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Capítulo 2: Os animais e a entrada do selvagem na cidade

2.1 Cavalos

proximis diebus equorum greges, quos in traiciendo Rubiconi flumini consecrarat ac uagos et sine custode dimiserat, comperit pertinacissime pabulo abstinere

ubertimque flere216

(Suet. Iul. 81.2)

O presságio acima transcrito é transmitido por Suetónio. Neste caso, os cavalos que César havia dedicado ao deus do rio Rubicão recusam comida e choram. A recusa da comida e o choro tornam o acontecimento um prodígio, visto que tal comportamento era anormal para um cavalo. Esta tristeza da manada pode ser vista como uma demonstração de luto217, remetendo-nos para uma dimensão dos omina mortis de César que

analisaremos na segunda parte da Dissertação: a morte de César fora equivalente à morte de um deus protector de Roma. O recurso ao choro enlutado dos cavalos enquanto contributo para a construção imagética heróica de uma personagem, não é, per se, completamente original, sendo possível estabelecer-se paralelos literários com episódios semelhantes em epopeias da Índia Antiga ou até mesmo na Ilíada (Il. 17.426-428)218.

Além do comportamento enlutado dos animais, dois outros factores contribue m para o carácter augural sobremaneira negativo, nomeadamente, o facto de os anima is escolhidos para a composição do presságio serem cavalos e o facto de estes estarem dedicados a um rio. O cavalo era um animal detentor de uma componente ctónica, sendo sagrado para Marte219 eestando especialmente associado a Neptuno220 (divindade tida em

algumas narrativas mitológicas gregas como sua criadora221). Na mitologia grega, Posídon

(o deus grego identificável com o Neptuno dos Romanos) chegou mesmo a assumir a forma de um cavalo para seduzir a sua irmã, Deméter, estando ela em forma de égua222.

216 Tradução: Nos dias antecedentes [à sua morte] descobre que uma manada de cavalos, que aquando

da travessia do Rubicão consagrara ao rio e deixara livre para vaguear sem custódia, absteve-se de pasto muito obstinadamente e chorou copiosamente.

217 Requena Jiménez, «Los caballos que lloraban a César», 148 e 149. 218 Ibid., 146–147.

219 Tony Allan e Sara Maitland, Ancient Greece and Rome: Myths and Beliefs, 89.

220 Prieur, Les animaux sacrés dans l’Antiquité: art et religion du monde méditerranéen, 142; Tony Allan e

Sara Maitland, Ancient Greece and Rome: Myths and Beliefs, 50; Barbosa, «Representações do ctonismo na cultura grega (séculos VIII-V a.C.)», 85; Bouché-Leclercq, Histoire de la divination dans l’antiquité, 1:126.

221 Allan e Maitland, Ancient Greece and Rome: Myths and Beliefs, 50. 222 Ibid.

41 Esta dimensão ctónica é uma componente presente nos vários omina mortis que propomos estudar, como em muitos outros, adquirindo para os Romanos uma carga simbólica essencialmente funesta223. O próprio Vitélio teve um portento negativo,

aquando da sua aclamação como imperador, no qual os louros com que o estavam a coroar imperador caíram ao rio224, sendo exactamente essa associação entre o rio e os deuses

ctónicos que confere à queda da coroa um carácter duplamente nefasto, como Requena Jiménez já comprovou225.

Igualmente importante para a compreensão plena dos elementos simbólicos presentes no omen que foi transmitido por Suetónio é o facto de o cavalo ser um animal ligado à soberania. Como refere Miguel Requena Jiménez, no artigo que dedica à interpretação deste presságio, «Al igual que ocurre con otros atributos imperiales, entre los que podemos citar el trono, el cetro, la corona, el anillo o el vestido imperial, el caballo participa mágicamente de la esencia del poder absoluto, pudiéndolo incluso transmitir por magia contagiosa a aquel que entra en contacto con él o, sobre todo, a aquella persona que es capaz de poseerlo/montarlo»226.

Relativamente a César, conta Suetónio que utebatur autem equo insigni, pedibus

prope humanis et in modum digitorum ungulis fissis, quem natum apud se, cum haruspices imperium orbis terrae significare domino pronuntiassent, magna cura aluit nec patientem sessoris alterius primus ascendit; cuius etiam instar pro aede Veneris Genetricis postea dedicauit227. Este passo de Suetónio vem reforçar o simbolismo da

ligação do cavalo não só à soberania, mas especialmente à soberania de César. Esta ligação simbólica seria, com certeza, exacerbada, pelo facto de os equídeos em causa terem sido consagrados pelo ditador, aquando da sua travessia do Rubicão228, momento

que marca o início da guerra civil com Pompeio e, consequentemente, a assunção do poder absoluto por parte de Júlio César. Um cavalo havia outrora pressagiado a ascensão

223 Requena Jiménez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador

romano, 187.

224 Suet. Vit. 9.

225 Requena Jiménez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador

romano, 194.

226 Requena Jiménez, «Los caballos que lloraban a César», 144.

227 Suet. Iul. 61. (Tradução: Por outro lado, montava um cavalo distinto, com pés quase humanos e com

os cascos divididos como dedos. Esse cavalo havia nascido em sua casa e havia sido criado com grande cuidado, dado que os arúspices haviam pronunciado que o seu dono governaria o globo in teiro, e César foi o primeiro a montá-lo dado que o animal não aceitava que outro o fizesse. Posteriormente, uma estátua desse cavalo foi erigida por ordem de César diante do templo de Vénus Genetriz).

42 de César ao poder, outros (também eles intimamente ligados a um dos principa is momentos dessa ascensão) vinham agora pressagiar a morte de César229.

Requena Jiménez interpreta o luto dos cavalos como manifestação de um paralelo simbólico que seria estabelecido entre esses mesmos animais e os libertos de César. A justificação fornecida por este autor para consubstanciar a sua tese assenta em duas vertentes essenciais: a utilização da expressão uagos et sine custode dimiserat, para designar o estado em que César havia deixado os cavalos (estabelecendo-se assim um paralelo com a manumissão de escravos e a sua consequente transformação em libertos); e pelo comportamento que era exigido aos libertos de qualquer falecido, expectativa da sociedade da Antiga Roma magistralmente sintetizada por Requena quando explica que «Su afecto hacia aquel que los había liberado de su condición de esclavos, no podía más que manifestarse en profundas y sinceras muestras de tristeza y dolor»230.

Ainda que reconhecendo o mérito da tese de Requena Jiménez, parece-nos pertinente avançar uma proposta de leitura alternativa (ainda que não mutuame nte exclusiva). Para um entendimento mais completo do significado do presságio, impõe-se, na nossa opinião, o seu devido enquadramento no enorme e diverso conjunto de omina

mortis de César, identificados pelas fontes que nos chegaram. Ainda que um estudo mais

aprofundado desse conjunto de presságios seja fornecido no subcapítulo “Diuus Iulius, protector de Roma”, impõe-se de momento uma breve incursão nessa temática.

A dimensão divina e, consequentemente, protectora, assumida pela figura de Júlio César nos seus presságios de morte é verificável em dois conjuntos completame nte dissemelhantes: por um lado, os presságios de carácter impessoal e de espacialidade alargada, que se assumem enquanto presságios colectivos que nos remetem não só para a morte de César, mas especialmente para as consequências danosas que o seu assassínio acarretaria para todos os Romanos; por outro lado, um segundo conjunto de presságios com uma forte ligação a César e com uma carga simbólica muito específica e pessoal que remete de forma clara para o estatuto divino que César exibiria ainda em vida.

O primeiro conjunto (e o único que nos interessa por agora apresentar em virtude de ser nele que o presságio em análise se enquadra) encontra-se nas Metamorphoses de

229 Já Maria Cristina Pimentel havia notado a possível ligação entre estes dois presságios, vide Pimentel,

«Praesagia, prodigia, omina: da ténue fronteira entre religio e superstitio», 248.

43 Ovídio, se bem que não se limite de forma alguma a esse autor. Destaquemos três passos que nos remetem para nove omina mortis de César:

Solis quoque tristes imago / lurida sollicitis praebebat lumina terris. / Saepe faces visae mediis ardere sub astris, / saepe inter nimbos guttae cecidere

cruentae231

(Ov. Met. 15.785-788)

Tristia mille locis Stygius dedit omina bubo, / mille locis lacrimavit ebur, cantusque feruntur / auditi sanctis et verba minantia lucis232

(Ov. Met. 15.791-793)

Inque foro circumque domos et templa deorum / nocturnos ululasse canes umbrasque silentum / erravisse ferunt motamque tremoribus urbem233

(Ov. Met. 15.796-798)

Visto que será feita em momentos posteriores do trabalho, não se impõe de momento, e no contexto dos objectivos do presente capítulo, o fornecer de uma análise pormenorizada dos elementos simbólicos que conferem carga negativa aos presságios acima transcritos. No entanto, é essencial que se saliente o carácter geral dos presságios fornecidos como exemplo: o sol dá uma luz lívida a todo o mundo (e não a César), o mesmo carácter impessoal está patente na referência às estrelas, à chuva e aos terramotos (elementos vistos e vivenciados pelo colectivo e não somente pelo indivíduo); esse mesmo carácter impessoal, generalizado e de certa forma simbolicamente colectiviza nte dos presságios, é verificável nas estátuas que choraram em mil locais, ou nos bosques sagrados em que se ouviram uerba minantia, ou nos cães que uivaram no forum, ao redor das casas e dos templos, tal como na coruja que piou em mille locis.

O luto dos cavalos no presságio que é transmitido por Suetónio está assim claramente alinhado com a dimensão colectiva e impessoal que muitos dos omina mortis de César assumem. Parece-nos então que o luto dos cavalos deve ser entendido não tanto (ou não só) pelo potencial paralelismo com o luto dos libertos de César, devendo ser interpretado essencialmente pelas consequências nefastas que a morte de César teria para

231 Tradução: Também uma triste imagem do sol dava à terra tremeluzente uma luz lívida.

Frequentemente foram vistas tochas a arder entre as estrelas, e frequentemente gotas de sangue caíram durante chuvas torrenciais.

232 Tradução: Tristemente a coruja deu maus portentos em mil locais, o marfim [as estátuas] chorou em

mil locais, e palavras ameaçadoras foram proferidas em florestas sagradas.

233Tradução: No fórum, e ao redor das casas e dos templos dos deuses, os cães nocturnos uivaram e as

44 todos os Romanos. Tão graves eram as calamidades que, em virtude do assassínio de César, se abateriam sobre a Itália, magnisque mox Italiae cladibus234, que até os cavalos

(detentores de certas e ocasionais capacidades divinatórias235) choravam e recusavam

comida, muito à semelhança das estátuas que em mille locis lacrimavit236.

No conjunto de presságios de morte que propomos estudar, existe um outro construído por intermédio da presença do cavalo. Uma vez mais, Suetónio conta o seguinte, acerca de um cavalo asturiano, por quem Nero tinha particular apreço:

posteriore corporis parte in simiae speciem transfiguratum ac tantum capite integro hinnitus edere canoros237. O facto de o cavalo em causa ser de origem asturiana torna-se

especialmente significativo, dado que Nero foi deposto por Galba, que era governador na Hispânia à data da sua insurreição.

A transformação do cavalo de Nero parece significar a perda de poder, situação que, no contexto de um regime de soberania vitalícia, significaria necessariamente a morte da pessoa em causa. Como já se teve a oportunidade de referir, o cavalo tinha, no período romano, uma ligação simbólica ao poder, daí a representação de diversos imperadores em estátuas de tipo equestre, que, pela clara função de reforço da soberania simbólica do imperador, marcam inclusivamente presença em presságios de morte por intermédio da sua nefasta queda ou destruição238. A metamorfose do cavalo que se torna

assim um híbrido remete a audiência para o fim do principado de Nero e, simultaneamente, para a acessão de Galba ao poder.

A transformação do cavalo favorito de Nero num híbrido de cavalo-macaco equivaleria simbolicamente, para a audiência romana, à perda de um atributo imperia l (imagem recorrente nos omina mortis, ainda que seja normalmente feita por interméd io da queda da coroa ou de estátuas imperiais), sendo que a natureza prodigiosa subjacente à transformação parcial de um animal noutro vem apenas reforçar o sentimento de providência divina. Os deuses de Roma, em cujo nome Nero governava, retiravam-lhe de

234 Suet. Iul. 81.1.

235 Requena Jiménez, «Los caballos que lloraban a César», 146. 236 Ov. Met. 15.791-793.

237 Suet. Nero 46.1 (Tradução: A parte posterior do corpo havia-se metamorfoseado num símio e a sua

cabeça inalterada havia relinchado melodiosamente).

45 uma forma claríssima o usufruto do poder que outrora lhe haviam concedido (recordemos a afirmação de César segundo a qual Júpiter era o verdadeiro rei de Roma239).

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