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2.4 A INOFICIOSIDADE

2.4.3 A cautela sociniana

A cautela sociniana é instituto do Direito sucessório português que tem lugar diante de deixa testamentária pela qual o testador, ao deixar usufruto ou constituir pensão vitalícia em favor de quem quer que seja, acaba por atingir a legítima, e assim incorrer em inoficiosidade. A peculiaridade dessa situação de inoficiosidade se dá na impossibilidade de aferição quantitativa do excesso e, por conseguinte, impedimento de uma redução. Ocorrida a conduta do testador descrita, surge aos herdeiros legitimários a opção de cumprir o legado, qual seja, o usufruto ou pensão vitalícia – ou poderão os

63TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das Sucessões: Noções Fundamentais, 6. ed. Coimbra: Coimbra

36 legitimários entregar ao beneficiário da referida deixa toda a quota disponível da herança, desfazendo-se da obrigação de cumprimento do legado.

Fique claro que apesar da explicitude com que o art. 2164º do CC/PT trata dos encargos de usufruto ou pensão vitalícia, a doutrina64 se posiciona pela expansão da aplicação da cautela sociniana a todo encargo da mesma característica dos mencionados que possa atingir a legítima. Ocorrida a situação que se descreve, ficam os legitimários abertos a escolha, confortável, pela qual analisaram o que lhes parece mais favorável entre: cumprir com a obrigação vitalícia, podendo comprometer quantitativamente e qualitativamente sua legítima, ou entregar toda a quota disponível com a proteção quantitativa e qualitativa completa da legítima.

Não parece se tratar, aqui, de permissão para que os herdeiros descumpram o encargo. A lei se apresenta, na verdade, sob a motivação da proteção da legítima – em equilíbrio com a vontade do auto da herança – e da praticidade no cumprimento das deixas testamentárias. Há uma proteção da legítima que se reconhece na possibilidade de escolha, de forma que, se a escolha for pelo cumprimento do encargo, a eventual obrigação que diminui quantitativamente a herança recebida pelo legitimário terá ocorrido por escolha dele. A praticidade é concebida na solução imediata de questões de prestação continuada que poderiam vir, futuramente, a constituir litígio, ou problemas dos legitimários com o beneficiário do usufruto ou da pensão. Optando os legitimários pela entrega da quota disponível, esses se veem, desde já, desobrigados a qualquer relação continuada com o beneficiário – podendo, entretanto, optar por manter essa relação, caso achem viável.

Tanto a facilidade, quanto a proteção da cautela sociniana só têm razão de existência na sucessão da qual se percebe a existência de quota disponível a ser partilhada. Isso por que não havendo quota disponível – por já ter sido antecipadamente disposta –, não poderá a legítima ser submetida ao encargo do usufruto, ou da pensão vitalícia, e tampouco qualquer outro por força do art. 2163º. Com isso, sendo hipótese de quota disponível já preenchida por doações a terceiros, por exemplo, a disposição testamentária que impõe a pensão vitalícia, também como exemplo, deverá ser desconsiderada, podendo os legitimários receber tranquilamente sua legítima, que já lhes caberia, sem cumprir ou se manifestar sobre o encargo. Ponto esse que se justifica

64Nesse sentido: ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Sucessões. 5. ed. Coimbra: Coimbra

37 pela disposição legal do art. 2163º, mas que se justificaria, na mesma proporção, por um argumento de razão lógica: não havendo quota disponível a receber os legitimários, buscando seu benefício, optariam pela 2ª possibilidade do art. 2164º, ou seja, entregar a quota disponível – igual a zero – para o beneficiário, ficando com sua legítima. Tem-se, aí, o mesmo efeito prático do art. 2163º.

Estende-se, aqui, mais algumas palavras sobre a cautela sociniana em decorrência do objetivo futuro de comparação com o Direito brasileiro, já que este não possui o referido instituto em sua codificação. Assim, este é o momento de analisar o instituto para que se proceda, em momento oportuno, considerações sobre sua aplicação no fenômeno sucessório brasileiro.

Portanto, uma questão que nos atemos em posição final de análise da cautela sociniana é atinente à aceitação dos herdeiros legitimários da escolha. Existindo mais de um legitimário, como se procederá a escolha entre cumprir o encargo e tomar toda a herança ou entregar a parte disponível? Sobre o tema, Oliveira Ascensão65 já se manifestava pela possibilidade construída por Antunes Varela de uma opção individual de cada herdeiro, da qual se retiraria a quota hereditário de cada um deles. Aqueles que optassem por entregar sua quota disponível estariam dispensados do cumprimento do encargo, ao passo que aqueles que optassem por cumprir o encargo receberiam, também, sua parte na quota disponível e manteriam sua obrigação assumida, em uma declaração unilateral recepitícia66. Analisando sob uma outra ótica, pode ser essa escolha uma obrigação unitária dos herdeiros, o que acarretaria a obrigação de manifestação de todos no mesmo sentido. É o que menciona Oliveira Ascensão67 como possibilidade interpretativa analógica com as dívidas no processo de inventário e pela aplicação do art. 2091º n. 1, in verbis:

Artigo 2091.º

(Exercício de outros direitos)

1. Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. [...]

65ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Sucessões. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 382. 66Solução baseada na copropriedade dos herdeiros, conforme: FERNANDES, Luís A. Carvalho. Lições

de Direito das Sucessões. Lisboa: Quid Juris, 2012. p. 433, apoiado nas lições de LIMA, Pires de. VARELA, João de Matos Antunes. Código Civil anotado: Volume VI. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 266 – 267.

38 Interpretando a escolha como um direito dos herdeiros legitimários, uma vez que cabe a esses e somente a eles o poder de decisão, poder-se-ia entender pela aplicação do supracitado artigo de modo a construir o caráter unitário dessa decisão.

Há duas possibilidades de reflexos práticos intensos das quais não se busca, aqui, uma escolha definitiva de posição, mas assevera-se que a doutrina compartilha da posição pela qual se aceita a compartimentação das escolhas, podendo cada herdeiro legitimário exercer a opção individualmente. Consideração que reforça, na esfera prática, essa posição é a noção individual do herdeiro como detentor da proteção à sua legítima e não à totalidade da legítima, de forma que analisar individualmente tanto a escolha de cada herdeiro, quanto a cautela sociniana, é impedir que somente um herdeiro seja apto a obrigar os demais a cumprir o legado vitalício quando os mesmos prefeririam entregar a parte disponível. Assim, para visualização, um herdeiro legitimário que já tenha recebido uma liberalidade em vida imputável na quota disponível – pelo art. 2114, n. 1, CC/PT – por já se sentir beneficiado, poderia optar por manter o pagamento da pensão vitalícia, e assim impediria os demais herdeiros legitimários de se livrarem desse encargo pela entrega da parte disponível. Essa capacidade de um herdeiro, por sua decisão individual, influir diretamente no quinhão hereditário recebido pelos outros herdeiros é sempre temerosa por se tratar a sucessão de fenômeno que constantemente reflete tensões características das relações familiares. Parece então acertada, por as linhas de argumentação trazidas, a posição de analisar a cautela sociniana para cada herdeiro individualmente.

Não se pode alcançar o próximo assunto sem mencionar sobre a cautela sociniana a interessante e solitária posição de Pamplona Corte-Real sobre a quota disponível para entrega ao beneficiário, em detrimento do cumprimento do legado. Baseando-se em um critério quantitativo de intangibilidade da legítima na aplicação da cautela sociniana, entende-se que só será aplicável a referida opção, caso haja quota disponível suficiente para a imputação do encargo. Percebe-se, aqui, que o autor constrói um procedimento de imputação do encargo vitalício (usufruto ou pensão) na quota disponível, para primeiro verificar a inoficiosidade do próprio encargo e de outras liberalidades ocorridas. Organizando em etapas o referido raciocínio: I) Primeiramente deverá o encargo ser quantificado; II) Posteriormente imputado na quota disponível para verificação de inoficiosidade; III) Feita a verificação, deve-se analisar as possíveis

39 reduções, sendo factível, inclusive, que a cautela sociniana não seja aplicável caso a parte livre da quota disponível não seja capaz de suportar o encargo quantitativamente.

Sobre a posição descrita, tece-se duas considerações. É posicionamento que se desvincula totalmente de critérios simplificativos do fenômeno sucessório, ou seja, a aplicação da lógica apresentada complica, na prática, a aplicação da cautela sociniana. A quantificação das disposições a que se refere a cautela sociniana são de penosa verificação. Como sugere o próprio autor, deveria partir de “regras específicas, fiscais e/ou processuais”, buscando em outros meios de quantificar o encargo. Não se menciona a dificuldade desse caminho como obstáculo à sua aplicação, isto porque não é o fato de ser laborioso um pensamento que impede sua execução. Apesar da complicação da aplicação real dessa teoria, com relação a quantificação, é importante verificar que guarda profunda precisão técnica ao harmonizar-se com a norma que, ao que aprece, exigiria de qualquer forma uma quantificação do encargo para verificar se a legítima foi “atingida”, ainda que essa quantificação seja estimada como a pensão vitalícia. Da mesma forma será necessária a quantificação para efeitos de declaração de inoficiosidade de deixas testamentárias, uma vez que são prioritariamente reduzidas frente aos legados68 – natureza das deixas que suscitam cautela sociniana –, afinal, as deixas testamentárias poderão inclusive ser reduzidas caso impeçam que o legado do usufruto ou da pensão vitalícia seja comprometido. Por sequência lógica de raciocínio, necessitando da quantificação desse legado para verificação de inoficiosidade e para o próprio cabimento da cautela sociniana, poder-se-ia utilizá-lo para verificar se não se trata de legado que supera a parte livre da quota disponível, sendo assim algo equiparado a inoficioso, de forma que a solução para que se leve em conta a vontade do de cujus figura a redução do legado de forma que respeito a parte livre da quota disponível – aplicando-se as reduções na forma da lei e cumprindo-se com a estipulação.

Não se pretende chegar à uma análise final do tema, que merece análise própria e profunda, mas é relevante sua suscitação, uma vez que, não sendo instituto afeto ao Direito brasileiro, possui, ainda assim, aplicabilidade quanto aos legados de prestações continuadas e vitalícias como o legado de alimentos do art. 1.920 do Código Civil brasileiro, e o legado de usufruto previsto no art. 1.921 do mesmo diploma legal.

68Art. 2171 º do Código Civil português.

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