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A primeira face que o sonho nos apresenta é a do estranho. Sonhar é entregar-se ao erro e ao desvario. Lugar temível, o domínio de Morfeu é como um labirinto sem projeto. Nada ali se produz, a não ser o absurdo. Vazio de qualquer sentido, privado de lógica, suas imagens incompreensíveis deveriam assinalar claramente que nele se encontra o avesso do real. Mas nem sempre é isso que ocorre. Em verdade, o que mais caracteriza o sonho-ilusionista é a imprecisão: tudo parece nebuloso como num recipiente em que se misturam múltiplas tinturas ao acaso. Provocando o esfumaçamento da experiência, o sonho traz, ao mesmo tempo, a mais incômoda das confusões: a dos percepta com os fantasmata. Em meio a essas brumas caóticas, como distinguir precisamente o sonhado do efetivamente vivido? Se o sonho é o espaço privilegiado do inexplicável e do maravilhoso – como mostra com frequência a literatura fantástica –, nem por isso deixa de, por vezes, confundir-se com o real. Quando, em Le diable amoreux, o protagonista Alvare inventaria as peripécias que atravessara nas últimas semanas de sua vida, acaba por concluir: “Tudo isto me parece um sonho (...) mas o que é a vida humana senão um sonho? O meu é mais extraordinário do que os dos outros e eis tudo” (1985, p. 32).

A frase de Alvare é reveladora. Ela mostra como o sonho, precisamente por causa de seu poder diluidor, provoca o desvanecimento da fronteira

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entre imaginação e realidade. Nas Weltanschauungen barroca e maneirista, esse sentimento de confusão se faz patente. Ambiguidade, contradição e deformidade são suas marcas. Como diz G.R. Hocke, “tudo isso é típico de uma vivência da realidade (Wirklichkeits-Erlebnis) na qual os limites entre o sonho e a vigília não mais existem” (1967, p. 218). Com essa invasão do sonho nos domínios do real, a vigília deixa de ser garantia das percepções e da verdade. “La vida es sueño”, diz Calderón de La Barca com todas as letras. E eis-nos, então, despojados de todo solo firme: se nem mesmo a inteligência desperta está livre dos fantasmas oníricos, como escapar ao erro? Surpreende ainda mais o fato de o próprio Descartes – esse implacável exorcista da desrazão – declarar-se incapaz de marcar precisamente os limites do sonho: “Se reflito mais atentamente, vejo com clareza que vigília e sonho nunca podem distinguir-se por sinais seguros, o que me espanta – e é tal este meu espanto que quase me confirma na opinião de que durmo” (1937, p. 162).

Para o “homem de logos”, tal experiência é por demais embaraçosa. É preciso livrar-se das ilusões oníricas; é preciso obter a visão “clara e distinta”. Há nessa busca da certeza vigilante um desejo de separar, de marcar limites – desejo próprio de um herói solar que, com sua espada cortante, inscreve-se no quadro das figuras diairéticas do “regime diurno do imaginário”, segundo Gilbert Durand (1984, p. 179). Por conseguinte, é preciso diminuir o sonho; reduzi-lo ao estado de mero sintoma, para assim privá-lo de qualquer poder transcendente à razão. Ora, aproximadamente um ano após a publicação de Die Traumdeutungen (A interpretação dos sonhos), Bergson realizava, em 26 de março de 1901, sua palestra sobre o sonho perante o Institut Générale Psychologique. Em 1919, a conferência era publicada junto a outros textos de caráter semelhante, em uma coletânea intitulada L’énergie spirituelle. Não deixa de surpreender o fato de que Bergson – apesar de registrar em nota marginal ter conhecimento da obra de Freud – não se curva, em momento algum, à ideia de uma possível significação encerrada na atividade onírica.

Para o filósofo, o sonho é fruto de fenômenos puramente fisiológicos. São, segundo ele, duas as matérias básicas a partir das quais se constroem os sonhos: a continuidade dos movimentos dos sentidos e das percepções durante o sono e os fragmentos de recordações armazenados no inconsciente. Quando se opera a junção entre as lembranças e a sensação, eis que surge o sonho. Bergson acreditava que cada mínima experiência de nossas vidas fica registrada no reservatório inconsciente – como que num depósito de materiais sem finalidade específica. Tais fragmentos vivenciais só podem, de fato, localizar-se numa camada inconsciente, pois se ocupassem nossa existência consciente, não nos sobraria tempo para mais nada a não ser trabalhar na organização

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desses imensos arquivos. No sonho, contudo, o sujeito se desinteressa da situação presente. Livre da tensão e da constante agitação da vigília, o sonhador abre os portões de seu armazém de memórias e abandona-se a um lúdico – e casual – desfile de desordenadas imagens.

Bergson conclui, secamente, que “o sonho geralmente não cria nada” (1964, p. 107), e acaba subtraindo-se à responsabilidade de explicar porque o sonho elege determinadas recordações em detrimento de outras. Comodamente, afirma: “As fantasias do sonho não são mais explicáveis do que as da vigília” (ibid).

Precisamente por meio do empobrecimento da atividade onírica – transformada em puro fenômeno fisiológico pelos somaticistas, como Bergson –, o “homem de logos” elimina o incômodo de enfrentar os enigmas propostos pelo sono. Tudo passa a ser fruto do rigoroso determinismo bioquímico, e pode-se, desse modo, tentar distinguir nitidamente o estado de vigília do sonhar: o primeiro é marcado pela percepção interessada e pela ação; o segundo, pela criação de imagens artificiais e pela passividade.

Importa recordar, contudo, que tal distinção inexiste nas sociedades ditas “primitivas”. Nelas, como explica Roger Bastide, os sonhos invadem o mundo solar e orientam o comportamento religioso da comunidade, elegendo xamãs e complementando a sempre inacabada epopeia mitológica das origens (1970, p. 8). Mais que tudo, o sonho é motor de criação contínua, revelador de novas verdades sagradas e processos rituais. Todavia, ainda que atuando como canal de comunicação entre o homem e o mundo do além, nem por isso o sonhar deixa de ser um evento natural – perfeitamente enquadrado no continuum do mundo físico-psíquico do “primitivo”.

Atitude semelhante perante o sonho pode ser encontrada em determinados momentos privilegiados da história do Ocidente. É o caso, por exemplo, do pensamento romântico. Em verdade, para a literatura e para a atividade do imaginário o sonho será sempre criador. Sigamos agora em seu encalço...

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