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Notiá Imara

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Eis o canto Tupi de invocação da lua nova (Catiti); o aforismo bradado por Oswald de Andrade no “Manifesto antropófago”, em 1928 – ou ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha15 e um still do vídeo de Catiti Catiti,

de Lygia Pape, de 1978 – ou, melhor, ano 424 da deglutição. Dois anos depois, em 1980, Pape escreve a dissertação “Catiti Catiti, na terra dos Brasis”. Entre esses dois últimos eventos – filme e dissertação – e antes do incêndio do MAM-RJ está o projeto expositivo de arte indígena Alegria de viver, alegria de criar, realizado em conjunto com Mário Pedrosa e endereçado à instituição. Depois da tristeza do incêndio do MAM-RJ, em 1978, está a proposição expositiva Museu das origens, de Mário Pedrosa.

“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Enconomicamente. Filosoficamente”, exclama Oswald de Andrade. Antropofagia: “A única filosofia original brasileira e, sob alguns aspectos, o mais radical dos movimentos artísticos que produzimos”, diz Augusto de Campos.16 “A

antropofagia é tudo menos a absorção messiânica europeia”, afirma Viveiros de Castro.17 Nas manifestações artísticas brasileiras pós-1928,

todos descendemos de Oswald de Andrade, em maior ou menor grau de parentesco. No corpo da arte brasileira, a antropofagia é coluna vertebral. Cabe uma digressão para a releitura interpretativa do manifesto realizada por Azevedo (2016, p. 105), contextualizando o aforismo 25 em Catiti Catiti: “(…) ‘Já tinhamos o comunismo’, aludindo à vivência tribal dos Tupi no século XVI, muito anterior à formulação da teoria marxista, no século XIX. Ou seja, parece que Oswald quer afirmar no seu manifesto que a ‘contribuição brasileira’ determinará sua visão diante dos marcos históricos. Os Tupi já seriam comunistas antes de Marx, assim como a língua dos ameríndios já teria sido surrealista antes das vanguardas europeias.”18 Sobre o “instinto caraíba”, a autora aponta que, no universo

ameríndio, seria uma espécie de “acesso mágico” a outros mundos, bem como a “capacidade técnica” de deslocar sobre os oceanos dos navegadores europeus.19

A flecha antropofágica atinge Lygia Pape no final dos anos 60. Na sua prática artística, a partir daí, emergem discussões não sobre mitos fundadores da identidade nacional, mas sobre miStos fundadores da cultura nacional.20 Em uma entrevista, a respeito desses interesses

acerca de “origens”, Pape responde (não sem ironia): “Quando as pessoas perguntassem: ‘Que é que você está fazendo aí embaixo?’, eu responderia: ‘Estou procurando as raízes brasileiras’”.21

Procurando as raízes brasileiras em 1978, o filme em 16mm Catiti Catiti enfoca, em preto e branco, matrizes brasileiras miStas em perspectivas românticas. Ali estão: um registro de Abaporu, de 1928, de Tarsila de Amaral, impulso para a escrita do “Manifesto antropófago”; imagens de um jogo de xadrex de Marcel Duchamp; alterações na carta de Pero

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Vaz de Caminha; representações de imagens e sons clichês cariocas – a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar e as praias ao som de “Garota de Ipanema”. Em cena, um índio de cocar manipulando arco e flecha; um branco-português vestindo a camisa do Vasco da Gama e um negro dançando “‘Só danço samba”, mascarado como um criminoso, segurando um tijolo e com o outro braço imobilizado.

Em 1980, “Catiti Catiti, na terra dos brasis”’ é o título da dissertação defendida por Lygia Pape, para obtenção do grau de Mestre em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.22 É em fontes simultâneas

abundantes, nas citações de Mário Pedrosa – a quem ela dedica o trabalho – e Hélio Oiticica – recém-falecido –, que Pape bebe para desenvolver sua escrita.24 E a água chama-se cultura.

Já no resumo do trabalho, a artista aponta para a intenção de discutir a tomada de “uma consciência brasileira na arte, confirmada no título dessa dissertação, que remonta a Oswald de Andrade e ao ‘Manifesto antropófago’, até os tempos atuais, onde todos presenciam o declínio das vanguardas, no mundo desenvolvido”.

“Como bons descendentes dos povos primeiros dessa terras dos brasis – os Tupinambá – devoraremos tudo, deglutiremos todos os bispos Sardinha que encontrarmos, e devolveremos, ou melhor, já começamos a devolver, há muito, nossa profunda fúria de criação nova. 25

“Reconhecemos realmente um tropismo construtivo na arte brasileira e que com facilidade refere-se a origens no índio, no africano, no objeto de uso reciclado do nordestino, na permanência de elementos geométricos dos carnavais, nas colchas de retalhos mineiras, nas cerâmicas populares, na arquitetura espontânea de beira de praia, etc., etc. 26

“Não basta a ilustração pura e simples dos métodos do popular – seria a contrafação e o folclorismo. 27

“A nossa proposta de devolver a nós mesmos uma identidade que tivemos clara em alguns momentos de nossa história cultural torna-se, agora, premente e definitivamente necessária.” 28

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Lygia Pape, saída da esfera ismo do neoconcretismo, dirige seus pensamentos à cultura, às suas fusões miStas, com amparo no popular. Em 1966, no texto “Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica”, Mário Pedrosa já apontava para as transições “moderno-contemporâneo” para a entrada de um ciclo não puramente artístico, mas cultural.29 “Na fase

histórica que estamos vivendo, o Terceiro Mundo, para não marginalizar- se de todo, para não derrapar na estrada do contemporâneo, tem que construir seu próprio caminho de desenvolvimento, e forçosamente diferente do que tomou e toma o mundo dos ricos do hemisfério norte”.

É entre dois Catitis – filme e dissertação – que Lygia Pape propõe, com Mário Pedrosa, o projeto expositivo de arte indígena Alegria de viver, alegria de criar, endereçados ao MAM-RJ, em 1977.