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Cenário da peça Le demi-monde

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 80-103)

Germain Bapst, en Essai sur l’histoire du théâtre (1893), traz importantes contribuições para o trabalho aqui proposto, pois apresenta um amplo estudo sobre a encenação (mise en scène), o cenário, o figurino e a arquitetura no teatro, desde a Idade Média até o final do século XIX. Concentrar-nos-emos no histórico do cenário, bem como, e principalmente, no panorama do cenário no teatro francês a partir do drama romântico.

Segundo o autor, o teatro do século XVI, ainda herdeiro do teatro clássico, não tinha movimento cênico, consistindo apenas em uma exposição pedagógica de teses filosóficas, religiosas e políticas. Assim, não havia necessidade de cenário, sendo suficientes pinturas e tapeçarias que servissem como pano de fundo para o autor e sua declamação. No século XVII, sob a influência de Shakespeare, aparecem as tragicomédias cujo objetivo não é mais pedagógico, e neste momento a presença de letreiros ou de telas bastava para indicar os locais onde as histórias se desenvolviam. Trata-se do cenário dito simultâneo.

Durante a Revolução Francesa, o teatro volta a assumir uma função pedagógica, desta vez para ensinar ao público as virtudes cívicas. O cenário, até o Império e a Restauração, ainda é praticamente nulo. Neste período, é o figurino, mais do que o cenário, que será trabalhado e celebrado. Porém, até mesmo o figurino, alvo de minuciosa pesquisa histórica, apresentava-se com êxito apenas parcial, uma vez que as personagens secundárias permaneciam negligenciados, apresentando anacronismos.

Mas a verdadeira revolução na decoração foi feita, segundo Bapst, pelos românticos. Para ele, o grande mérito de Victor Hugo, Alexandre Dumas e Alfred de Vigny foi o de conceber dramas vivos, impregnados de realidade, para os quais são indispensáveis o bom figurino e o cenário, e nos quais cada papel exige móveis e acessórios particulares. É a vida real e suas convenções aparecendo no teatro (Cf. BAPST, 1893, p. 543).

fisionomia própria, e preparar o cenário de acordo com o espaço e o tempo onde se passa a ação.

Abaixo reproduzimos um trecho do capítulo sobre a mise en scène no teatro pós 1848, em que Bapst reproduz um diálogo entre Victorien Sardou77 (1831-1908) e Adolphe Thiers (1797-1877), então presidente da república, que exemplifica a mudança de postura dos atores em cena e da mise en scène como um todo:

Hoje, a cena representa um verdadeiro salão, mobiliado, como são os salões elegantes de nosso tempo. Não é a mim que deve ser dado o mérito desta transformação, mas a Montigny, o hábil diretor do Gymnase há vinte anos. (...) Montigny operou uma verdadeira reforma ao colocar uma mesa no meio da cena; em seguida, colocou algumas cadeiras ao redor da mesa; e os atores passaram a sentar e a conversar naturalmente, olhando uns para os outros, como fazemos na realidade. [...] Se tenho algum mérito, é o de ter aplicado as teorias de Montigny ao teatro histórico: procurei introduzir a verdade no drama. (BAPST, 1893, p. 583)

78

E Bapst acrescenta ainda que

Montigny era o homem engenhoso que acaba de nos lembrar o senhor Sardou, e o senhor Alexandre Dumas Filho declarava-nos que se baseava inteiramente na habilidade e no gosto do diretor do Gymnase para a mise en scène de suas peças.

(BAPST, 1893, p. 585)79

Estas citações apresentam uma problemática semelhante àquela que levantamos aqui. O teatro realista de Alexandre Dumas Filho supõe - conforme ilustram as observações de Sardou e Bapst- um cenário que mostre uma casa “real”, dentro dos padrões da burguesia e da

77 Autor dramático eleito para a Academia Francesa em 1877.

78 «Aujourd'hui, la scène représente un véritable salon meublé comme l'est cette chambre, comme le sont les

salons élégants de notre temps. Ce n'est pas moi d'ailleurs qui ai le mérite de cette transformation, mais bien Montigny, l'habile directeur du Gymnase depuis vingt ans. [...] Montigny opéra une première réforme en faisant mettre une table au milieu de la scène; ensuite, il fallut mettre des chaises autour de la table; et les acteurs, au lieu de se causer debout sans se regarder, s'assirent et parlèrent naturellement en se regardant comme on le fait dans la réalité. [...] Mon mérite, si j'en ai eu un, est d'avoir appliqué les théories de Montigny au théâtre historique: j’ai cherché a introduire la vérité dans le drame.»

79 «Montigny était bien l'homme ingénieux que vient de nous rappeler M. Sardou, et M. Alexandre Dumas fils

nous déclarait qu'il se reposait entièrement sur l'habileté et le goût du directeur du Gymnase pour la mise en scène de ses pièces.»

pequena nobreza parisiense. O nível de detalhamento dos móveis descritos e das indicações das disposições nos cômodos dá a exata dimensão do quão realista se pretende este teatro burguês do Segundo Império.

Embora seja mencionado o espaço interno do novo apartamento de Valentine, por ela descrito em cores e tecidos utilizados nos cômodos, as referências ao espaço onde se desenrola a história indicam tão-somente que o primeiro ato se passa em “um salão na casa de Olivier de Jalin”, o segundo ato em “um salão na casa da senhora de Vernières”, o terceiro em “um salão na casa de Suzanne” e o quarto ato “na casa de Olivier”. São estes espaços que tentaremos reconstituir.

Para reproduzir hipoteticamente o cenário da peça contamos com auxílio de manuais e tratados de arquitetura do século XIX, compêndios sobre móveis e decorações, e ainda com preciosos dados sociológicos fornecidos por Adeline Daumard.

O interesse pela distribuição interior das moradias aumenta a partir da segunda metade do século XIX. Os diversos tratados e cursos sobre habitação produzidos no período (como os dos arquitetos Viollet-le-Duc, César Daly, entre outros) descrevem a distribuição interior de acordo com as novas necessidades de conforto e bem estar, e o tipo de uso é apresentado como um dos elementos principais nesta distribuição do espaço.

A separação da parte privada da habitação (lugar de intimidade, da vida de família) da parte pública (reservada à recepção) e das áreas de serviço, tal como no século precedente, é uma realidade. A banalização dos imóveis destinados à locação, os quais devem servir a grupos sociais bem diferentes, supõe uma mistura de populações que não preserva o espírito de família, e confirma, portanto, o princípio da separação público-privado-serviço. Mais do que arquitetos, ao defenderem a vida de família os especialistas deste período apresentam-se como moralistas (Cf. BLANCHARD, VIDAL, 1989, p.89).

César Daly, em L’architecture privée au XIXe siècle sous Napoleon III (1864), caracteriza os imóveis para locação como espaços que não comportam as fantasias da

imaginação e a originalidade marcadamente específica para o morador, visto que se destina à multidão e precisa, portanto, atender ao gosto e às necessidades comuns à grande massa da população. Deve adaptar-se a todos os gostos sem apegar-se a um em particular. Por isso, a arte é relegada a um plano secundário.

O segundo tomo de L’architecture privée au XIXe siècle sous Napoleon III é dedicado aos imóveis de aluguel, e apresenta imóveis construídos em Paris, sob Napoleão III, nos « novos bairros », nouveaux quartiers, da capital. Daly distingue três classes de imóveis de aluguel, cujos critérios de classificação incluem a presença/ausência de escada de serviço, número de andares, qualidade da construção e do material utilizado e algumas características da distribuição interior. Os de primeira classe, destinados aos burgueses com fortunas estabelecidas, possuem uma vista para o pátio e outra para a rua. Têm até quatro pavimentos, sendo os três primeiros dotados de uma escada em pedra, ligada em sua parte superior à escada que leva ao quarto piso. Esta última escada, construída em madeira, reflete a degradação do status social dos andares superiores, os quais abrigam famílias menos favorecidas.

O imóvel de segunda classe comporta até cinco pavimentos, sendo os dois primeiros utilizados por lojas, a escada principal é toda em madeira, mas ainda se verifica a presença de uma escada de serviço. O imóvel de terceira classe, enfim, também possui cinco andares, porém apenas uma escada, de madeira, e o pátio está ausente.

O interior dos apartamentos distribui-se de forma a oferecer um espaço público para a vida social, um espaço privado para a intimidade familiar, e um espaço para o serviço doméstico, de circulação discreta. A ante-sala funciona como um filtro, distribuindo os passantes para os locais aos quais pertencem. É uma espécie de terreno neutro entre patrões e empregados.

A sala de jantar tem uma dupla função: além de ser o local de encontro cotidiano dos membros da família, funciona ainda como um espaço de sociabilidade, não só durante as

refeições como também nos momentos de recepção dos convidados e exibição de pertences.

O grande salão, ou sala de visitas, é um espaço social cobiçado pelos burgueses. É uma marca de classe de grande importância simbólica: possuí-lo era sinal de sociabilidade. Nas casas de pequenos burgueses, o salão é um lugar relativamente morto, visto que as relações restringem-se quase exclusivamente à família (Cf. GUERRAND, 2006, p. 334).

O quarto conjugal, por sua vez, é um “templo da procriação e não da volúpia” (GUERRAND, 2006, p. 334), espaço cercado por um tabu que afasta as visitas em nome das boas maneiras.

Ao longo do século XIX, o apartamento burguês vai se tornando um espaço de acumulação de antiguidades, em que se mesclam estilos, épocas e civilizações distintas, com a presença marcante de tecidos, tapeçarias e tapetes recobrindo as superfícies. Tais informações fornecidas por Daumard e Daly serão úteis na análise de passagens da peça de Dumas Filho, conforme veremos a seguir.

O livro ilustrado Le XIXe siècle français (FANIEL, 1957) e suas indicações de mobiliário, tapeçaria e peças decorativas em geral trazem imagens valiosas para a tarefa de reconstrução do cenário da peça Le demi-monde, a partir das referências dadas pelas personagens a cômodos e móveis.

Segundo Faniel, a evolução das artes ao longo do século XIX é decorrente da ação conjunta de dois fatores, que lhe imprimem suas características: o desenvolvimento da fortuna burguesa e a independência do gosto, esta última uma consequência da Revolução Francesa. E, a partir da Revolução Francesa, são identificados quatro estilos, quatro fases de uma complexa evolução que mescla antigas tradições artesanais à influência da industrialização, além do classicismo ao romantismo. São eles: estilo Império, que tem suas raízes na época revolucionária e se estende até cerca de 1820; estilo Carlos X, de 1818 a 1834; e os estilos

Luís Filipe e Napoleão III, que pouco diferem e nos quais nos concentraremos.

Em relação ao mobiliário, partir de 1830-1835 a madeira clara, bastante utilizada durante o período Carlos X, é substituída pelo acaju ou mogno, apresentando ainda pinturas de flores que cobrem a superfície das peças, tal como a cama reproduzida abaixo:

Figura 1

Lit en bois noir incrusté de bouquets (1840). Coll. Comoglio. In: FANIEL, 1957, p. 63.

Ainda mais cosmopolita, o estilo Napoleão III apresenta uma grande presença das artes do Extremo-Oriente, exemplificada por esta cadeira em madeira escura com motivos chineses:

Figura 2

Chaise en bois laqué noir et or (1850-1860). Anc. Coll. Fabius frères. In: FANIEL, 1957, p. 69.

O estilo Napoleão III caracteriza-se, enfim, por um grande ecletismo, traduzido em uma mistura de móveis de diversas épocas. A idéia de conjunto e a unidade de estilo desaparecem, conforme se nota nos quartos mostrados a seguir:

Figura 3

Chambre à coucher en acajou de Mrs. Biddle. In : FANIEL, 1957, p. 37. A cama em acaju, com cabeças

de águias nas extremidades e pés com formato de garras inspirados na antiguidade contrastam com as mesinhas em faiança policromada do Segundo Império.

Figura 4

Chambre à coucher Napoléon III, chez la comtesse de P..., à Paris. In : FANIEL, 1957, p. 209.

Figura 5

Chambre d’amis Napoléon III chez M. H. Samuel à Montfort-l’Amaury. In : FANIEL, 1957, p. 208.

Como exemplos de quartos do Segundo Império, pensamos que estes cômodos poderiam representar modelos para parte do cenário do primeiro ato, cena III. Embora todo o

primeiro ato se passe em “um salão da casa de Olivier de Jalin”, ao final da cena III - na qual estão presentes o próprio Olivier e seu amigo Hippolyte Richond-, a doméstica anuncia a chegada de Suzanne, e neste momento, “mostrando-lhe o quarto ao lado”, Olivier ordena: “Faça-a entrar; recebê-la-ei imediatamente”. 80

As imagens apresentadas mostram as características decorativas principais de uma casa durante o Segundo Império, com graus de suntuosidade e luxo variáveis de acordo com as camadas da sociedade: a acumulação de objetos e a presença da tapeçaria são características marcantes do período. Mas são os estofados que darão a unidade aos conjuntos. É a época por excelência dos espaços feitos para a conversação: sofás, poltronas, e novos modelos de acolchoados, tais como os “confidentes”, com dois lugares e em forma de S, e o “indiscreto”, com três lugares e em hélice.

Figura 6

Indiscret, siège capitonné (1860-1870). Coll. part. In : FANIEL, 1957, p. 66.

Visto que a peça se passa praticamente em sua totalidade em salas/salões das casas das personagens Olivier, Senhora de Vernières e Suzanne, cabe mostrar algumas imagens relativas a este cômodo. A seguir, reproduzimos um salão estilo Napoleão III que ilustra como

poderia ser o cenário principal da peça, especialmente o segundo e o terceiro atos, que se passam, respectivamente, em “um salão na casa da senhora de Vernières” e “um salão na casa de Suzanne”.

Figura 7

Salon Napoléon III chez la comtesse de P..., à Paris. In : FANIEL, 1957, p. 216.

Descrever a casa de um homem solteiro, por outro lado, não é uma tarefa tão fácil quanto apresentar uma casa de uma mulher solteira, viúva ou de um casal. No século XIX, são poucos os solteiros definitivos. O modelo ideal da família exclui o celibatário, considerado pela sociedade um “fruto seco”: acima de 50 anos, o índice de celibato não vai além de 10% para os homens e 12% para as mulheres (Cf. PERROT, 2006, p. 134). Para o primeiro e o quinto atos, que se passam na casa de Olivier de Jalin, poderíamos supor uma decoração mais sóbria, tal como no último quarto apresentado. A mulher, excluída da vida pública, ocupa um espaço de destaque na vida privada, e é dela a responsabilidade das cerimônias e rituais domésticos. E, ainda que não tenham autonomia total sobre seus lares, na pintura de interiores e nas cenas domésticas as mulheres sempre aparecem como figuras

centrais:

Porém, segundo Perrot, “a escolha da decoração é muito mais masculina do que se imagina. Por ocasião do casamento, a casa é mobiliada pelo futuro genro e sua sogra, segundo os manuais do conforto doméstico” (PERROT, 2006, p. 126).

Ainda assim, a vida privada para os homens do século XIX confunde-se com a vida pública; quando representados em seus lares, os homens geralmente aparecem em suas bibliotecas, símbolo de status social e espaço essencialmente masculino. Para os solteiros, as cenas mais comuns na historiografia iconográfica são os cabarés, clubes, cafés e todo tipo de passatempo boêmio, tais como nas ilustrações abaixo reproduzidas:

Figura 8

Café La Manille, 1899. Paris: Biblioteca Nacional. In: PERROT, 2006, p. 127.

Figura 9

Amédée Julien Marcel-Clément, Le Billard, 1900. In: PERROT, 2006, p. 127.

Tencionamos, ao longo desta seção, reconstituir o cenário da peça Le demi-monde, a partir de referências ao espaço no qual a trama se desenvolve. Devido ao reduzido número de

didascálias e da ausência de menções ao cenário nas críticas que apareceram na imprensa no ano da estreia da peça no Théâtre du Gymnase (1855) e no da reapresentação na Comédie Française (1874), formulamos a hipótese de que o cenário expunha cômodos e móveis de uma casa burguesa típica, facilmente reconhecível pelo público burguês presente. Consideramos confirmação desta hipótese o testemunho, reproduzido acima, de Victorien Sardou citado por Bapst, ambos contemporâneos de Alexandre Dumas Filho. Embora a citação de Bapst dê apenas indicações gerais sobre cenários, sem mencionar especificamente a peça Le demi-monde, trata-se de palavras de um autor de sucesso, Victorien Sardou, cujo estilo de teatro e público alvo têm as mesmas características do teatro de nosso autor de referência.

6CONCLUSÃO

O presente trabalho propôs a caracterização da cena de enunciação da peça Le demi- monde (1855), de Alexandre Dumas Filho, mais especificamente de sua cenografia enunciativa, relacionando-as com o posicionamento enunciativo do autor e sua posição no campo literário. A hipótese inicial apontava as personagens da peça como elementos principais da cenografia enunciativa. Dotadas da prerrogativa de porta-vozes do autor, elas seriam as principais responsáveis pela demonstração da posição do autor no campo literário como típico representante da arte burguesa. Além disso, apontamos para a importância do prefácio redigido por Dumas Filho para sua peça, que seria mais um componente da cenografia enunciativa de Le demi-monde na busca de legitimação de seu texto. Retomamos nesta conclusão os resultados parciais obtidos ao longo do desenvolvimento da pesquisa, à luz das hipóteses iniciais.

No capítulo 3, Le demi-monde: enunciação e contexto, foi analisado o prefácio da peça, em busca das condições sócio-políticas que levaram o autor a optar pelo Théâtre du Gymnase para a estreia de sua peça, em 1855. De fato, conforme afirmamos na introdução, o prefácio é um componente importante da cenografia enunciativa, diretamente relacionado à busca de legitimação: nele o autor explica suas razões para escrever a peça pensando naquele teatro e os motivos da recusa do convite para a representação na Comédie Française. Desenvolvendo uma metáfora guerreira, Dumas Filho deixa clara sua consciência de estar lutando por um lugar no campo literário. Para a estreia da peça, que determinaria uma confirmação de sua posição na carreira, procurou começar humildemente “em terreno conhecido e favorável”, ou seja, no Théâtre du Gymnase, no qual sabia que seria aceito e bem recebido, tanto pelo público como pelos diretores do teatro. Seu objetivo foi alcançado, com o sucesso da peça em sua estreia no Gymnase, em 1855.

Ainda que identifiquemos na carreira de escritor de Dumas Filho a ambição de ocupar um lugar entre os grandes dramaturgos de seu tempo, fator que o classificaria, nos termos de Bourdieu, como um representante de uma arte burguesa tida como mercenária, a análise do prefácio nos leva a questionar a hipótese inicial, que via em Dumas Filho um típico representante da arte burguesa. Ao contrário, o que se percebe no texto da peça nada mais é do que uma crítica à sociedade que está sendo retratada, a sociedade parisiense do Segundo Império. E também, a escolha do Théâtre du Gymnase para a estreia da peça, em detrimento do palco mais cobiçado de Paris, a Comédie Française, demonstra que a categorização do autor como representante de uma arte burguesa definida como mercenária é um tanto apressada. Nesta luta simbólica referida por Bourdieu, representada pela oposição entre a arte pura, a arte social e a arte burguesa, Dumas Filho figura em uma batalha paralela, em que está em jogo a difusão de sua arte útil, concepção na qual seu moralismo está embutido.

No capítulo 4, Ethos e habitus: art de vivre burguês, foi dada ênfase às personagens, nas quais identificamos porta-vozes do autor e que vimos como elementos principais da cenografia enunciativa da peça. Reconhecemos nas personagens da peça Le demi-monde a autoridade de enunciadores, que constroem uma imagem de si no momento em que tomam a palavra, por vezes apresentando-se explicitamente, por vezes levando o co-enunciador a construir esta imagem a partir de suas crenças implícitas no discurso. Tais crenças estão relacionadas à respeitabilidade, às questões familiares, à situação da mulher na sociedade e às questões financeiras e conjugais, que são alguns traços do ethos burguês presentes no texto da peça.

No capítulo 5, seção 5.1, trabalhamos com o modo de organização descritivo do discurso, observando que os poucos fragmentos descritivos que aparecem no texto da peça não estão nas didascálias, mas sim nos próprios diálogos. Tudo que o autor quer mostrar ao

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 80-103)

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