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As categorias fleckianas como subsídio para análise de produção acadêmica

CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.1 Contribuições da epistemologia de Ludwik Fleck

2.1.1 As categorias fleckianas como subsídio para análise de produção acadêmica

Fazendo considerações sobre as compreensões e práticas próprias da ciência médica, Fleck (2010) estabelece duas categorias fundamentais – “coletivo de pensamento” e “estilo de pensamento”. Ambas estruturam sua compreensão sobre a produção do conhecimento, que, segundo o autor, ocorre num processo dinâmico de instauração, extensão e transformação de estilos de pensamento.

Um coletivo de pensamento pode ser entendido como uma comunidade de indivíduos que compartilham práticas, concepções, tradições e normas. Cada coletivo de pensamento possui uma maneira singular de ver o objeto do conhecimento e de relacionar-se com ele, determinada pelo estilo de pensamento, ou seja, pelas pressuposições que unem e mantêm os membros da comunidade.

Fleck, em sua obra, fornece vários elementos constituintes da categoria “estilo de pensamento”, não se limitando a apenas uma

definição. Cutolo (2001), em sua tese de doutorado, expõe essa categoria com a seguinte compreensão:

1- modo de ver, entender e conceber; 2- processual, dinâmico, sujeito a mecanismos de regulação; 3- determinado psico/sócio/histórico/ culturalmente; 4- que leva a um corpo de conhecimentos e práticas; 5- compartilhado por um coletivo com formação específica. (CUTOLO, 2001, p. 55).

Para Fleck (2010), o conhecimento não é neutro. Ele depende da relação do sujeito com o objeto em questão, pois o estilo de pensamento não apenas determina a observação do objeto, mas também acentua certos elementos, enquanto despreza outros. Desse modo, segundo esse autor o processo de conhecimento se dá na interação do sujeito com o objeto, mediada pelo estilo de pensamento e no interior de um coletivo de pensamento.

Para caracterizar a constituição de um “coletivo de pensamento”, Fleck (2010) representou-o por círculos esotéricos e exotéricos. O círculo exotérico seria constituído pelos indivíduos que, de uma forma ou de outra, consomem o conhecimento produzido num círculo esotérico. Segundo Slongo:

Simbolicamente, estes podem ser representados por dois círculos concêntricos: um interno, o círculo esotérico, ao qual se vincula uma minoria de indivíduos especialistas, que têm o domínio intelectual do campo do conhecimento e relacionam-se diretamente com o fato científico, cingido por outro grande círculo, o exotérico, do qual participam os indivíduos que não são especialistas na área, os não-iniciados, ou seja, os

leigos e os leigos formados. (SLONGO, 2004, p. 106, grifo meu).

Um coletivo de pensamento compõe-se de muitos círculos interseccionados, ou seja, um círculo pode ser considerado esotérico em relação a vários outros exotéricos. Um indivíduo pode pertencer a vários círculos exotéricos e a uns poucos (ou a nenhum) esotéricos. Fleck deixa claro, inclusive, que um coletivo de pensamento não é necessariamente aquele produzido por cientistas:

A fecundidade da teoria do coletivo de pensamento se evidencia justamente na possibilidade de comparar os modos de pensar primitivo, arcaico, infantil e psicótico e de analisá- los de maneira coerente. Em última instância, isso vale também para o modo de pensar de um povo, de uma classe, de um grupo qualquer. (FLECK, 2010, p. 95).

Outro ponto central da teoria de Fleck é a dinâmica de circulação de ideias e práticas entre diferentes coletivos de pensamento. Sua argumentação é de que o trabalho de um coletivo de pensamento é essencialmente cooperativo, pressupondo a comunicação, tanto no âmbito intra quanto intercoletivo de pensamento. Na dimensão intracoletiva, ou seja, no interior de determinado coletivo de pensamento, a circulação de ideias e práticas tem o importante papel de desenvolver o estilo de pensamento vigente, aprimorando-o e legitimando-o. Na dimensão intercoletiva, ou seja, entre diferentes coletivos de pensamento, quanto maior for a diferença entre os estilos de pensamento, menor será a circulação de ideias. À medida que existem relações intercoletivas, podemos concluir que há afinidades entre os estilos de pensamento em diálogo. Segundo Delizoicov,

Se a circulação intracoletiva de ideias é, segundo Fleck, responsável pela formação dos pares que compartilharão o estilo de pensamento, quer dizer, dos especialistas, no caso de um determinado coletivo de pesquisadores que constituem, o que ele denomina, um círculo esotérico, é a circulação intercoletiva de ideias a responsável pela disseminação, popularização e vulgarização do(s) estilos(s) de pensamento para outros coletivos de não-especialistas que constituem, para Fleck, círculos exotéricos relativamente a um determinado círculo esotérico. (DELIZOICOV, 2004, p. 16, grifo meu).

São várias as pesquisas em Ensino de Ciências que apoiaram-se nas ideias de Fleck como referencial teórico-epistemológico. Delizoicov, N. (1995) analisa o estilo de pensamento pedagógico de um grupo de professores da educação básica a partir de sua interação com o livro didático. A mesma autora, em 2002, a partir de dados históricos, realiza uma síntese histórica sobre o desenvolvimento e a aceitação, pela comunidade de estudiosos da época, do modelo de Willian Harvey (1578-1657) para explicar a circulação do sangue no corpo humano. O estudo foi subsidiado, entre outras fontes, pela tradução do trabalho de Harvey ([1628] 1999) e por livros e artigos da História da Ciência, da História da Biologia e da Medicina (particularmente da cardiologia). A autora problematiza o uso da analogia “coração bomba”, tanto no contexto da produção do conhecimento quanto no contexto do ensino, através dos manuais utilizados na formação docente, dos livros didáticos destinados ao Ensino Médio e dos depoimentos de professores. A partir disso, adverte sobre a importância da realização de uma contextualização histórica no uso didático de certas analogias, enfatizando que:

Se faz necessário incentivar a realização de trabalhos, particularmente na área de conhecimento da biologia, que possam não só ampliar tais discussões como também apontar possibilidades específicas de contribuição da inserção de conteúdos histórico-epistemológicos nos cursos de formação de professores. (DELIZOICOV, N., 2002, p. 169).

Outros autores dedicaram-se a uma análise epistemológica da produção de conhecimento com o auxílio do referencial fleckiano caracterizando a produção acadêmica (teses e dissertações) em programas de pós-graduação do Brasil. É o caso de Da Ros (2000), que teve como foco a área de Saúde Pública; Delizoicov (2004), que analisou a área de Educação em Ciências; Slongo (2004), que considerou a área de Ensino de Biologia; e Lorenzetti (2008), na área de Educação Ambiental.

Assim como Slongo (2004), no presente estudo fiz uso de categorias fleckianas como norteadoras da análise da produção acadêmica na área de Ensino de Biologia. De acordo com a pesquisadora:

Uma análise fleckiana, à semelhança de outras análises epistemológicas, mostra a transitoriedade do pensamento científico; contudo, para além de explicitar a alternância dos modelos explicativos, desvenda a forma como se operam as mudanças no mundo das idéias e o contingente de fatores que as influenciam e determinam. (SLONGO, 2004, p. 124).

A partir dos aspectos destacados pela autora, a categoria “estilo de pensamento” dá apoio à identificação de tendências de pesquisas; a

categoria “coletivo de pensamento” possibilita a identificação de grupos de pesquisa; e a “circulação inter e intracoletivas de ideias” embasa a compreensão da dinâmica que ocorreu na pesquisa brasileira sobre analogias e metáforas no ensino de Biologia, no período delimitado neste estudo. Essas categorias analíticas são utilizadas articuladas à Análise Textual Discursiva, procedimento de análise de textos que será apresentado na sequência.