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2 DA ITÁLIA PARA O BRASIL: IMIGRAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DA

3.1 CATOLICIDADE E ETNICIDADE: MARCAS DA CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS

3.1.1 Catolicidade: marca de uma congregação em busca de sua identidade

O percurso percorrido pela Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo — Scalabrinianas, como mencionado no capítulo anterior, é marcado por parcerias e rupturas. A catolicidade, sempre presente, possibilitou algumas alianças, no entanto, a diferença em relação à missão e à forma de viver a religiosidade da congregação foi o motivo que também afastou as Irmãs missionárias das Irmãs de outras congregações. Por ser uma variável importante para entender essa categoria, retoma-se a fusão com as Irmãs do Sagrado Coração.

Em documento guardado no arquivo da Província Imaculada Conceição, situada em Caxias do Sul — RS, intitulado Decretum, assinado pelo Cardeal Pietro Palazzini (Prefeito) e Traiano Crisan (Arceb. Secr.), em que está colocado um histórico de Scalabrini, destaca-se o seguinte excerto, que resume a fundação da congregação, citando, inclusive, a aliança com as Apóstolas do Sagrado Coração:

O Servo de Deus é universalmente conhecido pela sua obra em favor dos emigrantes, que então partiam em massa da Itália, abandonados por todos. Para eles elaborou um “projeto de evangelização” e de promoção integral da pessoa humana, fundando em 1887 a Congregação dos Missionários de São Carlos, com a aprovação de Leão XIII. Após ter convencido Sta. Francesca Saverio Cabrini a iniciar sua atividade missionária entre os emigrantes de Nova York, em 1895 fundou a Congregação das Irmãs Missionárias Scalabrinianas de São Carlos Borromeo. Endereçou também para a assistência dos emigrantes as Irmãs Apóstolas do S. Coração, fundadas pela Madre Clélia Merloni, e em 1889 constituiu a Sociedade São Rafael, leiga, para a tutela dos direitos humanos emigrantes. (ARQUIVO DA PROVÍNCIA IMACULADA CONCEIÇÃO, 1987, p. 3).

Diversas foram as iniciativas, visando sempre ao desenvolvimento ou à manutenção da religiosidade entre os emigrados italianos. Ao referir a aliança das congregações mencionadas, Maschio afirma que Scalabrini, ao perceber que,

a parte mais difícil do seu projeto seria a fundação de escolas pelo fato da sua árdua manutenção, por isso procurou uma congregação religiosa feminina para delegar tal função: às Suore Apostole Missionarie del Sacro Cuore di Gesu. Ao aceitar a proposta do Bispo Scalabrini, as irmãs iniciaram um trabalho bastante amplo na organização da escolarização elementar católica dos filhos de imigrantes e de seus descendentes nas colônias italianas do Brasil88. (2012, p. 289-290).

88 A interlocução entre as congregações e o trabalho desenvolvido na educação pelas Apóstolas do Sagrado Coração podem ser compreendidos com maior profundidade a partir da tese de Maschio (2012), intitulada: A escolarização dos imigrantes e de seus descendentes nas colônias italianas de Curitiba, entre táticas e estratégias de italianità e brasilitá (1875-1930).

Scalabrini preocupou-se com a questão migratória na sua interlocução com a catolicidade, que perpassava pelos muros da Igreja, ia de encontro à realidade dos migrantes, nas comunidades, nas escolas ou através de ações pastorais. O Decretum foi elaborado com o objetivo de redigir o decreto sobre as virtudes heroicas do Servo de Deus, após ordenação do Sumo Pontífice João Paulo II.

Executada essa ordem, convocados, hoje, o Cardeal Prefeito, abaixo-assinado, o Cardeal Propositor da Causa, a mim, o Secretário da Congregação e os demais que se sói convocar, na presença de todos, o Beatíssimo Padre declarou solenemente: Constam as virtudes teologais da Fé, Esperança, e Caridade para com Deus e o próximo e as virtudes cardeais: Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza e as virtudes anexas em grau heroico no Servo de Deus João Batista Scalabrini, Bispo de Piacenza, no caso e para os efeitos de que se trata. (DECRETUM, 1987, p. 4).

Após, de acordo com o documento, “mandou tornar de conhecimento público e registrar esse Decreto nas atas da Congregação para a Causa dos Santos”. (DECRETUM, 1987, p. 4). O decreto tinha o objetivo de responder ao questionamento se constavam as virtudes teologais, cardeais e as virtudes anexas em grau heroico, no caso e para os efeitos de que se tratava e, conforme citação anterior, declarou-se que constava tais virtudes em Scalabrini.

Essa marca na religiosidade está vinculada não só à criação da congregação, mas diretamente à escolarização dos migrantes. Apesar de, no Rio Grande do Sul, a vinda das Irmãs estar vinculada à escola, é importante mencionar que, antes disso, havia mais interesse na construção de igrejas do que de escolas tanto por parte do clero como da própria comunidade das colônias italianas. Zagonel (1975, p. 168) chega a citar um documento anônimo, de 1901, do Arquivo Capuchinho de Annecy, que “acusa o clero gaúcho de indiferentismo perante a necessidade de escola para o imigrante. É uma tarefa relegada ao Estado que, por sua vez, tem uma escola leiga e quase inexistente na maioria das colônias italianas”.

No início do século XX, estando essa atividade relegada ao Estado, como mencionado, percebe-se uma preocupação aumentada, para a implementação de escolas confessional- católicas, sendo comum o pedido de párocos das comunidades para que Irmãs assumissem a educação, especialmente das elites ou dos migrantes advindos da Europa, dentre eles os italianos. Através da religiosidade, procurava-se manter a cultura italiana, ou seja, uma relação com a Pátria-mãe. E esses dois aspectos — catolicidade e italianidade — justificavam a vinda das congregações, e, dentre elas, a dos missionários e, posteriormente, a das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo – Scalabrinianas. De acordo com Cenni, Scalabrini

havia traçado um vasto programa de assistência aos muitos milhares de emigrados [...]. Essa assistência não era desenvolvida apenas no plano da religião, mas incluía a fundação de escolas, como o ensino da língua italiana e da língua indígena e a organização de comitês nos portos de embarque e desembarque, a fim de socorrer e orientar os emigrantes, favorecendo também, ou promovendo, associações para a difusão da cultura. (2003, p. 469-470).

Com a citação do autor, fica claro que o objetivo de Scalabrini e da congregação ia além do atendimento aos migrantes italianos, já que incluía a assistência, de modo geral, socio- pastoral, escolar e, posteriormente, na área da saúde. Ou seja, havia a preocupação em cuidar do migrante nas suas necessidades. Assim, ao retomar o objetivo de Scalabrini e com a vinda de congregações, inclusive a Carlista-Scalabriniana para o Rio Grande do Sul, constata-se o processo migratório e a importância da religião (católica) para os sujeitos que deixavam sua pátria e sua cultura. Nesse cenário,

no período de transição regimentar, em meio ao contexto de transformação nas relações de trabalho decorrentes da abolição da escravatura, do aumento populacional devido à inserção de grupos de imigrantes e da mobilização da população nacional na economia brasileira, a instrução passou a ganhar atenção. (MASCHIO, 2014, p. 16).

Essa autora (2014), ao dissertar sobre a educação no território paranaense, comenta sobre uma realidade abrangente e comum no território brasileiro: a precariedade das escolas públicas, caracterizada por escolas isoladas no período imperial. Nesse contexto, destacam-se as escolas organizadas por congregações religiosas, incluindo-se a Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo – Scalabrinianas. Essa educação, dirigida especialmente aos filhos dos migrantes italianos, com estatuto confessional-católico, oferecia o ensino de língua italiana aos alunos.

Oliveira (2009, p. 129-130) esclarece que a Província Imaculada Conceição, a primeira no Rio Grande do Sul, estabelecida em 1915, em Bento Gonçalves e transferida para Caxias do Sul em 1926 “prosperou e consolidou-se no âmbito educacional, oferecendo o ensino das primeiras letras da língua italiana e dos ensinamentos cristãos aos filhos e filhas de imigrantes italianos”.

Oliveira (2009, p. 130) destaca que, devido ao trabalho vocacional das Irmãs Carlistas– Scalabrinianas na Província, houve “o aumento expressivo de meninas que optaram pelo noviciado, imprimindo, assim, cada vez mais, o carisma scalabriniano e aumentando quantitativamente a Congregação”. A abertura do noviciado deu-se em 1927, tendo como Superiora-Geral da Província a Irmã Lúcia Gorlin. Provisoriamente, o noviciado foi instalado nas dependências do Colégio São Carlos, tendo a admissão de 11 postulantes.

O noviciado, situado em Bento Gonçalves, possibilitou a formação das aspirantes do Rio Grande do Sul. As noviças da RCI tinham como característica a religiosidade, presente na família, e a etnicidade italiana, que, geralmente, preponderava. As Irmãs entrevistadas e tantas outras, no período deste estudo, era proveniente do meio rural. O estudo de Grossi corrobora com essa percepção, indicando que a construção da vocação feminina considerou três ângulos: “o das famílias camponesas, de onde provém a maioria das freiras; o das próprias freiras – que encontram no convento um espaço de realização individual –; e o da Igreja Católica e sua necessidade de reprodução social”. (1990, p. 48). Esse último aspecto foi trabalhado pelos padres e Irmãs Carlistas — Scalabrinianas que buscavam integrantes para a congregação, visando, assim como a instituição Igreja e outras congregações, “se reproduzir material e simbolicamente”. (GROSSI, 1990, p. 51).

O caminho percorrido pela congregação foi permeado por inseguranças provindas de avanços e retrocessos, na sua própria constituição e organização. Corrobora-se que, mesmo após assumir uma instituição de acolhida aos órfãos migrantes, o orfanato Cristóvão Colombo ainda estava tentando formalizar a congregação, tanto que, em 28 de dezembro de 1900, redigiram uma carta, com predominância do texto em italiano, para Sua Excelência, ao que tudo indica, Scalabrini. A preocupação das Irmãs que assinam o documento, a saber: Assunta Marchetti, Maria Franceschini, Maria Bassi, Camila Dal Ri, Maria das Dores, Ângela Meneguzzo, Clarice Baraldini e a postulante Luigia Micheletto era, especialmente, com a troca da superiora. Através do relato do documento, fica clara a satisfação com o envio de novas Irmãs, em setembro de 1900, para auxiliarem no orfanato, porém a insatisfação se referia a troca da superiora, conforme fragmento a seguir:

Foi na metade do ano que está para findar que se começou a ouvir a falar da vinda de novas co-irmãs da Itália e nós aceitamos aquela notícia com prazer, antes com entusiasmo, seja porque nos vinha em tempo oportuno um poderoso auxílio, e seja porque de tal fato pressentia-se o desenvolvimento progressivo deste orfanato que vemos edificar, crescer, animar, cúbito popular e, finalmente, tornar-se obra digna de ser admirada e galordoada pelo mundo inteiro, após ter superado os obstáculos da fome, das dificuldades, das incredulidades humanas, das perseguições nativistas, etc. [...]. Porém nossa alegria foi de breve duração. Sabemos que as ordens de V.E. Rvma. feriam, nas suas mais caras recordações, as humildes abaixo assinadas: é-lhe logo imposta uma nova Superiora, entre as novas chegadas, demitindo de seu posto aquela que nunca tinha ambicionado nem desejado a distinção fatal. Daí é que nos inteiramos das coisas: é preciso, nos disseram, mudar os velhos votos pelos novos, fazer novo noviciado e trocar hábito e regras. (ARQUIVO DA PROVÍNCIA IMACULADA CONCEIÇÃO, 1900).

Questionam, no mesmo documento, sobre o abandono das regras (Constituições) da Congregação das Irmãs de São Carlos e a permanência delas no orfanato, citando a

possibilidade de abandonar o “asilo” e se envolverem com outra obra de caridade. Na biografia de Madre Assunta Marchetti, apresentada pela Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo — Scalabrinianas, através da Província Cristo Rei e do Centro de Estudos Migratórios Cristo Rei (Cemcrei), em primeira pessoa, como se a própria Madre estivesse narrando, surge a preocupação em relação à unificação com delas as Irmãs do Sagrado Coração:

Ao mesmo tempo em que continuávamos o cuidado de nossos órfãos e retomávamos a vida regular do Orfanato, continuávamos precisando de mais Irmãs que assumissem conosco essa missão. Viamos o número de órfãos aumentando e, ao mesmo tempo, sentíamos o desejo e a grande vontade de aumentar, avançar, dar “asas” à nossa missão de servas junto aos órfãos e migrantes no Brasil e no mundo. Dom Scalabrini prometera a Pe. José de preparar um pequeno grupo para enviá-lo em nosso auxílio. Mas isso exigia tempo, de modo que só em 1900, passados três anos, escreveu ao Pe. Consoni anunciando que em setembro enviaria seis Irmãs para se juntarem a nós: eram as Irmãs Apóstolas Missionárias do Sagrado Coração. Estas Irmãs assumiram a direção do Orfanato, liberando-nos de parte de nossas tarefas, para podermos nos dedicar à nossa formação religiosa. Iniciamos assim um período formativo, como se fosse um noviciado. Eu então, na condição de noviça, assumi o serviço da cozinha. Ficamos trabalhando juntas por um tempo, mas surgiram contrariedades, o que todas nós consideramos algo muito grave: as novas Irmãs queriam apoderar-se (ou apossar- se) do nosso grupo — as Irmãs de São Carlos — em sua Congregação e formar um só Instituto que levaria o nome de Apóstolas Missionárias do Sagrado Coração. Claro que nós não concordamos. Perderíamos o nome e a identidade que havíamos construído desde a fundação, bem como nossa história de trabalhos e sacrifícios. Em resumo, nossa Congregação deixaria de ser ela mesma. Por isso, todas as que éramos Irmãs de São Carlos assinamos a carta que escrevi a Dom Scalabrini, falando-lhe de nossas inquietações e pedindo-lhe que interviesse, para impedir que isso acontecesse. Enquanto esperávamos ajuda de Dom Scalabrini, rezávamos e eu dizia às minhas companheiras: “Coloquemo-nos nas mãos de Deus e façamos a sua vontade. Ele sabe o que é melhor para nós.” (CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS MISSIONÁRIAS DE SÃO CARLOS BORROMEO — SCALABRINIANAS, 2014, p. 29).

Apesar das inseguranças quanto à congregação, como mencionado no Capítulo 2, houve a separação das congregações em 1907. Para compor a congregação, a inserção de novas aspirantes é constante. Na documentação presente na Província Imaculada Conceição, destacam-se portarias com licenças para conceder os votos às Irmãs. Exemplifica-se com a Portaria, de 17 de dezembro de 1918, em que o Padre Poggi foi autorizado a proceder às formalizações canônicas e emitir os votos perpétuos.

Figura 16 — Licença para os votos das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo — Scalabrinianas

Fonte: Província Imaculada Conceição.

Destaca-se entre as documentações arquivadas na Província Imaculada Conceição, as que se referem à vida religiosa das Irmãs, com autorização de votos perpétuos ou temporários,

Dom João Becker

Por Mercê de Deus e da Santa Fé Apostólica, Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre, etc. etc.

Aos que esta Nossa Portaria virem, saudação, paz e bênção em Nosso Senhor Jesus Cristo. Fazemos saber que atendendo ao que nos foi requerido pela Revma. Madre Superiora das Irmãs de São Carlos, em Bento Gonçalves, havemos por bem conceder licença para que possam emitir os votos perpétuos as seguintes Irmãs de temporários: Borromea Ferraresi, Josephina Oricchio, Lourdes Martins, Joanninha Camargos, Helena Lucca, Gertrudes Miletti e, autorizamos o Revmo. SNr. Padre Henrique Domingos Poggi, vigário de Bento Gonçalves para proceder às formalizações canônicas e receber os votos servantis servandis.

Dada e passada em Nossa Camara Eclesiástica, sob o Nosso sinal e selo das Nossas Armas, a 17 de Dezembro de 1918. E eu, cônego João Elimio Berwanger, secretário geral do Arcebispado a escrevi.

(Assinatura Dom João Becker)

Para V. Exa. Revma. ver e assinar (Assinatura João Emilio Berwanger)

as solicitações para retiros e nomeação de confessor ordinário para as comunidades e as instituições. O documento que segue ilustra esse pedido:

Figura 17 — Solicitação de confessor ordinário

Fonte: Província Imaculada Conceição.

A necessidade de um confessor enfatiza a religiosidade e as práticas das comunidades e instituições da congregação. Em despacho, como pode ser observado no canto inferior direito,89

89 Transcrição: Despacho – Nomeamos o mesmo Rev. Con. Antonio Zattera por mais três anos. Caxias, 27 de outubro de 1938. José, bispo de Caxias.

Bento Gonçalves, 23 de outubro de 1938 Exmo. e Revmo. Snr. Bispo Diocesano D. José Barea

Venho por meio deste humildemente à presença de V. Excia. Revma., para pedir- Vos digneis nomear confessor ordinário para as Comunidades das Irmãs Missionárias de S. Carlos Borromeu do Colégio, Noviciado e Hospital Dr. Tacchini em Bento Gonçalves, por ter já terminado a provisão do confessor ordinário o Revmo. Conego Antonio Zattera. N.E.E. R. Mcê. (Assinatura Irmã M. Immaculada Mileti) Provincial das Ir. Mis. de S. Carlos Borromeu

o Bispo Dom José Barea90 nomeia, por mais três anos, o mesmo confessor: Antonio Zattera.91 Esse confessor participaria do cotidiano da Congregação das Irmãs Missionárias, estando, mais uma vez, explícita a relação entre religiosos e religiosas. As Irmãs dependiam da presença dos padres, ou seja, do masculino para viverem os rituais da vida religiosa da congregação. Infere- se que por ele ter participado da fundação do Colégio Nossa Senhora Medianeira mantinha uma relação de proximidade com as missionárias, de aprovação e de auxílio nas obras localizadas no Município de Bento Gonçalves — RS.

Perrot (2019, p. 83) considera que a religião tem, “ao mesmo tempo, poder sobre as mulheres e poder das mulheres”. Ao mencionar o catolicismo, cita a relação com os confessores, o que permite pensar no documento exposto anteriormente, com a solicitação de um confessor, com o qual a religiosa/mulher poderia “encontrar socorro, e mesmo ser ouvida pelos padres, seus confessores e confidentes”. (p. 84). Entende-se, assim, que a Igreja ao mesmo tempo que oferecia apoio às mulheres, pregava sua submissão.

Nessa relação entre padres e freiras, pode-se deduzir diferentes significados, às vezes até antagônicos, como, por exemplo, o de complementaridade e auxílio, mas também o de dominação e submissão. Sobre a cisão entre o feminino e masculino, Bourdieu (2019, p. 9) afirma que “a divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável”. Essa divisão, de acordo com o autor (p. 9), funciona “como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação”.

Ou seja, a relação entre religiosos e religiosas reproduz esquemas presentes na sociedade, em que se entende o homem como ser dominante e a mulher como dominada. Assim, desde a fundação até as práticas desenvolvidas pela congregação, seguiram essa ordem, presente no sistema de representações do masculino e do feminino. Para Bourdieu (2019) a anatomia dos sexos justifica a diferença, construída socialmente, dos gêneros e da divisão do trabalho.

Na relação entre padres e Irmãs, essa diferença estava marcada, já que o poder e o conhecimento estavam com os clérigos. Perrot (2019) menciona, a partir do entendimento de um catolicismo, “em princípio, clerical e macho”, que “somente os homens podem ter acesso ao sacerdócio e ao Latim. Eles detêm o poder, o saber e o sagrado”. Considerando o recorte de tempo proposto para esta pesquisa, entende-se que o poder continuava nas mãos dos padres, no

90 Dom José Barea foi o primeiro Bispo da Diocese de Caxias do Sul, nomeado em 1° de novembro de 1935 e empossado a 11 de fevereiro de 1936. Faleceu a 19 de novembro de 1951. (ADAMI, 1957, p. 107).

91 Antonio Zattera atuou em Bento Gonçalves, sendo essa sua segunda paróquia, quando houve a fundação do Ginásio Nossa Senhora Aparecida e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. Era reconhecido por sua atuação na educação, tendo conseguido, em 1953, fundar a primeira Faculdade de Filosofia no interior do estado, que deu origem, integrada a outros cursos, à Universidade Católica de Pelotas. Foi consagrado bispo em 1942. (HAMMES, 2005).

entanto, as Irmãs encontravam um caminho para o saber, inclusive tendo acesso ao Latim, que era possível através do estudo em conventos, por exemplo. Para a autora “os conventos eram lugares de abandono e de confinamento, mas também refúgios contra o poder masculino e familiar. Lugares de apropriação do saber, e mesmo de criação”. (PERROT, 2019, p. 84).

Nessa citação, evidencia-se não só a possibilidade de apropriação do saber, mas também de uma vida religiosa que distanciava as mulheres da família (a de origem ou a constituída), já que esse era o principal espaço pensado para elas. Com a expansão das congregações femininas, foi possibilitado às mulheres outra escolha, no entanto, ainda assim, havia uma relação de submissão ao masculino, ou seja, aos padres. Perrot (2019, p. 85), nesse sentido, menciona que “no século XIX, o desenvolvimento das congregações educativas, dos pensionatos e dos ateliês, e o florescimento das missões abrem para as religiosas horizontes consideráveis”.

No caso da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo — Scalabrinianas, as religiosas tiveram seu campo de atuação sendo ampliado justamente por oferecer educação religiosa. Por isso, a relação do trabalho desenvolvido pelas Irmãs Missionárias com a religiosidade, fica ainda mais clara através da catequese. O trecho da fala de Irmã Leocádia, revela a importância da catequese para a congregação e o papel que as Irmãs desempenhavam junto aos migrantes:

Primava pela catequese, porque o fundador, João Batista Scalabrini, o bispo de