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CEBRAP: primeiros e múltiplos passos

No documento TeseDoutoradoMarcoAntonioPerruso (páginas 55-60)

1.3 Renovação intelectual das ciências sociais no Brasil

1.3.4 CEBRAP: primeiros e múltiplos passos

“Seria possível introduzir as Luzes na vida pública a não ser esclarecendo os príncipes? Seria possível esclarecer os príncipes a não ser integrando o seu círculo mais próximo? Seria possível fazer parte de tal círculo sem transformar-se em cortesão? Seria possível tornar-se cortesão e permanecer independente como homem de letras? Voltaire fazia muito mais do que formular tais perguntas – que seriam as de todos os intelectuais ainda por vir, e quer o príncipe se chamasse monarca ou presidente, ou opinião pública ou revolução, proletariado ou juventude -, ele as vivia.” (LEPAPE, Pierre - Voltaire –

Nascimento dos Intelectuais no Século das Luzes,

Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, p. 176)

O CEBRAP foi formado inicialmente por intelectuais que estudaram e iniciaram suas carreiras acadêmicas na USP. O padrão rigoroso de pesquisa e análise que seguiam, a radicalização política por que passava essa geração intelectual em plena ditadura militar e o marxismo acadêmico que desenvolviam tornava o CEBRAP um legítimo detentor da “herança” uspiana, mas ao mesmo tempo dotado de singularidades.

Nas palavras de Sorj:

“Graças a esta formação, os futuros membros do CEBRAP adquiriram um sólido treinamento em formular uma análise social expurgada da retórica ideológica. Este será um dos aspectos ‘fortes’ dos trabalhos do CEBRAP e, inclusive, de certa forma, facilitará sua sobrevivência no período de repressão do regime militar. A censura tem dificuldades com pesquisadores que não utilizam a retórica de tipo partidária para expressar suas idéias, mesmo que elas sejam, às vezes, de inspiração marxista.”58

Os intelectuais isebianos, um dos grandes alvos da repressão, se dispersavam pelo exterior, enquanto alguns uspianos, agora cebrapianos, cada vez se engajavam mais. Mesmo assim não eram estranhos uns aos outros. Muitos participaram de publicações intelectuais e de esquerda no período, como foi o caso da Revista Civilização Brasileira. Francisco de Oliveira, membro destacado do CEBRAP, tinha um “passado populista” por sua atuação na SUDENE

58 SORJ, Op.Cit., p. 16.

(Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) no pré-64. A distância política e social entre as gerações intelectuais pró e anti-populista não era tão grande.

A Fundação Ford foi a principal doadora a sustentar o CEBRAP no período de 1969 e 1973. Este apoio financeiro provocou um debate interno sobre sua conveniência: Octavio Ianni, similarmente à posição anterior, desde a USP, de Florestan Fernandes59 (que não era do CEBRAP, mas fora orientador de pós-graduação de muitos de seus membros) se opunha, mas aparentemente a autonomia do trabalho intelectual fora garantida. Posteriormente as dotações orçamentárias da Fundação Ford foram decaindo.60

Muitos dos intelectuais cebrapianos tinham sido orientados em suas dissertações e teses por Florestan Fernandes, e constituíram desde cedo um grupo de alto nível acadêmico, auto-rigoroso, auto-centrado, competitivo internamente e mesmo provinciano.61

O CEBRAP surge então se caracterizando pela preservação da pesquisa de matiz acadêmico, mais rigorosa analítica e empiricamente. E trazendo grande influência do marxismo, desde o famoso Seminário de Marx, do qual muitos cebrapianos participaram na USP. Diante da perseguição política nas universidades, havia uma certa distância da militância política, bem como o desafio de conviver com uma realidade não-universitária. Assim, inovavam ao buscar financiamentos fora da universidade, obrigando-se ainda a novas demandas, temas, abordagens, conceitos. O CEBRAP não formava estudantes/pesquisadores, sendo antes uma referência para a renovação teórico-analítico-metodológica das ciências sociais, mas também para o pensamento de oposição e de esquerda, pois desenvolvia diversas pesquisas e debates sobre as transformações pelas quais passava o Brasil durante a modernização conservadora. Seus membros, ao conjugarem expressão política e competência acadêmica, alcançavam um grande público intelectual.62

Em meados da década de 1970 a USP passa a ser promovida por alguns analistas brasileiros como paradigma de produção independente de conhecimento, em contraposição ao ISEB, como seria o caso de Caio Navarro de Toledo em “ISEB: Fábrica de Ideologias” e Carlos Guilherme Mota em “Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974)”. O que é “compreensível no quadro de uma geração que descobre a ‘sociedade civil’ e deseja ajustar

59 Florestan não aceitava apoio de fundações estrangeiras de fomento: FERNANDES, Op.Cit., p. 185. 60 SORJ, Op.Cit., p. 32 e 47.

61 FERNANDES, Op.Cit., p. 185. Também SORJ, Op.Cit., p. 15, citando opinião de Fernando Henrique

Cardoso, dentre outros.

contas com o período populista”, embora não fazendo “justiça às relações complexas que a USP mantinha com a realidade política”.63

Aqui Sorj relativiza a visualização miceliana das ciências sociais brasileiras, embora tal tipologia binária ISEB x USP já tivesse sido prenunciada, talvez não tão claramente, por Caio Navarro de Toledo e Carlos Guilherme Mota antes que Miceli a corroborasse empírica e analiticamente.

O Seminário de Marx, realizado na USP por alguns ex-alunos de Florestan Fernandes sem que este tivesse sido chamado a participar, a princípio poderia ser algo meio contraditório, segundo opina Fernando Henrique Cardoso, pois buscava trazer a obra de teor totalizante de Marx para o espaço acadêmico, normalmente eclético em termos intelectuais.64 Mas deve ser lembrado que a profissionalização das ciências sociais comportava uma abertura para diversas correntes teóricas e metodologias. O CEBRAP publicou muitos trabalhos não- marxistas, alguns de correntes de pensamento pouco conhecidas no campo intelectual brasileiro.

Os uspianos estavam antenados com as novas tendências internacionais de pensamento: a sociologia européia e estadunidense em geral, a Nova Esquerda, a Contracultura.65 Além disso, certamente fazia parte do ajuste de contas com o populismo e o pecebismo, promovido pelos uspianos/cebrapianos, uma apropriação de Marx que não se confundisse com a perspectiva marxista-leninista, mais ortodoxa e apologética, desenvolvida no PCB e em outros grupos de esquerda. Nesse ínterim, vários autores marxistas são introduzidos no debate intelectual brasileiro, como Lukács, Lucien Goldmann, entre outros.66 Sartre e outros pensadores mais ou menos marxistas, também.

O marxismo já era, no entender de Pécaut, a ideologia do universitário radical de classe média. Esse marxismo seria trabalhado no contexto de pesquisas empíricas sobre crescimento, pobreza e movimentos sociais. Fazendo o ajuste de contas com as formulações isebianas/pecebistas, de cunho mais ensaístico, Fernando Henrique Cardoso investia, em tom polêmico, contra “noções e deduções generalizantes” do marxismo dogmático.67

Novamente tomo a liberdade de citar outra passagem precisa de Sorj:

63 SORJ, Op.Cit., p. 15.

64Idem, p. 18.

65 FERNANDES, Op.Cit., p. 191. 66Idem, p. 191.

“Quando o CEBRAP foi criado, o Seminário de Marx serviu como mito fundador da instituição, conferindo um sentido de continuidade no tempo e um caráter de quase predeterminação a um evento que teve muito de circunstancial. (...) A síntese específica entre a formação acadêmica e o discurso marxista permitiu que este grupo convergisse com o contexto ideológico da época da ditadura militar, em que as ciências sociais se institucionalizam e os cientistas sociais se radicalizam ideologicamente.”68

A meu ver, a emergência política dos intelectuais uspianos/cebrapianos69 foi também uma conseqüência necessária do processo de maturação das pesquisas sociais que desenvolviam desde os anos 1950. O acúmulo de investigações acadêmicas voltadas para objetos específicos diversos, muitas delas quantitativas, permitiu uma significativa amplitude em seus diagnósticos sociológicos sobre a realidade brasileira. O que capacitava esses intelectuais universitários a se sentirem seguros para intervir politicamente nessa mesma realidade, com uma “legitimidade” científica mais rigorosa que os seus antecessores isebianos.70

Lahuerta também chama a atenção para esse viés político do CEBRAP, talvez de um modo menos conjuntural do que Sorj. Por outro lado, Lahuerta ressalta que a politização cebrapiana demonstrava não haver uma mera continuidade em relação à sua origem uspiana.71 Sorj chega à conclusão semelhante:

“Portanto, o CEBRAP não foi uma simples correia de transmissão da tradição uspiana representada por Florestan Fernandes. À medida que foram criando espaços próprios, os alunos de Florestan Fernandes passaram a se dedicar a temas influenciados pela agenda de debate político definida em grande medida pelo Partido Comunista.”72

68 SORJ, Op.Cit., p. 20/21.

69 Florestan Fernandes afirma, sobre tal emergência, que havia nas ciências sociais da USP “uma obsessão

política que nascia da cultura e gravitava dentro dela” – FERNANDES, Op.Cit., p. 217 (grifo do autor).

70 Desenvolvo mais extensamente esse argumento em minha Dissertação de Mestrado já mencionada, p. 96/100. 71 LAHUERTA, Op.Cit., p.3/4.

Mas, no meu entender, ocorria uma continuidade, e, principalmente, uma coerência com o processo de maturação – antes citado – das ciências sociais e humanas uspianas, que já vinham se politizando, sendo o CEBRAP uma das articulações institucionais que evidenciam os rumos tomados naquele processo.

E ao contrário do que Sorj afirma, os jovens intelectuais cebrapianos e uspianos estavam construindo uma agenda política bastante diversa da do PCB. Na verdade, desenvolviam estudos, chegavam a conclusões e se engajavam numa perspectiva contrária ao legado populista-pecebista, com quem nunca se identificaram significativamente: em vez de valorização do Estado, a aposta na sociedade civil.

Ademais, de um modo geral, os círculos revolucionários brasileiros desprezavam as ciências sociais acadêmicas, representadas justamente pela tradição uspiana.73

Em outra dimensão de análise, Lahuerta não nota que, de maneiras diferentes e talvez em menor proporção, os cebrapianos desenvolviam um padrão de engajamento político- intelectual como encontrado no ISEB. Embora, como bem afirma Sorj, o tipo de trabalho teórico-político desenvolvido no CEBRAP fosse distante do modelo isebiano mais comum, muito abrangente e normativo.74

O CEBRAP possuía um excesso de capitalização do prestígio intelectual em sua cúpula, que chegava às raias de um certo mandonismo de origem uspiana. Isto chegou a dificultar a continuidade da instituição, embora passar pelo CEBRAP fosse importante para a carreira de muitos jovens pesquisadores, que, depois, se integravam à vida universitária como professores. Havia também uma hierarquia difusa de poder intelectual, onde os uspianos mais antigos se sobressaíam. O filósofo José Arthur Giannotti era o “superego teórico”. Fernando Henrique Cardoso, o “intelectual que liderava intelectuais” (no dizer de Lahuerta), o mais destacado pela qualidade/diversidade de sua obra, pelo carisma e gama de relacionamentos políticos e institucionais, inclusive no exterior, ainda mais com o auto-exílio de Florestan Fernandes. Aos poucos a segunda geração cebrapiana foi se fortalecendo profissional e intelectualmente, passando a ter mais poder interno, tornando o CEBRAP “uma oligarquia aberta”, nas palavras de um de seus membros.75

Sorj relata, de modo acurado, que os anos 1971-75 constituíram um período heróico para o CEBRAP. Ao mesmo tempo que alguns membros são presos e interrogados pelo regime militar e que sua sede sofria um atentado, eram desenvolvidas muitas pesquisas, de

73 FERNANDES, Op.Cit., p.209. 74 SORJ, Op.Cit., p. 59.

certa maneira estabelecendo uma “centralidade existencial” para os cebrapianos. Desse momento datam os chamados “mesões”, reuniões que são lembradas nostalgicamente pelos participantes. Debates importantes se deram nos “mesões”, resultando em obras marcantes de Fernando Henrique Cardoso (“O Regime Político Brasileiro”), de José Serra e Maria da Conceição Tavares (“Além da Estagnação”, livro clássico para a economia brasileira), por exemplo. Já

“de 75 em diante a instituição passa a ser uma espécie de plataforma a partir da qual se consolidaram outros empregos, aumentando a participação intelectual e política de seus membros, que, ao mesmo tempo, tornam mais frágeis seus vínculos com a instituição”.76

Até 1976 os “mesões” catalisaram intelectualmente sociólogos, cientistas políticos, antropólogos, economistas da UFRJ, IUPERJ, UFMG, UNICAMP, FGV, entre outras instituições universitárias, e mesmo tecnocratas, numa “espécie de cerimônia de reconhecimento pela principal instituição intelectual da época, tudo isto envolvido num clima de resistência à ditadura”.77

Poderia ser definido o CEBRAP então, em relação ao seu papel efetivo nas transformações das ciências sociais e do pensamento social brasileiro da época, como um pólo de incremento de tendências anti-populistas e pró-sociedade civil no campo intelectual nacional de então.

No documento TeseDoutoradoMarcoAntonioPerruso (páginas 55-60)