzo (1987) Detienne (2013) Faria Filho (2002, 2005) Barea (2000) Franzina (2006, 2014) Luchese (2007, 2015b) Battistel e Costa (1982) Fenton (2003) Oliveira (2006)

Beneduzi (2008) Gonçalves (2008) Nascimento (2007)

Bittencourt (2017) Gruzinski (2001) Vidal, Faria Filho (2005) De Boni e Costa (2000) Kreutz (2015) Vidal, Sá e Silva (2013)

Giolo (2009) Hall (2015) —

Herédia (2003) Hobsbawm (2016) —

Luchese (2008, 2015a) Poutignat e Streiff-Fenart (2011) —

Otto (2005, 2014) Seyferth (2015) —

Rogers (2014) Woodward (2014) —

Zagonel (1975) — —

Fonte: Elaborado pela autora.

Para apresentar os conceitos relacionados à pesquisa, citam-se, brevemente, algumas concepções teóricas relacionadas às categorias mencionadas. Nesse contexto, a emigração é vista como um “problema não resolvido na vida econômica e social da Itália, apresentando-se como uma constante de um modelo de desenvolvimento que leva, necessariamente, à institucionalização dos fenômenos migratórios”. (FRANZINA, 2006, p. 31). Luchese auxilia na percepção desse processo ao mencionar que

a emigração foi, de certa forma, a possibilidade de diminuição das tensões sociais e uma maneira de minimizar a crise que vivia a Itália naquele momento. Entre as inúmeras razões apontadas à emigração de grandes massas populacionais do País estavam: a miséria e a fome; o esgotamento de terras; a opressão fiscal e as crises agrícolas; a falta de oportunidade para a mão de obra em excesso, devido ao sistema econômico vigente (início da industrialização); a dificuldade de acesso à terra – a

maioria dos contadini (agricultores) era empregada de grandes proprietários; as guerras e transformações políticas decorrentes da unificação italiana; o sonho da América produzido, também, a partir da propaganda imigrantista. (2015a, p. 47).

Pode-se dizer que a emigração italiana está ligada ao processo de unificação da Itália e à influência do capitalismo sobre as pequenas estruturas agrárias, atingindo os que viviam da agricultura. O movimento de migração/imigração influenciou nas características étnicas, vista a adequação de aspectos presentes na cultura italiana, e os que foram construídos em terras brasileiras.

Nos estudos sobre etnicidade, utilizando-se os autores mencionados no quadro anterior, pode-se afirmar que nação, nacionalismo, etnia e processo identitário são conceitos que perpassam pelo objeto deste estudo, especialmente por considerar o movimento migratório e a necessidade de um povo, nesse caso, o italiano, de se adaptar, mas também de transformar a cultura do outro, por estar em terras brasileiras. Aqui é possível citar Rogers (2014), que escreveu sobre a história transnacional das educadoras religiosas, quando se implantam no estrangeiro. O estudo refere-se às francesas, mas algumas reflexões podem ser estendidas à missão congregacional das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo – Scalabrinianas. Mesmo que tenham falhado, por serem critérios ambíguos ou mutáveis, de acordo com Hobsbawm,

as tentativas de se estabelecerem critérios objetivos sobre a existência da nacionalidade, ou de explicar por que certos grupos se tornaram “nações” e outros não, frequentemente foram feitas com base em critérios simples como a língua ou a etnia ou em uma combinação de critérios como a língua, o território comum, os traços culturais comuns e outros mais. (2016, p. 13-14).

Entende-se que, no decorrer da História, o conceito de nação esteve relacionado a um critério, ou a um conjunto deles, podendo-se citar, como mencionado, língua, etnia, território e traços culturais, assim como a economia, que poderia fortalecer os Estados, e por isso, “a construção de nação foi inevitavelmente vista como um processo de expansão”. Aqui, os critérios que assemelhavam os sujeitos “não eram decisivos na formação liberal de nações”. (HOBSBAWM, 2016, p. 48). Para ele (p. 54) “na perspectiva da ideologia liberal, a nação (isto é, a grande nação viável) representava o estágio de evolução alcançado na metade do século XIX”.

Nesse período, o nacionalismo estava vinculado ao progresso:

Do ponto de vista do liberalismo – e, como o exemplo de Marx e Engels o demonstra, não apenas do liberalismo – a causa da “nação” estava no fato de esta representar um estágio no desenvolvimento histórico da sociedade humana; e a questão do

estabelecimento de um Estado-nação específico dependia de este mostrar-se adequado ao progresso ou à evolução histórica avançada – para além dos sentimentos subjetivos dos membros da nacionalidade envolvida ou das simpatias pessoais do observador. (HOBSBAWM, 2016, p. 57).

Diferentemente do exposto, no nacionalismo do período de 1880-1915, havia o direito à autodeterminação, o “direito a um Estado independente, soberano, separado para seu território”; além disso, a “etnicidade e a língua tornaram-se o critério central, crescentemente decisivo ou mesmo único para a existência de uma nação potencial”, e houve “uma mudança aguda no direito político à nação e bandeira, para o qual o termo ‘nacionalismo’ foi realmente inventado na(s) última(s) década(s) do século XIX”. (HOBSBAWM, 2016, p. 144).

Diante do exposto, é possível afirmar que o termo nacionalismo compreende diferentes concepções e conceitos, podendo-se citar: etnia, território, língua e nação. E, se a definição já é difícil, por mudanças de tempo, espaço e interpretação, ainda é mais complexa a utilização desse termo associada a migrantes. Kreutz, no prefácio da obra de Luchese, apresenta reflexões importantes para compreender o lugar que os migrantes ocupavam, ao se estabelecerem em novas terras, com outras culturas:

Num passado já um pouco longínquo, pensava-se que os imigrantes precediam a um “transplante” cultural nas terras de adoção. Atualmente, prevalece o entendimento de que os grupos humanos que migram para novos ambientes não praticam um mero “transplante” de seus costumes e referências. Ao contrário, o encontro com uma nova realidade cultural provoca interrogações; por vezes inicia com espanto gerando tensões e, gradativamente, gera fluxos nos quais ocorre miscigenação, intercâmbio, transformação, confluindo numa interação criativa de concepções e procedimentos. Do encontro/desencontro de culturas, pode brotar um conjunto de novas perspectivas, que não acabam na eliminação de especificidades culturais, mas provocam possibilidades de recriação, avançando para novos horizontes possíveis naquelas circunstâncias e no período histórico. (2015a, p. 12).

Nesse cenário, entende-se que os imigrantes construíram novas identidades culturais, a partir da hibridação13 de hábitos e costumes da Pátria de origem e da adoção de outros no novo território. E, na criação dessa nova identidade, perduraram alguns dos aspectos culturais mais importantes. No caso dos italianos, é possível citar a religiosidade, a família e a relação com o trabalho. Para Kreutz

no curso da história, houve dificuldade para articular processos identitários com políticas públicas. Na modernidade, minimizou-se a heterogeneidade de etnia, de gênero, de religião, de idade, sempre presente no processo histórico, com uma carga

13 Sugere-se, para aprofundamento do conceito de hibridação, Gruzinski (2001) e Canclini (1998). Enquanto Gruzinski (2001) parte do conceito de mestiçagem, na obra intitulada “O pensamento mestiço”, Canclini (1998) desenvolve o conceito de culturas híbridas na modernidade. Sobre as migrações, Canclini (1998) relaciona as migrações aos fenômenos de desterritorialização e reterritorialização dos migrantes.

muito forte de tensões, conflitos e alianças. Nossa base histórica foi, em parte, a ênfase no silenciamento da diferença, a partir de uma determinada cultura. No caso dos imigrantes, não ocorreu um processo linear neste sentido, pois houve um processo de negociação entre culturas. (2015, p. 12-13).

Herédia (2003, p. 62), ao mencionar indicativos apresentados em obras sobre a imigração italiana no Sul do Brasil, afirma que “o imigrante italiano valorizava muito mais a igreja do que a escola”, e era em torno dessa igreja que a comunidade se sustentava e que se reconstruiu culturalmente. O imigrante italiano, constituiu, assim, seu processo identitário e cultural em terras brasileiras. A italianidade esteve presente nos costumes e nos hábitos desses imigrantes, influenciando nas relações sociais e, especialmente, nas percepções e relações com a Igreja e com a escola. Herédia afirma que a família foi a base da transmissão de valores humanistas. Para ela

a formação e a transmissão dos valores que são a base dos comportamentos que aparecem na vida da colônia italiana nessa região provêm da existência de uma série de instituições básicas que foram trazidas na bagagem cultural dos imigrantes e que pela sua importância foram mantidas vivas nas estruturas que se originaram na nova terra. (2003, p. 59).

Se a família foi uma dessas instituições, a Igreja certamente foi outra. A presença da religiosidade, especialmente da catolicidade, marcou a vida dos imigrantes italianos na sua Pátria de origem, no percurso e em solo brasileiro, propiciando que continuassem ligados à sua etnia. “A religião foi um elemento de identidade cultural que se manifestou por uma forte solidariedade social, pois promoveu a integração dos emigrantes europeus.” (HERÉDIA, 2003, p. 61).

Sobre a influência da religião, ao mencionar a conformação da Nação, Seyferth (2015, p. 71), destaca que “o critério religioso também servia como um diacrítico, principalmente no Império, pois o catolicismo estava situado entre os componentes essenciais da unidade nacional”. A autora afirma que, na relação entre nacionalismo e política migratória, prevaleceu “o interesse do Estado em detrimento da nação idealmente unívoca”, pois, ao mesmo tempo que os estrangeiros eram admitidos com o objetivo de colonizar (povoar) os territórios, eram também esquecidos, estando sujeitos a certo isolamento. No final do século XIX, é pertinente alegar que havia interesse em produzir um “povo brasileiro homogêneo, branco”, através da miscigenação. (p. 35).

No processo de inter-relação e negociação entre as culturas, na busca de uma identidade étnico-cultural, que aqui poderia ser definida como ítalo-brasileira, houve confrontos

e negociações. E, na busca de definição e compreensão do termo étnico, referencia-se Luchese, que, ao escrever Histórias cruzadas: imigrantes italianos e processos educativos (1875-1914), afirma que

o étnico não é definitivo, mas um processo dinâmico, que, no caso de imigrantes italianos, não se refere ao herdado no país de origem, mas nas trocas construídas entre o vivido na Itália e no Brasil – nem de lá, nem de cá –, nas conexões híbridas, nos modos de fazer-se, de fabricar-se “o ser italiano” em terras brasileiras. Histórias cruzadas. (2015b, p. 251).

A presença de religiosidade no Rio Grande do Sul é referida por Barea, primeiro bispo da Diocese de Caxias do Sul, que considera a presença de sacerdotes italianos como fundamental para a manutenção da tradição católica: “Alla loro pastorale sollecitudine si deve la grazia di aver concesso al nostro popolo sacerdoti di nacionalitá italiana o per lo meno che conoscessere e parlassero la nostra madre lingua; a loro specialmente si deve la conservazione dell’italiche tradizioni.” (2000, p. 55).14

No começo, ainda de acordo com Barea (2000), eram construídos pequenos oratórios para os santos que eram venerados na Itália, país natal. Depois, as capelas de madeira começaram a dar lugar às de alvenaria. Os diferentes núcleos se empenhavam na construção de igrejas, ainda maiores e melhores, incluindo-se, aí, a preocupação com o sino. Essa, certamente, estava relacionada com o alcance do som, que ecoava pela comunidade.

Kreutz (2015, p. 347) refere-se à pluralidade étnico-cultural, características da Região Sul, devido à expressiva imigração a partir do século XIX. Esses imigrantes conservaram algumas características que os identificavam etnicamente, tais como “idioma, organização religiosa, associativa e escolar”. E, nesse período, as escolas étnicas estiveram presentes. No entanto, a organização dessas escolas deveu-se mais “às especificidades do contexto de imigração do que a uma opção prévia dos imigrantes”. (p. 348).

Para compreender esse contexto de escolarização, Vidal e Faria Filho (2005, p. 42) auxiliam, ao fazerem uma relação entre “escolarização de conhecimentos e tempos e espaços sociais”, afirmando que, nos séculos XIX e XX, os debates na educação estavam relacionados “à distribuição e à utilização dos tempos escolares, à constituição dos métodos pedagógicos e à organização das turmas, classes e espaços escolares”. (p. 43). Os autores entendem que, como “plurais, espaços e tempos fazem parte da ordem social e escolar”. (p. 44).

14 No seu cuidado pastoral, temos a graça de ter dado ao nosso povo sacerdotes de nacionalidade italiana ou pelo menos que conhecessem e falassem a língua materna; a eles, especialmente, se deve a preservação das tradições italianas. (2000, p. 55). (Tradução livre).

Oliveira, ao escrever sobre a educação do corpo na escola brasileira, apresenta relações que são importantes à historicidade da educação, indicando que

a passagem da escola doméstica, escola de classe única, gerida no âmbito da vida cotidiana dos professores, para a escola graduada, concebida e implementada no âmbito de uma preocupação societária cada vez mais aguda com o processo de formação de massas, foi reconhecidamente um processo multifatorial de transformação. Seja no tocante aos métodos de ensino, à organização das matérias de ensino, à conformação e distribuição do espaço e tempo escolares (aí incluídos os mobiliários, os espaços de aprendizagem e de recreação, os tempos de recreio e de intervalo, etc.), à formação de agentes especializados (os professores), à expansão dos serviços de inspeção escolar, à criação de toda uma imagética própria e cara ao mundo escolar, muitas foram as dimensões sobre as quais foram mobilizados esforços e investimentos no sentido de reformar de cima a baixo o processo de escolarização. (2006, p. 4).

Destaca-se também a tese de Luchese (2007): O processo escolar entre imigrantes da

Região Colonial Italiana do RS — 1875 a 1930: leggere, scrivere e calcolare per essere alcuno nella vita, que auxilia na compreensão do processo escolar dos imigrantes, um dos principais

focos de intervenção da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo – Scalabrinianas no Rio Grande do Sul. A historiadora indica que houve iniciativas variadas em prol da escola, mobilizadas por famílias, religiosos, líderes comunitários e cônsules.15

(LUCHESE, 2015b).

As iniciativas presentes no final do século XIX e início do século XX, mencionadas por Luchese (2015b, p. 249), devido à falta de um sistema público fortalecido, eram: “escolas étnico-comunitárias, escolas mantidas por associações de mútuo socorro, escolas paroquiais, escolas confessionais (salesianas e scalabrinianas principalmente)”. Sobre as escolas étnicas, Kreutz16 (2015) afirma que, no final da década de 30, devido ao nacionalismo, deu-se fim às escolas étnicas. Sabe-se que alguns decretos foram criados para estimular o patriotismo e coibir as manifestações de etnicidade estrangeira. E o autor cita os seguintes decretos: n. 406, de maio de 1938, ordenando que o material e a língua utilizados fossem em português, que os professores fossem brasileiros, que a Bandeira Nacional fosse homenageada; n. 1.545, de 25 de agosto de 1939, onde contava o estímulo ao patriotismo, a fiscalização da língua estrangeira, a intensificação do ensino de História e Geografia do Brasil; n. 1.006, de 10 de dezembro de 1939, que preconizava que o ministro da Educação supervisionasse os livros utilizados no

15 Os cônsules representavam o governo. De acordo com Rech (2009, p. 82), “os cônsules italianos eram autoridades enviadas pelo Governo da Itália para supervisionarem as colônias nas quais os imigrantes eram instalados, devendo emitir relatórios acerca da situação dos mesmos e enviá-los à Itália.

16 Kreutz (2015), ao escrever sobre as escolas éticas em seu texto, refere-se às escolas elementares de imigrantes, atuantes no período de 1810 a 1939, quando começaram a ser suprimidas pela legislação nacionalista de ensino.

Ensino Elementar e de Segundo Grau; n. 2.072, de 8 de março de 1940, criava a Organização da Juventude Brasileira e estimulava a prática de educação física para a uniformização de etnias; e o n. 3.580, de 3 de setembro de 1941, que proibia a impressão, no Brasil, ou a importação de livros didáticos em língua estrangeira.

A congregação, objeto de estudo desta pesquisa, aparece entre as diversas que investiram na implementação de escolas, seminários e noviciados. No Rio Grande do Sul, as congregações “constituíram escolas importantes, de boa qualidade, com currículos diversificados, atendendo principalmente aos filhos das famílias mais abastadas”. (LUCHESE, 2015b, p. 250). E essas escolas, inclusive da Congregação Carlista – Scalabriniana, promoveram uma educação católica voltada à religião e aos valores cristãos.

Tendo como intuito o estudo dessa educação, após estas considerações iniciais contextualiza-se, no Capítulo 2, o processo de imigração e escolarização no Rio Grande do Sul, situando o início da Congregação Carlista – Scalabriniana e, brevemente, o papel desempenhado pelo fundador e pelos cofundandores da Congregação. No Capítulo 3, apresenta- se a congregação no Rio Grande do Sul, com a inserção de suas obras. Analisam-se o catolicismo e a etnicidade presente nas escolas, que são marcas referenciais da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo – Scalabrininas. No Capítulo 4, a educação carlista – scalabriniana no Rio Grande do Sul é analisada, resgatando-se, para tal, os pressupostos da etnicidade, da catolicidade e da escolarização propriamente dita. Por fim, nas Considerações Finais (Capítulo 5), são apresentados os principais resultados da tese, indicando, também, possíveis continuidades à pesquisa.

2 DA ITÁLIA PARA O BRASIL: IMIGRAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DA