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Contexto político-ideológico em transformação: esquerdas dissidentes

No documento TeseDoutoradoMarcoAntonioPerruso (páginas 50-55)

1.3 Renovação intelectual das ciências sociais no Brasil

1.3.3 Contexto político-ideológico em transformação: esquerdas dissidentes

Politicamente, as esquerdas brasileiras nos anos 1970 passavam por significativas transformações. O questionamento aos modelos (dogmas) do PCB, especialmente após a derrota representada pelo golpe de 64, se estendia para várias direções e se radicalizava. Este contexto é importante porque muitos dos intelectuais aqui investigados participavam do campo partidário-progressista composto, em boa parte, pelas esquerdas dissidentes, marxistas ou não, durante o período em que buscam renovar o pensamento sociológico brasileiro. Em grande medida esta renovação se confunde com aquele questionamento.

Baseio-me em trabalho historiográfico de Maria Paula Nascimento Araújo49 para percorrer o trajeto das esquerdas dissidentes no Brasil.

Parte das esquerdas dissidentes, justamente por serem críticas das formulações pecebistas, lia as análises uspianas sobre a realidade brasileira que estavam se fazendo no mesmo momento, várias delas, por sua vez, fazendo ajustes de contas com o padrão isebiano de pensamento político-social. Além de se constituir em público leitor para os cientistas sociais universitários, as esquerdas dissidentes com eles vão se relacionar, via movimento estudantil ou mesmo em atividades intelectuais de ensino e pesquisa.50 Vinicius Caldeira

48 MICELI, A Aposta numa Comunidade Científica Emergente: a Fundação Ford e os cientistas sociais no Brasil 1962-1992, p. 64.

49 ARAUJO, Maria Paula Nascimento – A Utopia Fragmentada – As Novas Esquerdas no Brasil e no Mundo na Década de 1970, Rio de Janeiro, FGV, 2000.

Brant, por exemplo, vinha da guerrilha urbana antes de sua passagem significativa pelo CEBRAP.

As dissidências na esquerda comunista mundial e brasileira emergem especialmente nos anos 1960, quando começa a ser construída uma crítica severa ao paradigma bolchevique- soviético de luta socialista, seguido pela maioria dos partidos de esquerda no planeta. Um dos vieses principais dessa crítica é a oposição entre o imobilismo daquele paradigma e o radicalismo que é proposto para substituí-lo. Por trás do imobilismo estaria uma postura reformista e uma acomodação com a vida alienada inerente ao mundo moderno: consumista, passiva, etc. O radicalismo, muitas vezes revolucionário, é centrado na defesa da democracia direta e participativa e de uma prática militante mais ativa contra o status quo alienante e acomodado, seja o das democracias liberais do capitalismo ocidental, seja o do autoritarismo burocrático do chamado “socialismo real”. A faceta radical incluía a desconstrução da idéia tradicional e rígida de vanguarda política, seja ela operária ou intelectual. Tal crítica tem como marco evidenciador principal o Maio de 68, movimento que irrompeu violenta e espontaneamente sob liderança dos estudantes, ficando a cargo de partidos e movimentos da esquerda ortodoxa correr atrás dos acontecimentos.51

Outras duas características importantes do campo de esquerda dissidente que vai se formando são a “ida ao povo” e a valorização da subjetividade. A “ida ao povo” significava, para muitos jovens intelectuais universitários de esquerda, a procura por algum tipo de ligação com os trabalhadores ou com movimentos populares. Exemplos clássicos dessa postura são Régis Débray e sua participação em guerrilhas rurais latino-americanas e Robert Linhart com seu movimento de se empregar como operário numa fábrica. Experiências depois repetidas pelo mundo afora. Essa “ida ao povo” pode ser relacionada a dois fatores. Já que se questionava a idéia de vanguarda, tornava-se possível observar e perceber positivamente as massas, a base dos movimentos populares. Alem disso, tornava-se viável uma visualização favorável da cultura e das diversas manifestações populares. E uma apreciação nova da cultura e dos fatores simbólicos da sociedade se relacionava com a valorização da subjetividade. Esta se desdobrava: incluía uma visão positiva do cotidiano, do indivíduo, e uma prática afirmativa de vivenciar intensamente as relações pessoais e afetivas, aí incluídas a liberação sexual, a fruição de uma vida boêmia e outros elementos da Contracultura.52

Esses novos posicionamentos da esquerda, que tinham também uma marca geracional, bebiam de diversas fontes e interagiam com diversas vertentes de pensamento contestador:

51 ARAUJO, Op.Cit., p. 36, 41/42 e 53/54.

Trotsky; o grupo Oposição Operária, na União Soviética; o Gramsci dos Conselhos Operários (e não o Gramsci do “bloco histórico” e do “arco de alianças”); o marxismo conselhista de Pannekoek; Rosa Luxemburgo e a defesa do “espontaneísmo”; Marcuse; Merleau-Ponty; o grupo Socialismo ou Barbárie de Castoriadis e Lefort; Guy Debord e os situacionistas; o pós- marxismo e o pós-estruturalismo de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari; o marxismo britânico empirista e culturalista de E. P. Thompson e Raymond Williams; a tradição de ação direta dos anarquistas; a aproximação entre marxistas e cristãos; a psicanálise e outras correntes da psicologia (bem como filosofias e terapias alternativas, várias de origem oriental); o movimento hippie e novas experiências de vida comunitária; correntes artísticas alternativas ou de vanguarda como a literatura beatnik e o dadaísmo; a tradição do romantismo alemão.53

As dissensões no interior da esquerda passaram por uma crítica permanente ao marxismo e ao socialismo soviéticos, bem como ao stalinismo. Por um questionamento do marxismo-leninismo (ou de uma certa leitura dele) como cristalização ortodoxa – oficial e dominante – do marxismo. E por uma tentativa temporária – talvez a última – de eleger a experiência chinesa e o maoísmo como partes de um novo modelo dogmático universal de luta e sociedade socialistas. Tentativa essa efetuada por diversos intelectuais de peso, como Althusser, Charles Bettelheim, Maria-Antonietta Macciocchi e Julia Kristeva, alguns dos quais vão abandonar o maoísmo e avançar em revisões teóricas do marxismo, radicais em vários sentidos. Um desses sentidos consubstancia-se numa crítica mais abrangente ao “produtivismo” das sociedades modernas, sejam elas capitalistas ou estatais-burocráticas, o que implica na busca da superação da alienação como mote principal para uma nova sociedade, em detrimento da concepção economicista de desenvolvimento. Por outro lado, o abandono de modelos ou esquemas únicos de socialismo abre caminho para a afirmação da singularidade, da especificidade, da diferença – relacionadas à supracitada valorização da subjetividade. Isto por sua vez resulta em um ataque às generalizações tão comuns ao marxismo de então, chegando ao questionamento das noções de universalidade e totalidade, mas não ao bloqueio comunicativo entre as diferenças.54 Da singularidade para a fragmentação é um passo pequeno, nem sempre necessário.

No desdobramento dessa problemática para o pensamento político e sociológico, foram muito importantes o marxismo britânico de Thompson e Williams, a fenomenologia de

53 ARAUJO, Op.Cit., p. 46, 61/63, 65/69, 80, 101 e 107. 54Idem, p. 55/56, 67/68, 70, 101 e 111.

Merleau-Ponty, as formulações de Castoriadis e Lefort, as reflexões de Foucault, Guattari e Deleuze.

Os movimentos sindical, estudantil, feminista e negro são rejuvenescidos nesse processo. E irrompem definitivamente novos movimentos como o ecológico, o dos homossexuais, o pacifista, etc.

A esquerda brasileira vivenciou quase todas essas questões, com o agravante de estar enfrentando a ditadura militar. O PCB era o principal alvo de críticas, junto com o PC do B, assim como a principal fonte de multiplicação das esquerdas dissidentes. Mas antes do golpe de 64 já tinha surgido um importante agrupamento, em consonância com as críticas à luta socialista entendida de modo ortodoxo, a ORM-Polop (Organização Revolucionária Marxista – Política Operária), criada por intelectuais em 1961, independentemente do PCB. Dela fez parte, entre outros, Eder Sader, cientista social que veremos mais adiante. Em 1970 ela, em meio a vários “rachas” que se dão em torno da questão da luta armada, renasce como OCML- PO (Organização de Combate Marxista-Leninista – Política Operária).

A ORM-Polop e outras organizações, como a cristã AP (Ação Popular) criticavam os pecebistas por estes terem se acomodado no interior da política populista levada a cabo pelo PTB, tendo sido então um dos responsáveis pelo desenlace político representado pelo golpe militar. Em resposta a esse imobilismo e etapismo pecebista, algumas esquerdas dissidentes respondiam que a tarefa principal não era se aliar a uma imaginada “burguesia nacional”, mas sim preparar – a curto ou longo prazo (e aí residiam grandes diferenças internas entre os dissidentes) – a revolução socialista. Tarefa esta que configurava a versão brasileira do radicalismo das esquerdas dissidentes. A AP, em processo de “marxistização”, defendia a possibilidade de experiências específicas de luta socialista, já antevendo de modo positivo uma pluralidade e diversidade no campo da esquerda e das lutas populares. E apontava a necessidade da superação da alienação na sociedade socialista, sob pena de desenvolver-se o processo de burocratização como se deu na União Soviética. A AP chegou a fazer várias experiências de “ida ao povo”, de “proletarização” de estudantes, em fábricas e no campo. Todo esse processo levou a AP a transformar-se na Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Uma parte sua estava se tornando maoísta e seria incorporada ao PC do B.55

Da AP fizeram parte alguns intelectuais protagonistas da trajetória do pensamento sociológico brasileiro que será exposta mais adiante, como José Álvaro Moisés, por exemplo.

55 ARAUJO, Op.Cit., p. 78/83.

A derrota da luta armada de esquerda (não só no Brasil), vivenciada por boa parte do campo da esquerda dissidente, exceção feita à linhagem original da POLOP, fez com que suas ações militantes radicais refluíssem para o trabalho de base junto aos setores populares. Maria Paula Nascimento Araújo afirma que a autocrítica pouco explícita do uso da violência nos grupos armados levou as esquerdas dissidentes a priorizar uma militância pública e legal.56 Entendo de modo diferente. Tais esquerdas na verdade teriam feito uma autocrítica da luta armada enquanto reiteração e ampliação da crítica ao vanguardismo que já vinham, em parte, ensaiando desde 64. Crítica esta que percebia o erro militarista enquanto sintoma maior da ausência de vinculação aos setores populares. Daí passarem a priorizar a retomada de um trabalho de base nos movimentos sociais. Trabalho este que, durante a ditadura, não era constantemente público ou legal. Militar no movimento sindical ou em associações de moradores ainda comportava diversas precauções típicas da clandestinidade. Boa parte das esquerdas dissidentes busca manter-se numa perspectiva revolucionária, embora nova.

A APML, por exemplo, em documento interno de 1980, em pleno início da abertura democrática, definia “a luta política na frente parlamentar e institucional como complementar e secundária em relação à luta política não-institucional”.57

O caráter anti-status quo presente nas preocupações do Maio de 68 está vivo aqui, bem como uma preocupação maior com os setores “de baixo” da sociedade do que com a institucionalidade democrático-representativa – o que é similar aos conteúdos de muitos trabalhos dos novos estudiosos dos movimentos populares no Brasil, como será visto mais adiante.

Várias noções e idéias-força trabalhadas em diversos âmbitos e direções pelas esquerdas dissidentes estarão simultaneamente sendo pensadas e utilizadas pelo campo intelectual brasileiro dedicado a investigar nossos setores subalternizados, a partir dos anos 1970.

56 ARAUJO, Op.Cit., p. 98. 57Idem, p. 126.

No documento TeseDoutoradoMarcoAntonioPerruso (páginas 50-55)