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Capítulo 2: Os animais e a entrada do selvagem na cidade

2.3 Corujas

Tristia mille locis Stygius dedit omina bubo275 (Ov. Met. 15.791)

βουλῆς τε ἐπὶ τῇ νόσῳ αὐτοῦ ἐπαγγελθείσης, ἵν᾽ εὐχὰς ποιήσωνται τό τε συνέδριον κεκλειμένον εὑρέθη καὶ βύας ὑπὲρ αὐτοῦ καθήμενος ἔβυξε276

(D.C. 56.29.3)

É por intermédio dos dois presságios de morte transcritos (o primeiro é relativo a Júlio César e o segundo a Augusto) que se dá conta da presença, em contexto de omina

mortis imperiais, não somente de cães ou cavalos, mas também de corujas.

A arte augural romana assentava na observação das aves, dividindo-as em duas categorias: oscines, aves utilizadas na adivinhação levando em conta sobretudo os sons que emitiam, destacando-se neste caso as corujas ou os corvos; e alites, aves que se destacavam pelo voo, que era particularmente observado, entre as quais se incluíam as águias ou os abutres. No que diz respeito à coruja, a tradição augural pressupunha descodificar mensagens positivas ou negativas no volume, entoação e frequência dos seus pios. Essa aparente neutralidade do pio da coruja, no que diz respeito à adivinhação augural, não parece ter sido capaz de se sobrepor ao carácter nefasto que o corujar assumia na mentalidade simbólico-cultural do povo romano, sendo essa construção simbólica de tal forma evidente que a literatura greco-latina utiliza recorrentemente o piar da coruja/mocho como portento negativo. Semelhante situação é igualmente observável em contexto de omina mortis imperiais, sendo verificável a utilização regular da coruja (por intermédio não só da sua presença, mas também do seu corujar) enquanto anunciadora da iminente morte do imperador277.

A presença da coruja em presságios de morte dificilmente surpreenderá o leitor visto este ser um animal presente em várias culturas, assumindo características que o

274 Vide e.g. Roux, Faune et Flore sacrées dans les sociétés altaïques, 72 e 73. 275 Tradução: Tristemente, a coruja deu maus portentos em mil locais.

276 Tradução: Quando foi anunciada a reunião relativamente à sua enfermidade, para que se realizassem

as súplicas, o senado foi encontrado encerrado e era frequente um mocho pousado sobre ele lançar gritos.

50 associam, como escreve Charro Gorgojo, à «muerte y al desastre»278. Culturas essas tão

dispares quanto as do mundo bíblico, do Antigo Egipto, da China ou da cultura azteca279.

A cultura greco-romana não é, portanto, caso único. Especialmente revelador da dimensão nefasta que este animal assume na cultura greco-romana é o facto de, na mitologia grega, Deméter ter decidido castigar Ascálafo, por este denunciado que Perséfone havia ingerido as famosas bagas de Romã que a impediam de abandonar o submundo de forma definitiva, transformando-o num mocho280. É, pois, neste contexto

que verificamos a existência, no mundo romano, de práticas como a purificação do templo de Júpiter sempre que uma coruja lá entrava281; ou o facto de os prisioneiros e desertores

gregos e romanos serem marcados com representações várias, entre as quais a da coruja e a do mocho282.

A justificação de tal atitude em relação às corujas deve ser formulada levando em conta que estas são animais essencialmente nocturnos, estando, por isso mesmo, associados à morte e ao selvagem (o próprio Ovídio, nos Fastos, associa-as à bruxaria283).

A carga augural simbolicamente negativa impressa pela coruja em ambos os presságios em análise é conferida não somente pela natureza nefasta que este animal e o seu pio tendem a assumir na cultura romana, mas também (e à semelhança do presságio dos cães, que analisámos nas páginas anteriores) pelo facto de a sua presença e acções remeterem o interlocutor para a entrada do selvagem na esfera do civilizado protegido pelos deuses284. Esse processo constitui-se então como manifestação da quebra da pax

deorum e consequente perda de protecção divina285. A coruja é, aliás, um dos anima is

recorrentemente utilizados pelos autores romanos para representar a transgressão da fronteira que separava a cidade do perigoso mundo selvagem, situação retratada por Plínio quando escreve o seguinte: bubo, funebris et maxime abominatus publicis praecipue

278 Gorgojo, «Lechuzas y búhos: aves de mal agüero», 75. 279 Ibid., 75–77.

280 Ov. Met. 5.535ff.

281 Gorgojo, «Lechuzas y búhos: aves de mal agüero», 77. 282 Ibid.

283 Ov. Fast. 6.139-142.

284 Para a dicotomia entre o espaço urbano e o espaço selvagem vide Francisco Javier Fernández Nieto,

«Frontera como Barrera: el valor religioso y mágico del límite en la cultura griega», em Fronteras e

identidad en el mundo griego antiguo: III Reunión de Historiadores (Santiago-Trasalba, 25-27 de Septriembre de 2000), 1a (Santiago de Compostela: Universidad de Santiago de Compostela, 2001), 227 –

240.

285 Requena Jiménez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador

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auspiciis, deserta incolit nec tantum desolata, sed dira etiam et inaccessa, noctis monstrum, nec cantu aliquo vocalis, sed gemitu. itaque in urbibus aut omnino in luce visus dirum ostentum est286.

A aplicação desta proposta interpretativa ao presságio de morte apresentado por Ovídio poderia supor, à primeira vista, um problema óbvio de sustentação: o poeta nunca refere que a coruja estivesse na cidade, dizendo apenas que foi avistada em mille locis. O carácter vago e de localização geográfica alargada impresso pelas palavras de Ovídio ao presságio vai claramente em linha com a dimensão dos omina mortis de César já aqui referida. Ainda que Ovídio não especifique se os mil locais onde a coruja foi vista e ouvida incluem ou não o espaço urbano, é bastante improvável que o autor não tivesse essa inclusão em mente. O mundo romano adquiriu desde muito cedo uma clara componente citadina, omnipresença do mundo urbano essa que transparece nos omina romanos (por decorrerem na sua maioria em ambiente urbano e por recorrerem regularmente ao simbolismo da transgressão das fronteiras citadinas).

Nesta fase inicial do principado, a própria cidade de Roma era o cenário quase exclusivo da maioria dos omina mortis cujo local de ocorrência é mencionado. Esta realidade opõe-se à tendência prevalecente no século e meio anterior, período durante o qual foi verificável um alargamento geográfico da ocorrência de presságios para incluir toda a Itália287. Os presságios perderam a sua dimensão de prodigium publicum para se

tornarem maioritariamente pessoais, entenda-se, imperiais. Da mesma forma também Itália acabou por se ver esvaziada de capacidade para permanecer enquanto cenário dos

omina, os presságios eram imperiais, Roma o local de residência do imperador, logo é

natural que Roma se tenha tornado o local onde a maioria dos omina mortis ocorrem. O presságio de morte que Díon Cássio associa a Augusto (o segundo omen citado no início deste subcapítulo288) não coloca os mesmos problemas. A sua espacialidade é

bastante clara: aquando do início dos preparativos para uma reunião do senado – convocada pelo facto de Augusto ter adoecido (o que viria a revelar-se fatal) – foi

286 Plin. Nat. 10.16. (Tradução: O mocho, fúnebre e especialmente abominado sobretudo nos auspícios

públicos, reside em zonas desertas e não só solitárias, mas também inacessíveis e sinistras, um monstro da noite, não canta melodiosamente de forma alguma, senão por um gemido. Consequentemente, vê-lo nas cidades ou à luz do di a é um presságio amedrontador).

287 Vide MacBain, Prodigy and Expiation: a Study in Religion and Politics in Republican Rome, 28. 288 D.C. 56.29.3.

52 observada a presença de uma coruja sobre a Cúria. Nota-se então que a presença da coruja sobre o edifício representativo do poder político foi tida como nefasta.

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