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PARTE I – CAUSALIDADE E CAUSALIDADE JURÍDICA

1.2 ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES SOBRE A CAUSA

1.2.2 Causa, acaso e caos

Segundo José Ricardo Cunha, “a leitura epistemológica da modernidade esteve amparada numa concepção monolítica e mecanicista do real, imaginando poder prever relações de causa e efeito e, assim, controlar a natureza e toda a vida social”106.

Para a física clássica, há uma estreita conexão entre causalidade e ordem, tendo em vista que aquela denota a existência de uma lei e, por conseguinte, a regularidade de algum fenômeno. Nestes quadrantes, postulou-se, então, que

(...) toda e qualquer ordem de acontecimentos no sentido temporal, qualquer que seja sua espécie, deve ser entendida como uma relação causal. Somente o caos completo e a irregularidade absoluta poderiam ser caracterizados como acontecimento causal, como mero acaso; qualquer vestígio de uma ordem já denotaria dependência e, portanto, causalidade107.

Se o conceito de relação de causalidade está ligado ao de ordem, este está conectado ao conceito de sistema, que por sua vez se relaciona, de certo modo, ao de estabilidade. No entanto, o mundo real é tudo menos estável. Enquanto um processo causal se desenrola, o restante do sistema não continua parado. Ao contrário, prossegue em seus próprios processos causais, não raro influenciando outros e sendo influenciado por eles.

104 VON SCHOLZ, Wilhelm. Der Zufall, apud JUNG, op. cit., p. 10. 

105 JUNG, op. cit., p. 8. 

106 CUNHA, José Ricardo. Direito e complexidade. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.).

Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. p. 229. 

107 SCHLICK, op. cit., p. 12. 

Diz-se, portanto, que vivemos em um mundo indeterminista, isto é, uma realidade atual que não é determinada apenas pelo estado das coisas no passado e sua normal evolução de acordo com as leis da natureza108. Ou seja, há um limite lógico insuperável à determinação e à previsibilidade em si mesma109.

O paradigma clássico da ciência assentado sobre a lei da causalidade que tudo explica é questionado sobretudo pelo paradigma da complexidade e pela teoria do caos110.

Pondera-se, em primeiro lugar, que a ciência clássica e toda epistemologia nela engendrada trouxeram inegáveis avanços tecnológicos e êxitos em diversos campos do saber. Todavia, é igualmente certo que essa leitura, se não incorreta, em muitas situações se mostrou limitada. Isto é, “há uma dimensão da realidade que pode ser conhecida, compreendida e explicada pelos padrões mecânicos da causalidade e da lógica formal da epistemologia positivista”, mas, ao mesmo tempo, existem “outras dimensões da realidade que não podem ser conhecidas, compreendidas e explicadas pela epistemologia positivista, pois não são redutíveis aos seus padrões”111.

É o que, de um modo geral, se pode afirmar do paradigma da complexidade:

abordagens reducionistas ou simplificadoras não dão conta de explicar e representar toda uma realidade naturalmente complexa, em que, não sem perplexidade, as mesmas causas podem conduzir a efeitos diferentes e causas diferentes podem produzir os mesmos efeitos112.

O paradigma da complexidade procura dissecar os paradoxos e dualismos, demonstrando a existência de antagonismos onde se imaginava haver apenas

108 É o que se infere, a contrario sensu, do conceito de determinismo ofertado por Phil Dowe: “Por determinista eu me refiro a um estado do mundo no momento da causa, que, em conjunto com as leis da natureza, fixam o estado do mundo no momento do efeito”. Tradução livre de: “By deterministic I mean the state of the world at the time of the cause, together with the laws of nature, fixes the state of the world at the time of the effect”. (DOWE, Phil. Chance lowering causes. In: DOWE, Phil;

NOORDHOF, Paul (orgs.). Cause and chance: causation in an indeterministic world. New York:

Routledge, 2004. p. 30). 

109 ROSS, Alf. Colpa, responsabilità e pena. Trad. Birgit Bendixen e Pier Luigi Lucchini. Milano:

Giuffrè, 1972. p. 182. 

110 Neste novo campo de investigação, afirma Luis Carlos de Menezes, “(...) a física é mais qualitativa que quantitativa, mais interessada na evolução do que no equilíbrio, nas inovações que nas

conservações, na estatística dos fenômenos inéditos do que na aproximação linear dos já conhecidos” (MENEZES, op. cit., p. 85). 

111 CUNHA, op. cit., p. 230. 

112 CUNHA, op. cit., p. 231. 

conexões, e vice-versa. Um de seus aspectos mais relevantes encontra-se justamente em sua noção de causalidade complexa. Postula-se que “o processo de causalidade não é linear como imaginava a ciência clássica, mas circular e interrelacional, de modo que os elementos de causação atuam reciprocamente uns sobre os outros de forma aleatória”113.

Todavia, enquanto a abordagem complexa é relativamente recente, tendo ganhado robustez teórica própria apenas no último quarto do século XX114, a noção de causalidade linear é certamente muito mais antiga, e foi com base nesta última que os institutos jurídicos que utilizam a relação de causalidade foram moldados.

Nesse sentido, é possível dizer que, longe de procurar a compreensão complexa dos fatos, o direito tende à simplificação destes mesmos acontecimentos, no intuito de delimitar, tanto quanto possível, o responsável ou os responsáveis por situação considerada danosa. O que, é claro, liga-se à concepção de direito de que o direito é uma expressão da ordem, capaz de organizar a sociedade com base nos critérios de segurança e previsibilidade, embora estes nem sempre consigam se fazer presentes. Esta lacuna termina por gerar situações de grande perplexidade e exige respostas novas aos novos problemas115.

Por sua vez, o que se convencionou chamar de “teoria do caos” propõe que as menores alterações em um sistema podem resultar em grandes diferenças em seu comportamento. São caóticos os movimentos ou processos que não são previsíveis como as trajetórias newtonianas, o que ocorre tanto com a queda de folhas secas como com o movimento de pêndulos acoplados116.

No entanto, a teoria do caos é geralmente exemplificada por meio de uma imagem muito mais poderosa: o famoso exemplo do “efeito borboleta”: a ideia de que o bater de asas de uma borboleta na Argentina poderia causar um tornado no Texas três semanas mais tarde, já que os modelos meteorológicos são tremendamente sensíveis a pequenas alterações em suas condições iniciais117.

113 CUNHA, op. cit., p. 231. 

114 CUNHA, op. cit., p. 231. 

115 CUNHA, op. cit., p. 231. 

116 MENEZES, op. cit., p. 85. 

117 BISHOP, Robert. Chaos (verbete da Stanford Encyclopedia of Philosophy). Disponível em:

http://plato.stanford.edu/entries/chaos/. Acesso em 19 mar.2011. 

A intersecção entre a teoria do caos e o direito pode ser suscitada nas grandes tragédias causadas por pequenos detalhes, não raro atribuíveis à culpa levíssima do causador dessa pequena falha118. A possibilidade de que alguns segundos de atraso da nossa presença ou ausência em um determinado lugar, em um determinado instante, seja crucial ao resto de nossas vidas é bastante sedutora e já foi explorada um sem número de vezes pela literatura e pelo cinema. O fascínio de imagens como o pequeno atraso que impede alguém de embarcar num avião que mais tarde cairá é poderoso o suficiente para explicar, em certa medida, a grande divulgação que a teoria do caos experimentou nos últimos anos.

Mas seria esse fascínio transportável ao direito? Imputar o bater de asas da borboleta como provocador do furacão implica revolver o papel da culpa na responsabilidade civil, e significa confrontar o ser humano com a dimensão e o alcance de seus próprios atos – tema que será abordado mais detidamente no próximo Capítulo.