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No primeiro semestre de 2010, a contratação de homens e mu- lheres para a indústria calçadista ganhou um novo capítulo: diversos veículos da imprensa divulgaram informações sobre a escassez de mão de obra especializada. Na prática, isso signifi cava que estavam sobrando vagas, fato que levou algumas empresas a fazer ampla campanha de contratação na mídia. A situação sentida por muitas empresas foi confi rmada por duas gestoras entrevistadas. Uma das informações veiculadas salientava que os salários em 2010 estavam mais atrativos do que os pagos habitualmente. Na experiência da autora do presente estudo, como assistente social da São Paulo Al- pargatas, essa realidade foi sentida na década de 1990, quando se tornou difícil contratar sapateiros especializados para alguns seto- res. O diferencial, porém, era que a política da empresa não previa salários mais elevados. Ainda no primeiro semestre de 2010, Franca fi gurou entre as cidades brasileiras que mais criaram vagas, 13 mil, fi cando em 11o lugar no ranking brasileiro, atrás apenas de dez capi-

tais. De acordo com dados do Sindifranca (2010), nos primeiros seis meses de 2010, 24.064 pessoas estavam trabalhando na indústria de calçados; no mês de junho, o setor registrou 27.223 funcionários, um crescimento de 20,13% em relação ao mesmo período de 2009 (22.661).

Essa tendência permaneceu no segundo semestre de 2010 e, com as contratações em alta, o município fi gurou entre as 50 cida- des brasileiras que mais geraram empregos, fechando o ano em 47o

lugar. De acordo com os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged)/Ministério do Trabalho, a geração de empregos com carteira assinada alcançou a marca de 8.140 vagas. A indústria de transformação, onde se encontra o setor de calçados, foi responsável pelo saldo positivo de 4.370 vagas. É o segundo me- lhor resultado da primeira década do século XXI para o município, fi cando atrás de 2004, quando 8.335 vagas foram abertas. Ao fi nal de 2010, a cidade manteve cerca de 30 mil pessoas trabalhando direta- mente nas indústrias de calçados.

Toda essa euforia traduzida pela mídia precisa ser analisada com cuidado, pois as indústrias de calçados da cidade já foram responsá- veis pela geração de quase 40 mil vagas diretamente. Em vinte anos, os trabalhadores perderam seus postos de trabalho tendo em vista o fechamento de inúmeras empresas, a reestruturação produtiva e seus refl exos, como a fl exibilização das relações de trabalho e a ter- ceirização. Os números atuais são positivos, mas, na prática, signifi - cam a reabertura de vagas e não a criação de novas.

A maior parte da produção de calçados das indústrias franca- nas é voltada para o mercado interno, mas as vendas para o externo têm papel importante na economia da cidade. Em 2010, as expor- tações cresceram 16% em relação a 2009 e cerca de 3,5 milhões de pares foram enviados ao mercado internacional. Os Estados Unidos continuam sendo o principal comprador (42% do total), assim como Reino Unido, França, Espanha e Arábia Saudita também fi guram como clientes, todos, porém, com menos de 5% de participação total.

Por sua importância estratégica, na atualidade Franca integra o programa de fomento aos Arranjos Produtivos Locais (APLs)8 de-

8 Os APLs são concentrações de empresas que atuam em atividades similares ou rela- cionadas, que, sob estrutura de governança comum, cooperam entre si e com outras entidades públicas e privadas. As empresas localizadas em APLs produzem diversos tipos de produtos em municípios que já desenvolvem forte atividade comercial. Uma das vantagens do APL é facilitar o acesso de micro, pequenas e médias empresas a programas de gestão empresarial, mercado, processo, produtos e linhas de fi nancia- mento, visando ao seu fortalecimento no mercado interno e acesso ao externo. Outra vantagem é incentivar a troca de informações entre as próprias empresas, com as en- tidades de classe, governos e instituições de ensino e pesquisa.

senvolvido pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento. O APL do calçado é considerado prioritário para o programa de fortaleci- mento da competitividade das empresas do Estado de São Paulo. A autora da presente pesquisa presenciou a formação do primeiro grupo em Franca, em 2003, cuja atuação não gerou resultados. Pos- teriormente, fi zeram-se novas tentativas, também sem sucesso. Em 2009, um novo grupo foi formado e o diferencial é que os participan- tes são empresários e empresárias, proprietários de micro e peque- nas empresas, interessados no fortalecimento da indústria e em sua consequente sustentabilidade, conforme avaliação de uma das inte- grantes, gestora entrevistada para esta pesquisa. Os resultados dos investimentos atuais deverão ser sentidos entre 2011 e 2013, após a aprovação de um projeto enviado ao Banco Mundial que prevê a liberação de recursos para diversos APLs:

[...] é preciso envidar esforços para racionalizar estas indústrias de ma- neira a garantir a sua parcela do mercado interno. Esta racionalização passa pelo fortalecimento dos poucos APLs hoje existentes e políticas de apoio à emergência e consolidação de novos APLs, em outras pala- vras, na rearticulação das relações entre grandes empresas e empreendi- mentos de pequeno porte, e na promoção das mais variadas formas de empreendedorismo coletivo a montante (serviços técnicos, treinamento da mão de obra, design, compras coletivas) e a jusante (comercializa- ção). Deve-se contemplar ainda a criação de bancos de APLs. (Sachs, 2008, p.143)

É, portanto, nesse cenário – descrito nas páginas anteriores – que se localiza o presente trabalho. O município de Franca, cidade do interior de São Paulo, e o desenvolvimento da indústria calçadista acompanharam os efeitos da globalização e todas as mudanças de- correntes. Entender o que ocorreu com o desenvolvimento e o cres- cimento desse universo se tornou importante, inclusive para que no- vas políticas públicas e empresariais possam ser aplicadas. Um bom exemplo é a própria formação dos APLs.

Franca e seus habitantes – mulheres e homens, capitalistas e operários – sobreviveram a todas as políticas governamentais do

século XX: o desenvolvimentismo econômico no governo de Jusce- lino; a pressão por resultados durante o “milagre econômico”, nos idos da ditadura militar; a “década perdida” dos anos 1980, com im- pactos negativos para os operários; a reestruturação administrativa e produtiva dos anos 1990 que ceifou empregos nunca recuperados.

Os impactos dessas mudanças estruturais atingiram empresas públicas e privadas, mas o preço mais alto foi pago pelas classes me- nos favorecidas, em que se encontram os trabalhadores da indústria calçadista francana:

Ao lado do plano de estabilização, o governo tentou realizar um proces- so de modifi cação estrutural do país partindo de dois pontos: a reforma do Estado e a abertura comercial e fi nanceira. A reforma do Estado foi realizada através da privatização das empresas estatais e da reestrutura- ção na gestão e concessão dos serviços públicos. A privatização foi de- mandada por alguns setores empresariais, justifi cada pela inefi ciência do setor público na provisão dos bens e pela incapacidade do Estado de investimentos necessários, principalmente nos segmentos de infra- -estrutura. (Lima, 2007, p.43)

Ainda de acordo com Lima (2007), a ideia da privatização teve início no governo de José Sarney, ganhando força com o presiden- te Fernando Collor de Mello e, em seguida, no governo de Itamar Franco, quando o processo de globalização ganhou visibilidade. A autora complementa salientando que o Plano Real, lançado durante o governo de Itamar Franco, apresentou impactos positivos e nega- tivos sobre a estrutura social e econômica do país.

Mesmo atingindo de forma diferente as classes trabalhadoras e a burguesia,

[...] foi considerado o mais bem-sucedido de todos os planos elaborados no combate à infl ação, tendo em vista a combinação de condições e fato- res históricos, políticos e econômicos que viabilizaram a concretização das medidas adotadas. [...] Este plano conseguiu colocar a infl ação sob controle, no entanto, enfatizou a moeda valorizada e a política de juros altos para assegurar a presença do capital estrangeiro volátil em busca

dos ativos baratos. Esta política de altas taxas de juros favoreceu a queda do investimento produtivo, com grande deslocamento de capitais para a especulação fi nanceira. (Lima, 2007, p.45)

Muitas empresas fecharam as portas diante das mudanças estru- turais e, em Franca, não foi diferente. Essas mudanças, porém, nun- ca mais deixaram de existir, mas será que gestoras e gestores estão preparados para as mudanças que ainda virão? O destino de Franca é o modelo italiano, o espanhol ou o chinês?

Na Itália, grandes empresas que empregavam milhares de tra- balhadores foram fechadas e suas produções, transferidas para os países do Leste Europeu ou para a China. Sobreviveram pequenos ateliês onde não se compram calçados, mas marcas como Prada, Gucci, entre outras. Esse foi o caminho encontrado para a manuten- ção do setor calçadista no país e também do quesito qualidade, ainda que os maiores sacrifi cados tenham sido os trabalhadores italianos.

Na Espanha, o caminho foi diferente e os investimentos recaí- ram sobre a reorganização das fábricas, da gestão, da fabricação em quantidades no chamado fast fashion, ainda que em plantas indus- triais menores que necessitam de mão de obra reduzida.

A China investiu na fabricação e exportação de calçados e seus números impressionam, pois o país mantém fábricas para os abas- tecimentos interno e externo – são produzidos anualmente cerca de 8 bilhões de pares. Empresas internacionais como Adidas e Nike, e nacionais, como Azaleia, encontram naquele país mão de obra em grande quantidade e, ávida por trabalho, ainda que sem qualquer proteção trabalhista. Posteriormente, os calçados fabricados nesse país asiático são distribuídos pelo restante do mundo com preços muito mais baixos, o que afeta diretamente os países sem a mesma competitividade.