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PARTE I – CAUSALIDADE E CAUSALIDADE JURÍDICA

2.1 PAPÉIS DA CAUSALIDADE NO DIREITO

2.1.2 A causalidade para fins de responsabilização

2.1.2.1 Função simplificadora

Se, como já dito, o direito opera mediante uma redução da realidade, filtrando o que de juridicamente relevante deflui do mundo sensível, a apuração da relação de causa e efeito entre uma conduta e um dano indenizável também passa por essa mesma redução158.

conduta de alguém não se ajustar a esses dispositivos (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2008. v. 1. p.

337).

156 “Conduta é gênero de que constituem espécies a ação e a omissão. (...) Desde logo poder-se-á entrever um denominador comum entre ação e omissão. Ambas constituem um modo de ser do homem, um seu comportamento na realidade espacial e temporal” (COSTA JÚNIOR, Paulo José. Do nexo causal: aspecto objetivo do crime. São Paulo: Saraiva, 1964. p. 6-7).

157 Veja-se, por exemplo, que, segundo o art. 13, caput, do Código Penal, “Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.” 

158 Como ressalta Cesare Salvi, a causalidade jurídica tem a função de selecionar as consequências danosas ressarcíveis (SALVI, op. cit., p. 170). 

A realidade, como bem dizia François Ewald, “não corresponde ao esquema demasiado simples de uma conduta-causa que produz um dano-efeito”159. Os processos causais não são uma cadeia, uma série de eventos singulares, no qual cada um é dependente de seu antecessor. Na verdade, qualquer processo causal tem por trás de si um complexo arranjo de eventos160.

Embora seja certo que “[a] ciência, a política, o direito, não surgem em desnexo com a ‘organização exterior’”161, isto é, que os sistemas recebam interferências uns dos outros, forçoso reconhecer que isso ocorre de maneira simplificadora, no intuito de manter a coerência interna própria de cada sistema – conceito este que, aliás, remete a cosmos, e não a caos162.

Lembre-se que, conforme ressalvaram Hart e Honoré, sem algumas simplificações e restrições, o próprio ato de contar uma história seria impossível163.

Mas se é verdade que o mundo é repleto de causalidades complexas, que por vezes passam despercebidas ao legislador ou ao juiz, não é menos verdade que simplesmente desprezar toda forma de complexidade é dar margem ao cometimento de injustiças164. Deve haver um limite razoável para a criação normativa, sob pena de “dar ao Estado a capacidade de definir a própria verdade”165.

Marcada a ressalva dos perigos da simplificação excessiva, é de se reconhecer que a valorização da complexidade e do caos, embora em expansão, ainda é incipiente (conforme exposto no Capítulo 1, item 1.2.2). Há um esforço de se encarar a concausalidade como situação excepcional, de modo que se tenta pinçar da cadeia causal algo suficiente a determinar, por si só, o evento166.

A tentação de visualizar os fatos da vida de modo mais simplificado – ou ligeiramente distorcido – é ainda maior no direito, que, por ser produto da cultura, faculta uma gama praticamente ilimitada de efeitos imputáveis aos fatos jurídicos167.

159 EWALD, op. cit., p. 169 (grifos nossos). 

160 HART; HONORÉ, op. cit., p. 72. 

161 VILANOVA, op. cit., p. 19. 

162 VILANOVA, op. cit., p. 16. 

163 HART; HONORÉ, op. cit., p. 70. 

164 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Trad. Véra Maria Jacob de Fradera.

São Paulo: RT, 1998. p. 72-73. 

165 PENTEADO, op. cit., p. 348. 

166 SALVI, op. cit., p. 174. 

167 MELLO, 2003a, p. 67. 

Nessas distorções “há, inegavelmente, uma certa arbitrariedade”, embora ela seja admissível “em face da necessidade de atender aos interesses da convivência humana”168. E a função social do direito é justamente “dar valores a interêsses, a bens da vida, e regular-lhes a distribuição entre os homens”169.

Por conta disso, pode ocorrer de a causalidade jurídica não ter como suporte a causalidade natural170-171.

Veja-se, por exemplo, que o direito admite como responsáveis tanto o sujeito que efetivamente bateu seu carro no de outra pessoa como o importador de um produto que, embora não tenha fabricado, apresentou defeito (e, portanto, causou danos) a um consumidor que não conhece172. O nexo causal que conduz ao dever de indenizar, neste último caso, é projetado pelo art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, que estabeleceu relação de causalidade pelo simples fato de o produto ter sido inserido em território nacional por conduta deste importador173. Pelo sistema

168 MELLO, 2003a, p. 40. 

169 PONTES DE MIRANDA, 1954, p. IX. 

170 VILANOVA, op. cit., p. 108. 

171 A necessidade de desvincular causalidade natural e causalidade jurídica, para certos efeitos, é um dos fundamentos da rejeição, pelo quase consenso dos juristas, da chamada teoria da conditio sine qua non, precisamente para que não haja resultados injustos na delimitação do dever de indenizar.

Cf., adiante, Capítulo 3, item 2.1.1. 

172 A respeito, common law e civil law estão de acordo que “(…) necessidades sociais podem fazer com que se deva indenizar e até mesmo (embora de modo menos óbvio) que se deva punir quando não há nenhuma conexão entre a pessoa responsável e o dano” (HART; HONORÉ, op. cit., p. 67. No original: “(...) social needs may require that compensation should be paid and even (though less obviously) that punishment be inflicted where no such connection between the person and the harm exists”. 

173 A análise que Judith Martins-Costa faz do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, cláusula geral de reparação independente de culpa, é de que a norma traduz um preceito de solidariedade social dissociado até mesmo das concepções tradicionais sobre causalidade, pois é objetivamente responsável quem desenvolve atividade que implica risco para os direitos de outrem. Segundo a autora, “[n]o substrato dessa norma está a noção de estrutura social, tão cara a Miguel Reale, entendendo-se por esta ‘um todo de valorações, determinado pela polarização de uma valoração-matriz’, incompreensível em termos de mera causalidade, ou de puras relações formais’. Assim é que, transposta ao plano da dogmática da responsabilidade civil, esta noção permite afirmar: ‘Se aquele que atua na vida desencadeia uma estrutura social que, por sua própria natureza, é capaz de pôr em risco os interesses e os hábitos alheios, a sua responsabilidade passa a ser objetiva, e não apenas subjetiva’. Em outras palavras: é a noção metajurídica de ‘atividade normalmente exercida pelo autor do dano, que implique risco’, a ser necessariamente concretizada pelo intérprete, que definirá qual o regime aplicável à responsabilidade, constituindo essa norma, ao meu ver, a projeção, neste domínio, da diretriz da solidariedade social” (MARTINS-COSTA; BRANCO, op. cit., p. 128)

do CDC, o nexo de causalidade se estabelece entre o produto ou serviço colocado no mercado (atividade de risco por natureza), e o dano174.