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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

SILVIA PEREIRA SANTOS

LE DEMI-MONDE (1855) DE ALEXANDRE DUMAS FILHO: CENOGRAFIA DE UM DRAMA BURGUÊS

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Silvia Pereira Santos

LE DEMI-MONDE (1855) DE ALEXANDRE DUMAS FILHO: CENOGRAFIA DE UM DRAMA BURGUÊS

1 volume

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa.

Orientadora: Profª Doutora Celina Maria Moreira de Mello

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Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama

burguês

Silvia Pereira Santos

Orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa.

Examinada por:

_______________________________________

Presidente, Profª Doutora Celina Maria Moreira de Mello – UFRJ

___________________________________________ Prof. Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina – UFRJ

___________________________________________ Prof. Doutor Roberto Ferreira da Rocha – UFRJ

___________________________________________

Profª Doutora Maria Aurora Consuelo Alfaro Lagorio – UFRJ, Suplente

___________________________________________ Prof. Doutor Henrique Fortuna Cairus – UFRJ, Suplente

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Celina Maria Moreira de Mello, por ter me acolhido em seu grupo de pesquisa e por ter confiado no meu trabalho. Obrigada, Celina, pelo incentivo, pela paciência, pelo pronto atendimento sempre que precisei de orientação, pelo carinho e por suas ricas observações e sugestões. Aprendi muito com você!

A todos que me apoiaram e incentivaram, especialmente aos amigos Felipe Monteiro, João Negreiros, Jorge Vieira e Juliano Ribeiro, que tanto me ajudaram.

Também agradeço imensamente à amiga Fernanda Lima, que gentilmente me apresentou à professora Celina Maria Moreira de Mello, que me encorajou e me deu força desde o início. Obrigada, Fernanda, por sua amizade!

Agradeço ainda aos professores Pedro Paulo Catharina, Roberto Rocha, Consuelo Alfaro e Henrique Cairus, por aceitarem fazer parte da banca e por todas as sugestões que me deram ao longo do curso.

Finalmente, agradeço aos meus pais, irmãos, tios, primos e avós, que me proporcionaram uma sólida estrutura familiar à qual devo minha formação.

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RESUMO

SANTOS, Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama burguês. Rio de Janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa)-Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Estudo da cenografia enunciativa da peça Le demi-monde, escrita por Alexandre Dumas Filho em 1855 e montada pela primeira vez no Théâtre du Gymnase no mesmo ano, relacionando-a ao posicionamento enunciativo do autor, sua identidade enunciativa, e sua posição no campo literário. A fim de caracterizar a cena genérica da peça, apresentamos os rumos do drama burguês, desde sua criação por Diderot no século XVIII até sua retomada e atualização por Alexandre Dumas Filho no século XIX, destacando o drama romântico moderno de Alexandre Dumas. Discutimos o contexto de enunciação da peça e as condições sociopolíticas de sua encenação a partir do prefácio, no qual o autor explica a escolha do Théâtre du Gymnase para a estreia. Apresentamos ainda as estratégias de legitimação da enunciação utilizadas pelo autor, como a descrição de personagens e do espaço social do demi-monde, o realismo e o cenário. A opção pelo drama burguês realista, a cuidadosa seleção do teatro em que a peça deveria ser encenada e a linguagem utilizada configuram o posicionamento enunciativo do autor. Associadas às personagens, que atuam como porta-vozes do autor e são um dos principais elementos que compõem a cenografia enunciativa da peça, funcionam como artifícios para propagação da arte útil por ele defendida.

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RÉSUMÉ

SANTOS, Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama burguês. Rio de Janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa)-Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Étude de la scénographie énonciative de la pièce Le demi-monde, écrite par Alexandre Dumas fils en 1855 et mise en scène pour la première fois au Théâtre du Gymnase dans la même année, qui établit des rapports avec le positionnement énonciatif de l’auteur, son identité énonciative, et sa position dans le champ littéraire. Afin de caractériser la scène générique de la pièce, nous présentons les chemins du drame bourgeois, depuis sa création par Diderot au XVIIIe siècle jusqu’à la reprise et à l’actualisation du genre par Alexandre Dumas fils au XIXe siècle, en soulignant le drame romantique moderne de Alexandre Dumas. Nous discutons le contexte d’énonciation de la pièce et les conditions sociopolitiques de la mise en scène de celle-ci, en nous fondant sur quelques éléments de la préface, dans laquelle l’auteur explique le choix du Théâtre du Gymnase pour la première. Nous présentons aussi les stratégies de légitimation de l’énonciation utilisées par l’auteur, telles que la description des personnages et de l’espace social du demi-monde, le réalisme et le décor. Le choix du drame bourgeois réaliste, la rigoureuse sélection du théâtre pour la création de la pièce et le registre de langue utilisé sont autant de composantes du positionnement énonciatif de l’auteur. Celles-ci, associées aux personnages, qui agissent comme des porte-paroles de l’auteur et sont l’un des éléments principaux qui composent la scénographie énonciative de la pièce, sont autant d' artifices pour la propagation de l’art utile de Dumas fils.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Lit en bois noir incrusté de bouquets (1840). Coll. Comoglio. In: FANIEL (1957). P. 85.

Figura 2. Chaise en bois laqué noir et or (1850-1860). Anc. Coll. Fabius frères. In: FANIEL (1957). P. 86.

Figura 3. Chambre à coucher en acajou de Mrs. Biddle. In: FANIEL (1957). P. 86.

Figura 4. Chambre à coucher Napoléon III, chez la comtesse de P..., à Paris. In: FANIEL (1957). P. 87.

Figura 5. Chambre d’amis Napoléon III chez M. H. Samuel à Montfort-l’Amaury. In: FANIEL (1957). P. 87.

Figura 6. Indiscret, siège capitonné (1860-1870). Coll. part. In: FANIEL (1957). P. 88.

Figura 7. Salon Napoléon III chez la comtesse de P..., à Paris. In: FANIEL (1957). P. 89.

Figura 8. Café La Manille, 1899. Paris: Biblioteca Nacional. In : PERROT (2006). P. 90.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 10

2 CAMINHOS DO DRAMA BURGUÊS ... 16

2.1 Diderot e o drama burguês ... 17

2.2 Teatro e Revolução Francesa... 20

2.3 O drama romântico moderno de Alexandre Dumas ... 21

2.4 O drama burguês de Alexandre Dumas Filho ... 25

3 LE DEMI-MONDE: ENUNCIAÇÃO E CONTEXTO ... 29

3.1 Posicionamento enunciativo de Alexandre Dumas Filho... 30

3.2 Théâtre du Gymnase... 31

3.3 Théâtre-Français (Comédie-Française) ... 33

3.4 Prefácio da peça Le demi-monde – A opção pelo Théâtre du Gymnase ... 34

4 ETHOS E HABITUS: ART DE VIVRE BURGUÊS... 39

5 ESTRATÉGIAS DE LEGITIMAÇÃO DA ENUNCIAÇÃO ... 55

5.1 Descrição do demi-monde como espaço social ... 59

5.2 O Realismo ... 69

5.3 Cenário da peça Le demi-monde... 80

6 CONCLUSÃO... 92

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1INTRODUÇÃO

Um dos autores dramáticos mais lidos do Segundo Império francês, Alexandre Dumas Filho nasceu em Paris, em 1824. Filho do celebrado romancista Alexandre Dumas com a costureira Catherine Laure Labay, foi legalmente reconhecido pelo pai somente aos sete anos de idade. Sua situação familiar tornou-se tema de grande parte de suas obras, mostrando um tom moralista que será uma de suas características mais marcantes: “Penso que um homem que põe uma criança no mundo [...] sem lhe assegurar os meios materiais e sociais de vida [...] é um malfeitor que deve ser classificado entre ladrões e assassinos” (DUMAS FILS, 1899, p. 6). 1 Tal citação, do prefácio da peça Le fils naturel (O filho natural), ilustra o rancor que Dumas Filho guarda de seu pai e dá a perfeita noção de como usará sua obra para levar ao seu público sua visão moralista de mundo.

Aliada às condições de seu nascimento e de sua história de vida, há que se considerar ainda, como fator importante para a leitura da obra de Dumas Filho, a situação do teatro e das artes como um todo, no contexto histórico correspondente, o qual representa um momento crucial do desenvolvimento do campo literário. Na primeira metade do século XIX, havia uma subordinação estrutural da maioria dos escritores e artistas às instâncias políticas, não só devida às sanções que se impunham às publicações como também aos benefícios materiais e simbólicos oferecidos (tais como pensões, acesso à possibilidade de se apresentar nos teatros, eleição para a Academia de Letras, entre outros) (Cf. BOURDIEU, 1992, p. 78-79). O campo literário se constitui como tal por oposição a um mundo burguês, representado por emergentes sem cultura que fizeram triunfar na sociedade o poder do dinheiro (Cf. BOURDIEU, 1992, p. 90).

1 “Moi, je trouve que l’homme qui met un enfant au monde […] sans lui assurer les moyens matériels et sociaux

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Este campo literário em vias de desenvolver sua autonomia teve êxito em pressionar os escritores a seguirem suas normas específicas, como se afastar-se dos valores dominantes e dos poderes externos, políticos e econômicos, fosse uma condição sine qua non para honrarem seu estatuto de escritor (Cf. BOURDIEU, 1992, p. 105). No entanto, a partir dos anos 1840, e principalmente após a revolução de 1848, o entusiasmo pelos prazeres e divertimentos fáceis, encorajados pelo regime imperial – destacando-se o teatro -, favorece a expansão de uma arte comercial, submetida aos interesses do público (Cf. BOURDIEU, 1992, p. 107). Trata-se de uma “arte burguesa”, da qual Alexandre Dumas Filho será um dos maiores ícones e cujos representantes são em sua maioria escritores de teatro, ligados por origem, estilo de vida e sistema de valores aos grupos dominantes na sociedade. Esta ligação esclarece o sucesso destes dramaturgos, dada a cumplicidade ética e política entre o autor e seu público, e lhes garante não só importantes benefícios materiais (o teatro é a mais rentável das atividades literárias) como também benefícios simbólicos, como a Academia, tida como um emblema da consagração burguesa (Cf. BOURDIEU, 1992, p. 108) – Alexandre Dumas Filho foi eleito membro da Academia em 1874.

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respeitável e o mundo da prostituição, como pretendeu redefini-lo, enriquecendo o verbete para compor os dicionários futuros, conforme veremos nos capítulos que seguem.

Por se tratar de uma realidade muito específica da cidade de Paris do século XIX, optamos por não traduzir o termo demi-monde. 2

O tema desta dissertação é a caracterização da cena de enunciação da peça Le demi-monde (1855), de Alexandre Dumas Filho, mais especificamente de sua cenografia enunciativa, relacionando-as com o posicionamento enunciativo do autor (sua identidade enunciativa) e sua posição no campo literário. Os conceitos de cena de enunciação e cenografia enunciativa fazem parte das teorias de análise do discurso propostas por Dominique Maingueneau (2006), e podem ser entendidas a partir de uma metáfora teatral, em que a cena de enunciação representa o processo de comunicação como um todo, e a cenografia a encenação de uma situação que legitima a enunciação. O conceito de campo literário, por sua vez, foi proposto e desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1992) para definir um espaço social que vive das tensões entre as diferentes “tribos” literárias, tribos estas que se definem por suas reivindicações estéticas distintas (círculo, escola, bando, academia) e que disputam uma posição hegemônica. Para os propósitos desta pesquisa, o conceito de campo literário será pertinente porque é através do modo como se inserem neste campo que os escritores indicam a posição que nele ocupam ou desejam ocupar (Cf. MAINGUENEAU, 2001, p. 31).

Sabendo-se que a peça alcançou grande sucesso de público e crítica, pretende-se analisar as estratégias enunciativas utilizadas pelo autor francês para alcançar este público e para legitimar sua enunciação, estratégias estas que estão diretamente relacionadas ao seu

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posicionamento enunciativo e à sua posição no campo literário. A primeira hipótese levantada considera que um dos elementos que compõem a cenografia enunciativa da peça são suas personagens, que demonstrariam a posição do autor no campo literário: ou seja, a de típico representante da arte burguesa. Mulheres "desonradas" sem marido que escondem seu passado, damas falidas que tentam conseguir casamento para as sobrinhas, ex- combatentes inocentes, homens vividos e experientes, jogos, intrigas, duelos – como é usual nas obras de Alexandre Dumas Filho, as personagens retratam o estilo de vida burguês, e algumas são utilizadas como porta-vozes do autor.

Referimo-nos a burgueses, aqui, como uma classe social estabelecida como tal, ou seja, como um grupo que se diferencia de outro por seu lugar no sistema historicamente determinado da produção e por seu papel na organização social do trabalho (Cf. CARDOSO, 1992, p. 127). A burguesia, no período pós-revolucionário, destaca-se da grande “massa” do Terceiro Estado, adquirindo ideologia própria e consciência de classe, diferenciando-se do povo. Trata-se, portanto, de uma classe emergente cujo crescente poderio econômico e político deve ser projetado nas artes.

Levando em consideração a realidade de cada teatro e sua historicidade, Dumas Filho opta pelo Théâtre du Gymnase para estréia da peça, em 1855, pois este dava espaço à literatura contemporânea que, segundo o autor, “mesmo que fosse inferior àquela do século XVII, tinha o direito de viver e espalhava-se então nos teatros de gênero, à frente dos quais estava o Gymnase [...]” 3 (DUMAS FILS, 1898, p. 15). Naquele momento, o Théâtre Français (Comédie-Française) ainda estava preso às tradições da grande cena trágica, e por isso sua comédia seria um choque para aquele público. Portanto, a segunda hipótese parte do princípio de que a opção pelo Théâtre du Gymnase para estreia da peça também demonstraria sua posição no campo literário como defensor da arte burguesa, ao dirigir-se diretamente a seu

3 « [...] si inférieure qu’elle fût à celle du XVIIe siècle, avait le droit de vivre cependant et se répandait alors dans

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público-alvo, que frequentava o teatro em questão.

Finalmente, cabe salientar a importância dos prefácios redigidos por Dumas Filho para suas peças, que seriam mais um componente de sua cenografia enunciativa na busca de legitimação de seu discurso.

O capítulo Caminhos do drama burguês tem como objetivo identificar, no drama burguês proposto no século XVIII por Diderot, as características da tradição literária em que se insere Alexandre Dumas Filho quando de sua retomada e atualização em suas comédias de costumes no século XIX. Para tanto, são discutidas as seguintes questões: as características do “gênero sério” de Diderot e o moralismo nele embutido; o drama romântico de Alexandre Dumas pai, que, com a peça Antony, faz uma ponte entre o “gênero sério” e a comédia de costumes; e o drama burguês de Dumas Filho.

No capítulo 3, Le demi-monde: enunciação e contexto, analisamos o prefácio da peça em busca das condições sócio-políticas que levaram o autor a optar pelo Théâtre du Gymnase para estréia de seu trabalho, em 1855. Utilizaremos como fonte o prefácio da peça na coletânea Teatro Completo, publicada em 1898, no qual o autor explica suas razões para escrever a peça pensando neste teatro e os motivos da recusa do convite para a representação no Théatre-Français (Comédie Française). Neste capítulo também veremos a definição de Dumas Filho para o demi-monde.

O capítulo 4, Ethos e habitus: art de vivre burguês, é dedicado à identificação e descrição dos traços do ethos burguês presentes no texto da peça, relacionando-os ao conceito de habitus.

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localizar-situar, qualificar. Cf. CHARAUDEAU, 1992) e verificar como Dumas Filho as utiliza para legitimar sua enunciação. Embora o modo de organização descritivo não seja o modo predominante na peça, há alguns fragmentos descritivos que parecem ser utilizados a serviço das estratégias de legitimação da enunciação, estratégias estas que estão diretamente ligadas ao posicionamento enunciativo do autor. Contrariamente a um grande número de peças de teatro, nas quais o modo de organização descritivo aparece sobretudo nas didascálias4, em Le demi-monde elas se apresentam em número bastante reduzido: tudo que o autor quer mostrar ao espectador é dito pelas personagens. Na seção 5.2, ilustramos as fases do movimento realista, de Courbet e Champfleury a Dumas Filho, pontuando suas principais características em cada fase. Finalmente, na seção 5.3 buscamos identificar, no texto da peça, referências ao espaço no qual a história se desenvolve, especialmente em relação à arquitetura e ao mobiliário, visando à reconstituição do cenário da peça. O reduzido número de didascálias nos faz levantar a hipótese de que ele reproduz uma casa burguesa típica, na qual o público alvo se sente inserido, e por isso adotamos textos de arquitetura e decoração do século XIX como ferramentas de apoio, especificamente aqueles relacionados à vida privada.

A edição da peça que será utilizada para análise e referência é a do teatro completo, de 1898, devido aos prefácios que a acompanham. A edição da Calmann Lévy, de 1879, foi, no entanto, a primeira a ser consultada, com o exemplar disponível na Biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ, seção de obras raras.

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2CAMINHOSDODRAMABURGUÊS

A separação rígida dos gêneros trágico e cômico segundo Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) já era criticada no século XVII por Corneille (1606-1684). Para este, a definição de comédia como “imitação de pessoas baixas, medíocres” não era mais satisfatória: um rei poderia ser personagem cômica se suas ações não correspondessem àquelas exigidas pela tragédia (Cf. CORNEILLE, 1950, p. 66). A invenção da “grande comédia”, por Molière, traz um tratamento nobre, como o verso, para temas cômicos, denunciando os vícios e praticando a crítica dos costumes (Cf. NAUGRETTE, 2001, p. 22). 5

Os sucessores de Molière intensificam as denúncias aos males de seu tempo, e passam a descrever cada vez mais as condições sociais. Era a comédia de costumes (comédie des moeurs), que se firmava como « estudo do comportamento humano em sociedade, das diferenças de classe, do meio e dos caracteres » (PAVIS, 1996, p. 54).

Segundo Canova-Green, este estudo de uma sociedade considerada decadente passou a chocar a opinião de um público cujo gosto evoluía a partir do emprego da emoção e da sensibilidade pelos romances. Assim, a “imoralidade que podia corromper ainda mais os costumes”, uma vez que não era abertamente condenada pelos autores, foi preterida em função de um teatro útil, edificante (CANOVA-GREEN, 1997, p. 263).

Inicia-se, então, uma reação contra a comédia de costumes, pois mostrar os vícios da sociedade não é mais suficiente: é preciso corrigir os costumes, e pôr em cena personagens cujos exemplos devam ser seguidos, e que sejam admirados pelo público, por sua virtude e grandeza. Esta comédia moralizante apresenta-se com uma forma didática, deixando pouco espaço para o riso fácil e grosseiro – tal como veremos a seguir, com Diderot (1713-1784).

5 Convencionou-se chamar de pequena comédia aquelas curtas, com menos de três atos, que atingiam o público

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Ao longo do século XVIII, acentua-se o questionamento das regras do teatro clássico e intensifica-se a busca pela estética da emoção e da sensibilidade. A « comédie larmoyante » (“comédia que causa lágrimas”), criada por Nivelle de La Chaussée (1692-1754) por volta de 1735, é uma comédia que deve provocar lágrimas, emocionar o público, e veio preparar o terreno para a criação do drama burguês por Denis Diderot.

2.1 Diderot e o drama burguês

A presença da burguesia em cena indica seu estabelecimento como classe e sua expansão econômica e social. Na segunda metade do século XVIII, a sociedade francesa se caracterizava pelo enfraquecimento do regime feudal. O agricultor e o camponês já são proprietários ou retêm livremente a terra, embora a nobreza e o clero ainda possuam uma grande parte do solo. O artesanato e o comércio disseminaram-se entre a população, criando um novo modo de riqueza. Graças ao comércio marítimo que se desenvolvera desde o século XVI, e a conseqüente impulsão da indústria, a burguesia era muitas vezes mais rica que a nobreza, e desejava, portanto, participar da vida política. A inutilidade da nobreza tornava-se cada vez mais evidente.

O poder absoluto do rei, a improdutividade da nobreza e a tragédia que os representava passaram a ser criticados por alguns filósofos, dentre os quais Denis Diderot. Ele vai propor um teatro sério que retrate a burguesia, em oposição ao teatro clássico, no qual a burguesia era mostrada em papéis ridículos.

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em 1771. Le père de famille (O pai de família) foi composta em 1758, junto ao Discours sur la poésie dramatique (Discurso sobre a poesia dramática), e foi aos palcos em 1760. 6

A idéia principal em que se baseia a teoria dramática de Diderot é a de que, entre a tragédia e a comédia, há um hiato que poderia e deveria ser preenchido. Tal idéia, não tão revolucionária quanto alardeia Diderot7, é, no entanto, por ele sistematizada, e evidencia que “contrariamente a um imaginário quanto ao discurso literário, de que este produz obras que obedecem a determinadas prescrições de gêneros, as obras é que 'fundam' gêneros” (MELLO, 2005a, p. 51). Em Discours sur la poésie dramatique, Diderot explica sua proposta:

Em Le fils naturel, tentei dar a idéia de um drama que estivesse entre a comédia e a tragédia. Le Père de famille, que proponho agora, e que as contínuas distrações atrasaram, situa-se entre o gênero sério de Le fils naturel e a comédia. E se um dia eu tiver tempo e coragem, não perco a esperança de compor um drama que fique entre o drama sério e a tragédia (DIDEROT, 1959, p. 190-191). 8

Diderot propõe um gênero intermediário, que emocionaria o público, ao mesmo tempo em que o levaria a refletir sobre os problemas da sociedade contemporânea. A proposta de redefinição dos gêneros implica uma inversão do processo moralizador da comédia clássica: trata-se de edificar pelo exemplo da virtude, e não mais pela simples denúncia do ridículo e do vício. Assim nasce o chamado gênero sério, gênero híbrido localizado entre a tragédia e a comédia, que não é simplesmente uma justaposição de gêneros opostos, mas a tentativa de mostrar ao espectador toda uma gama de emoções verdadeiras nas quais ele possa se reconhecer, seja com uma “comédia séria” ou uma “tragédia doméstica”. Passa-se a representar o homem moderno, o homem em sua sociedade, e a prosa substitui o verso, a fim de que a linguagem utilizada na representação se aproxime ainda mais da realidade

6 Há ainda a peça Est-il bon? Est-il méchant?, que não foi encenada. 7 Cf. PETIT de JULLEVILLE, 1889, p. 312-314.

8

« J’ai essayé de donner, dans le Fils naturel, l’idée d’un drame qui fût entre la comédie et la tragédie. Le Père

de famille, que je promis alors, et que des distractions continuelles ont retardé, est entre le genre sérieux du Fils naturel et la comédie. Et si jamais j’en ai le loisir et le courage, je ne désespère pas de composer un drame qui se

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representada.

Para que o público se envolva na trama, é necessário substituir os caracteres, tipos universais e atemporais, por suas condições sociais: são personagens individualizadas, diferenciadas pela profissão, estado civil, grau de parentesco... As personagens possuem uma densidade psicológica, decorrente, segundo os filósofos das Luzes, de sua condição na sociedade – é a instalação do determinismo social em cena: “O homem é, com efeito, aquilo que a pressão longa e contínua do hábito, das funções exercidas, dos preconceitos de classe recebidos e conservados, fez dele. (...) O caráter adquirido substitui o caráter inerente”. 9

São exaltados os valores da burguesia (uma burguesia ainda reformista, não revolucionária), tais como família, trabalho, sucesso, e é explorada a pantomima - o movimento dos corpos –, bem como o cenário e o figurino: o espectador assume uma posição de voyeur, que observa a intimidade doméstica das personagens. Também são evocados temas que preocupam o público burguês, tais como a falência e a questão dos filhos naturais, questão esta que é tema da peça Le fils naturel, a qual resumimos abaixo. O assunto será retomado quase um século mais tarde por Alexandre Dumas Filho, em peça homônima (1858).

Clairville é apaixonado por Rosalie. Ele pede a seu amigo Dorval, jovem estimado e virtuoso, mas que não conhece seu próprio pai, que interceda por ele junto à sua amada. Quando ele o faz, Rosalie diz a Dorval que é ele quem ela ama. Embora dividido entre seus sentimentos por Rosalie e seu respeito por Clairville, que o acolheu em sua casa e em sua família, Dorval opta pela consideração ao amigo e deixa livre o caminho para Clairville e Rosalie.

Quando o pai de Rosalie, Lysimond, chega para abençoar o casamento de sua filha com

9 “Un homme est, en effet, ce que la pression longue et continue de l'habitude, des fonctions exercées, des

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Clairville, ele reconhece que Dorval é seu filho ilegítimo. Os irmãos reconhecem, então, que a renúncia ao amor foi benéfica e dá-se o desfecho feliz: Rosalie e Clairville se casam, assim como Dorval e Constance, irmã de Clairville.

Conforme se nota, a peça é a própria colocação em prática das teorias propostas em Entretiens sur le fils naturel, e a confirmação do subtítulo Épreuves de la vertu - Provas da Virtude, virtude esta associada aos ideais iluministas de progresso e de perfectibilidade humana.

O drama burguês não atingiu grande sucesso, e uma das razões, é a adoção de uma simplificação e de uma generalização extremas, fator que o impediu de ser verdadeiramente realista. Além disso, o característico tom sério passou a ser julgado como enfadonho (Cf. CANOVA-GREEN, 1997, p. 286). Porém, o gênero dramático sério sobreviveu, adaptando-se a um público mais popular; e o que é mais importante: seus princípios deixarão marcas na estética teatral francesa por mais de dois séculos, inclusive na obra de Alexandre Dumas Filho.

2.2 Teatro e Revolução Francesa

Alguns autores, seguindo o objetivo reformador de Diderot, perceberam as virtudes pedagógicas do teatro, e passaram a exigir então uma maior liberdade na escolha dos temas, com foco naqueles ligados às preocupações dos espectadores. Era o teatro como “escola de bons costumes” (école des bonnes moeurs), cujas virtudes pedagógicas incluíam a missão de atingir e instruir uma população em grande parte iletrada.

Com a Revolução Francesa, os novos valores de igualdade e liberdade passaram a ser recorrentes em cena, além do patriotismo propagandista, demonstrando uma concepção militante do papel do teatro.

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1997, p. 306), por sua dimensão exemplar e o sentimento de identificação que provoca. Por isso, era necessário que os atos postos em cena inspirassem a adesão aos valores que o autor defendia.

A lei de 13 de janeiro de 1791 abole a censura, mas a liberdade permanecerá submetida à obrigação de não provocar a desordem pública. O Decreto da Convenção, de 2 de agosto de 1793, obriga os teatros parisienses a representar, uma vez por semana, gratuitamente, “por e para o povo”, as tragédias que retraçam os gloriosos eventos da liberdade e as virtudes de seus defensores (Cf. GENGEMBRE, 1997, p. 307). Função pedagógica paradoxal, em que as virtudes da liberdade são impostas em cena por um repertório rigidamente estabelecido.

Um importante tema representado durante o período revolucionário é o feudalismo, em que a aristocracia e o trabalho dos camponeses são postos em cena, com um sentimento de rancor e de revanche por parte destes últimos. O trabalho, outrora símbolo da condição servil, é visto neste momento como um valor fundamental da dignidade. O anticlericalismo também é um assunto bastante presente, seguindo a política empreendida pelos governos revolucionários contra a Igreja, reivindicando a laicização da sociedade.

Finalmente, cabe salientar a importância do patriotismo e, principalmente, da família, que passa a ser vista como fonte de regeneração social. A Revolução Francesa faz triunfar a concepção burguesa do casamento, com respeito às regras de autoridade, em contraponto às frouxas regras da aristocracia neste sentido.

2.3 O drama romântico moderno de Alexandre Dumas

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moderno se impõe como um espelho crítico da sociedade contemporânea, dando continuidade à escola criada pelas Luzes.

O drama histórico aparece para romper com a tragédia clássica. Esta última, engessada em suas regras de unidades (de tempo, de lugar e de ação), verossimilhança e utilização de temas da Antiguidade, não permitia a representação da sociedade moderna e sua evolução. O drama histórico pretende, então, dar ao povo a oportunidade de conhecer sua história, história esta que não foi feita exclusivamente pelos “grandes homens”, mas também por aquelas “pessoas comuns” da platéia. E o teatro é, enfim, o melhor meio para a difusão da história, por ser capaz de atingir a grande massa de analfabetos existentes no período.

Em Henri III et sa cour (1829), Alexandre Dumas apresenta um drama histórico, em prosa, em que a questão da contestação do poder monárquico é apenas um pano de fundo de seu real objetivo, que é mostrar os bastidores da vida da corte, seus hábitos, as inquietações e rivalidades pessoais. A presença de personagens históricas, de trajes de época e de cenários picturais desenhados por Cicéri, renomado cenarista da Comédie, indica a época em que se passa a ação da peça e integra os traços constitutivos do ethos da encenação teatral, ou seja, sua máscara enunciativa (Cf. MELLO, 2005b, p. 2). O figurino passa a ser resultado de uma pesquisa que buscava uma fidelidade histórica, por fim correspondendo aos retratos oficiais de figuras da nobreza, fato que constitui uma inovação em relação à tragédia clássica, cujas apresentações eram feitas em trajes contemporâneos (Cf. MELLO, 2005a, p. 54-55).

Segundo Naugrette (Cf. 2001, p. 220), após a instauração da Monarquia de Julho e o afrouxamento da censura, os autores dramáticos não mais necessitavam utilizar a história como subterfúgio para falar do presente. É neste momento que Alexandre Dumas, com a peça Antony (1831), cria o drama “en habits noirs”, “drama de casaca”, em que são tratados temas contemporâneos.

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reconhecer no palco, de observar diretamente a sociedade contemporânea e suas próprias situações cotidianas, em detrimento das questões relacionadas ao passado, até então predominantes no drama histórico. É o movimento da opinião pública que cada vez mais reivindica junto aos autores dramáticos a presença do mundo contemporâneo nos espetáculos.

Ao desvelar a sociedade contemporânea, Antony também mostra uma sociedade responsável pela criação do mal que ela reprime: “é ela que, marginalizando o bastardo, lhe dá o gosto desenfreado da revanche; é ela enfim, por suas maledicências e sua rejeição dos amantes adúlteros, que precipita seu fim” (NAUGRETTE, 2001, p. 154).

Se o drama histórico se servia da história com interpretações contemporâneas para fins eminentemente políticos, a proposta do drama moderno está mais relacionada à questão social, tal como seu ancestral “drama burguês”. Substituindo o antigo determinismo da fatalidade trágica está o já citado determinismo social, e com ele há uma mudança de perspectiva: se, por um lado, as leis naturais são imutáveis, por outro lado temos as leis sociais que, embora com dificuldade, podem ser mudadas.

Além da classificação de drama moderno, Antony também é considerado um melodrama. O melodrama surge no século XVIII como um gênero em que, conforme indica a leitura literal do termo, “drama cantado”, a música intervém nos momentos mais dramáticos para exprimir a emoção de uma personagem que está em silêncio, geralmente envolta em suas reflexões. No fim do século XVIII o melodrama dá uma guinada em direção a uma nova definição, passando a ser um novo gênero popular. Sua estrutura dramática assemelha-se ao drama burguês de Diderot, com a presença de castigos e recompensas e o triunfo da virtude, e os temas giram em torno do amor, da (in) felicidade e da traição (Cf. PAVIS, 1999, p. 238).

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contestação, Pavis considera que o melodrama chancela a ordem burguesa recém-estabelecida.

A questão principal da peça Antony é a bastardia, imbricada em outra questão mais ampla que é o lugar do homem do povo na sociedade burguesa. Antony pede a mão de sua amada Adèle em casamento, mas não alcança seu intuito por não ter um nome de família a oferecer. A jovem se torna esposa do Coronel d'Hervey e mãe de família, mas eis que o destino os reúne novamente. Para salvar sua reputação e de sua filha, ela pede que Antony a mate antes que seu marido os veja juntos, e ele obedece, por amá-la: ao marido que chega em seguida e vê a esposa morta, Antony diz: “Ela resistia a mim, eu a assassinei” (ato V, cena 4). 10

O grande mérito de Dumas é expor uma personagem que força a sociedade a reconhecer-se hipócrita e contraditória: Antony, agressivo e provocador, faz grande sucesso entre o público, refletindo as contradições de uma sociedade que produz uma imagem negativa do filho ilegítimo ao mesmo tempo em que o aplaude em cena. O drama moderno inscreve as paixões românticas (exaltação dos valores do amor, da liberdade, da contestação político-social) em uma intriga contemporânea, situando-se deste ponto de vista na filiação do drama burguês imaginado por Diderot (Cf. NAUGRETTE, 2001, p. 223). O elogio de Antony e a hipocrisia da sociedade ficam evidentes na passagem transcrita a seguir:

Ah! Ser amada assim e poder confessar a Deus e ao mundo; ser a religião, o ídolo, a vida de um homem como ele... tão superior aos outros homens; ...dar-lhe toda felicidade, e depois numerosos dias passariam como horas... Ah! no entanto, veja de que um preconceito me privou!...é esta a sociedade justa que nos pune por uma falta que nem um nem outro cometeu (ato III, cena 6). 11

Sem nome e sem meios materiais para oferecer, o filho ilegítimo é condenado ao

10 “Elle me résistait, je l’ai assassinée!...” 11

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círculo vicioso das relações adúlteras. A hipocrisia puritana leva os amantes à morte, em nome de uma honra ilusória; embora a moral burguesa seja satisfeita com a punição dos amantes, a compaixão do espectador pela mal casada Adèle reflete o sucesso da denúncia social pretendida pelo autor (Cf. NAUGRETTE, 2001, p. 225).

2.4 O drama burguês de Alexandre Dumas Filho

Após a Revolução Francesa, as formas de comédia herdadas do século XVIII continuam a se desenvolver, mas é a comédia de costumes que vai encontrar grande crescimento. A partir de 1850, assiste-se a um aumento do número de peças cujo objetivo é tornar a arte “útil”. Alexandre Dumas Filho, grande expoente do período, define as intenções de seu teatro moralista, que vai absorver e atualizar os gêneros sérios; no prefácio da peça Le fils naturel, ele afirma: “Toda literatura que não visa a perfeição, a moralização, o ideal, o útil enfim, é uma literatura raquítica e doentia, natimorta” 12 (DUMAS FILS, 1899, p. 31).

O maior sucesso de Dumas Filho, La dame aux camélias (A dama das camélias) (1852), consagra o gênero do drama moral. Nesta peça, a heroína, Marguerite Gauthier, é uma prostituta que renuncia ao jovem burguês que ama, Armand Duval, para salvar-lhe a honra. Ela morre, mas seus méritos são reconhecidos, demonstrando o triunfo da dignidade burguesa (Cf. GENGEMBRE, 1997, p. 355).

Dumas Filho oscila entre o drama moral e a comédia moralizante, cujo exemplo de maior sucesso é Le demi-Monde. A peça foi um sucesso porque teve êxito em mostrar os costumes deste mundo artificial que vive de mentiras e falsas aparências, e ao fazê-lo Dumas Filho aguçou a curiosidade do público, e nada melhor do que a realidade tal como ela é (ou como ele a vê) para satisfazer tal curiosidade.

12 “Toute la littérature qui n'a pas en vue la perfectibilité, la moralisation, l'idéal, l'utile, en un mot, est une

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Para sustentar suas “comédias-tese” (Comédie-thèse) e passar sua lição moral, Dumas Filho utiliza alguns artifícios. A presença de prefácio é uma característica marcante do autor: é nele que o interlocutor é preparado, as teses são expostas e tem início sua argumentação, que dá o tom daquilo que está por vir no decorrer da trama. Trata-se, de certa maneira, do mesmo recurso utilizado por Diderot, com os ensaios Entretiens sur le fils naturel e Discours sur la poésie dramatique, os quais acompanharam as publicações de suas peças, conforme supracitado.

Outro elemento sempre presente é a personagem do raisonneur, moralista e dotada de preconceitos, que é uma porta-voz do autor para dar a palavra final e reforçar a lição. De acordo com o dicionário Trésor de la langue française (on line), o raisonneur (aquele que raciocina, que argumenta) é a “personagem de comédia do qual o autor se serve como um porta-voz para exprimir a ideia que quer pôr em cena e precisar o sentido e o alcance de sua peça” 13. Para Pavis, trata-se de um tipo de personagem que aparece sobretudo na época clássica, no teatro de tese e nas peças didáticas (Cf. PAVIS, 1999, p. 323). Dumas Filho vai lançar mão deste tipo de personagem como uma manobra discursiva em suas comédias-tese, que é uma forma que utiliza para convencer o público da legitimidade de seu discurso. Embora toda peça apresente, necessariamente, uma tese, este tipo de teatro organiza os comentários de forma bastante didática, e é o raisonneur um dos grandes responsáveis pela defesa de tal tese.

Por fim os temas contemporâneos e as personagens “reais” são também recursos utilizados para alcançar e convencer o público.

Em Le fils naturel, Dumas Filho pretende mostrar ao público as conseqüências do não reconhecimento dos filhos ilegítimos por parte dos pais, um egoísmo que afetará a vida da

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criança, a qual encontrará obstáculos devidos à ausência de um nome de família. A infelicidade dos filhos ilegítimos reflete-se não só nas relações com o pai, mas também nas relações sociais: a sociedade também é responsabilizada por adotar tal procedimento como normal, negligenciando o debate sobre o assunto.

Porém, o que se observa no texto da peça é uma personagem que não poderia se queixar, nem dos homens, nem da sociedade, pois é rico, inteligente, sedutor, e encontra todas as portas abertas, características e oportunidades que muitos filhos legítimos não possuem. Após ser reconhecido como um homem de sucesso, seu pai, que antes o desprezara, passa a procurá-lo a fim de oferecer um nome que não é mais desejado. Tal enredo permite-nos supor que o objetivo de Dumas Filho tenha sido, mais uma vez com propósitos moralistas, mostrar um pouco de sua biografia, por ser ele próprio um filho bastardo que alcançou sucesso e reconhecimento público.

O espetáculo começa com a jovem Clara Vignot aguardando seu amante, Charles Sternay, cujas visitas foram se tornando cada vez mais raras. Ele prometeu dar seu nome ao filho, fruto desta paixão; mas, apesar da confiança que Clara deposita em suas palavras, Charles mente ao dizer que precisa viajar para refazer sua fortuna perdida. Na verdade, ele quer se desvencilhar de Clara, pois está prestes a se casar.

Vinte e três anos se passam desde a separação, e Jacques de Boisceny, filho de Clara Vignot, apaixona-se por Hermine, que é a própria sobrinha de Sternay. Conheceram-se em um encontro fortuito, casual, e casar-se-iam não fosse o impedimento da mãe da noiva.

É o amigo de infância de Clara Vignot, Aristide Fressard, que se encarrega de revelar a Jacques o segredo de seu nascimento. A partir daí, o herói da peça vai em busca do pai para obter seu nome, sem sucesso. As recriminações de Jacques contra Sternay e as reprovações que dirige à mãe dão o tom moralista pretendido pelo autor.

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peças homônimas, percebe-se a utilização pelos dois autores de recursos opostos para pregar a moralidade.

Na peça Le fils naturel de Diderot, quando Dorval e Rosalie renunciam ao amor, descobre-se que são irmãos. A virtude, até então infeliz, revela-se vitoriosa e recompensada. Ademais, Lysimond, pai de Dorval, é um homem honesto, que as circunstâncias impediram de reconhecer o filho – o oposto do pai de Jacques, o “filho natural” da peça de Dumas. Este último representa um caso mais comum na vida real, que é a busca do prazer pelo homem e o posterior abandono do filho ilegítimo e sua mãe. Percebe-se no drama sério de Diderot um otimismo que não é evidente na peça de Dumas Filho, na qual a busca pela “realidade” traz aos palcos caracteres exacerbadamente marcados, quase maniqueístas: Sternay é uma personagem que não tem nenhuma qualidade, criada sob medida para causar repugnância.

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3LEDEMI-MONDE:ENUNCIAÇÃOECONTEXTO

Segundo Dominique Maingueneau (2006), todo enunciado é o produto de um evento único, sua enunciação, que requer um enunciador, um destinatário, um momento e um lugar específicos. Este conjunto de elementos define a situação de enunciação. Para o autor, os textos literários apresentam o paradoxo de alcançar públicos indeterminados no tempo e no espaço (descontextualização), embora sejam produzidos para um tipo específico de público.

No texto literário e nas demais comunicações escritas, o enunciador só sustenta o ato de dizer se um leitor (destinatário) o coloca em movimento. Por isso o destinatário ou receptor do texto literário também é chamado de co-enunciador, pois é ele que enuncia a partir das indicações do autor no texto da obra.

A enunciação no teatro caracteriza-se por ser dupla: não só a representação é um ato de enunciação, em que o autor se dirige a um público, como também, na própria situação representada, as personagens trocam frases em uma situação de representação de um dizer supostamente autônomo. Além disso, a leitura do destinatário é dupla: além das representações ele tem acesso também aos textos da peça, caso tenham sido publicados.

Há na enunciação teatral uma fonte enunciativa invisível, à qual Maingueneau denomina arquienunciador, que só entra em contato com seu público através da interpretação do diretor, que faz a mediação entre o texto e seus diversos receptores (Cf. MAINGUENEAU, 1996, p. 160). Em um mesmo enunciado, o espectador tem acesso, portanto, a três atos de enunciação distintos, que envolvem as seguintes instâncias: autor-público virtual, diretor-público específico, personagem-personagem.

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e a utilização das personagens como porta-vozes do autor Dumas Filho.

3.1 Posicionamento enunciativo de Alexandre Dumas Filho

Posicionamento, termo chave da análise do discurso, relaciona-se, conforme explica Patrick Charaudeau (2006), à manutenção de uma identidade enunciativa: a escolha do gênero de discurso com o qual se vai trabalhar e, neste caso, a própria escolha do teatro em que a peça será encenada, o vocabulário, a linguagem, os valores definidos, as normas de comportamento social adotadas, entre outros recursos, indicam como o autor se situa neste espaço de conflito que é o campo literário. Embora os diferentes posicionamentos tendam a criar grupos, movimentos ou tribos, a identidade enunciativa não é fechada em si mesma: ela se mantém e se renova através do interdiscurso.

Todo discurso tem como propriedade estar em relação com outros discursos. O interdiscurso é um conjunto de gêneros discursivos que interagem em uma dada conjuntura, e está para o discurso assim como o intertexto está para o texto. O intertexto, por sua vez, é um conjunto de textos ligados por relações intertextuais, ou seja, relações entre textos em que um ecoa no outro.

A partir destes conceitos podem ser observadas as relações que as peças de Dumas Filho mantêm entre si, que produzem/projetam sua identidade discursiva, e aquelas entre sua obra e outras obras contemporâneas, cujas diferenças e/ou semelhanças definem seu posicionamento. Além disso, permitem o entendimento da estratégia do autor de adaptação de diálogos cotidianos da sociedade de sua época para a literatura e o teatro.

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3.2 Théâtre du Gymnase

O Théâtre du Gymnase foi construído em 1820. Na ocasião, servia à prática dos alunos do Conservatório, representando peças de um ato. Charles-Gaspard Delestre-Poirson (1790-1859), primeiro diretor do teatro, logo pôde pôr em cena peças que não ultrapassassem três atos, e se associou a Augustin Eugène Scribe14 (1791-1861) por contrato exclusivo.

Os parisienses rapidamente adquiriram o hábito de freqüentar este teatro agradável e moderno (Poirson foi, desde 1823, um dos primeiros a instalar iluminação a gás), e lá aplaudir peças alegres e morais, mas por vezes também de tendências liberais como a peça de Scribe, intitulada Avant, pendant et après (antes, durante e depois), que lhe atrairá em 1829 o descontentamento da Corte.

Com Scribe, e durante 25 anos, instalou-se a prática de preconizar as virtudes burguesas e cívicas, na qual se destacam a importância do pai de família, a vitória da sabedoria e da razão, etc. Quando Poirson cedeu, em 1844, a direção do teatro a Montigny, este último se deu conta de que o público começava a perder o interesse pelas obras edificantes e personagens puras, pobres e virtuosas. Assim, o Gymnase transforma seu repertório e inicia uma nova fase.

« Ele (Théâtre du Gymnase) está daqui em diante inteiramente ligado a este gênero cuja importância desenvolveu singularmente » 15 , constatava Monselet, em 1864. E ele define o gênero a que se refere:

Seu repertório é como um audacioso parêntese aberto na sociedade atual. Ele se compraz no ilícito, é direto ou escabroso... A ele as situações comprometedoras, [...] os descaramentos calculados. Há uma lupa para todos os escândalos. Suas peças

14 Prolífico autor dramático francês cujas obras dominaram os palcos franceses por mais de 30 anos e foram

consideradas as precursoras do conceito de pièce bien faite, peça bem feita, gênero caracterizado pelas construções cuidadosas e precisas em suas estruturas.

15 « Il est désormais tout acquis à ce genre dont il a singulièrement développé l’importance ». Disponível em

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duram uma noite inteira, suas comédias não recuam nem diante de pistolas, nem diante de soluços, nem diante das agonias. 16

Este período foi marcado principalmente pelas peças-tese de Alexandre Dumas Filho, que o Théâtre du Gymnase revelou ao público e à crítica. Assim como Scribe deixou sua marca na primeira fase do teatro, Alexandre Dumas Filho foi o autor ideal do Théâtre du Gymnase em sua nova fase.

Adolphe Lemoine Montigny foi um dos grandes diretores de teatro de seu tempo em Paris. Assumiu o Gymnase em junho de 1844, e enfrentou a tempestade da revolução de 1848. Sua esposa, Rose Chéri (1824-1861), foi sua companheira em tal empreitada. Passada a tormenta, o casal, coroado com o sucesso, desfrutou de um período mais calmo.

Antes de ser diretor de teatro, Montigny fora ator de comédia, atuando inclusive no Théâtre-Français. O ex-aluno da Universidade de Paris fez do Teatro Gymnase uma das primeiras cenas literárias de Paris, transformando-o no terceiro teatro francês. Lá, foram aplaudidas as melhores obras de grandes autores dramáticos, entre eles Alexandre Dumas Filho.

Não se pode falar da História do Gymnase sem mencionar Rose Chéri, que interpretou obras primas de Dumas Filho, entre elas Diane de Lys, Le fils naturel e, conforme depoimento de Dumas Filho citado abaixo na análise do prefácio, a baronesa Suzanne d’Ange em Le demi-monde. Um ar distinto e reservado tornou-se um marco de seu talento, e com ele conquistou seu lugar em meio a inúmeras e belas atrizes. Segundo Heylli (Cf. 1875, p. 104), poucas carreiras foram tão gloriosamente preenchidas como a sua. Seu nome está ligado a peças e papéis bem diferentes entre si: foi filha, esposa, mãe, e à medida em que avançava,

16

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fazia novas conquistas na arte.

Na próxima seção, algumas informações sobre o Théâtre-Français.

3.3 Théâtre-Français (Comédie-Française)

O Théâtre-Français foi criado em 1680 por um decreto real de Luís XIV, cujo objetivo era a unificação das companhias de teatro rivais: a do Hotel Guénégaud, herdeira de Molière, e a do Hotel da Borgonha, especializada em tragédia. Criou-se uma companhia única dos atores do rei, subvencionada por ele e detentora do monopólio da criação dramática em Paris. A denominação Comédie-française espalha-se para designar a privilegiada companhia de atores do rei, por oposição à escola italiana.

Com a revolução de 1789, a Comédie-Française perde seus privilégios: as subvenções são cortadas e o monopólio da criação dramática em Paris é quebrado. A liberdade dos teatros, proclamada em 1791, proporciona a concorrência e dissidências internas. Em 1804, os atores da Comédie assinam um novo contrato de sociedade, e, em 1806, Napoleão restabelece parcialmente o monopólio da criação dramática e reorganiza os teatros de Paris.

A partir de 1831, a Comédie-Française passa à tutela do Ministério do Interior, e neste momento há um aumento na subvenção. Em 1833, os atores da Comédie deixam a gestão de seus negócios a cargo de um “diretor-gerente”, e sofrem com a concorrência dos teatros de Boulevard. 17

Se, no final do século XVIII, a cena foi tomada por Talma18, Rachel (1820-1858)

17 Denominação dada ao gênero popular desenvolvido nos teatros localizados no Boulevard du Temple,

apelidado de Boulevard du Crime devido ao grande número de incidentes criminosos nas peças representadas, entre as quais o tipo de espetáculo predominante é o melodrama.

18 François-Joseph Talma (1763-1826) foi o mais celebrado ator francês de sua época, tendo sido amigo pessoal

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domina o século XIX. Sua atuação ressuscita o interesse do público pela tragédia clássica, e seu sucesso garantir-lhe-á uma posição privilegiada dentro da companhia. É este interesse predominante pela tragédia e o “reinado despótico” de Rachel que caracterizam a Comédie-française e seu público, e a eles Alexandre Dumas Filho atribui sua recusa ao convite para a estréia da peça Le demi-monde neste teatro.

A segunda metade do século XIX assiste à implantação da figura do administrador do Théâtre-français, fato que vai modificar sensivelmente seu funcionamento. O administrador é nomeado pelo governo, e a ele cabe a escolha da programação. E é assim que o teatro naturalista e a comédia burguesa se impõem ao repertório da Comédie-française.

3.4 Prefácio da peça Le demi-monde – A opção pelo Théâtre du Gymnase

Alexandre Dumas Filho inicia o prefácio da peça Le demi-monde contando como teve a idéia de escrevê-la. Narra como conheceu o demi-monde, e então se entende por que seu teatro é tido como realista: nas situações por ele narradas e nas pessoas por ele descritas e ditas freqüentadoras deste nicho social, reconhece-se imediatamente cada uma das personagens que “criou” (ou copiou) para a peça.

Realidade muito peculiar da cidade de Paris do século XIX e por isso de difícil tradução atualmente, o demi-monde, para Dumas Filho, se refere, conforme definição dada no prefácio da obra, a uma “classe de [mulheres] desclassificadas”, definição esta que o autor distingue da “multidão das cortesãs” (DUMAS FILS, 1898, p. 11). 19 Trata-se de uma redefinição do demi-monde, com a qual Dumas Filho pretende estabelecer o verbete para os dicionários futuros. Segundo ele, “Não pertence ao demi-monde quem quer. É preciso mostrar seu valor para ser

19 « Le demi-monde ne représente pas comme on l'imprime, la cohue des courtisanes, mais la classe des

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admitida” (DUMAS FILS, 1898, p. 11). 20 Ou seja: é um mundo composto por mulheres cujas raízes estão na “sociedade regular”, mas que resolveram desertar, sobretudo em nome de um amor questionável. Mas é um mundo que também acolhe jovens que começaram a vida por uma falta (como uma gravidez indesejada, por exemplo). Dumas Filho admite que os “diferentes mundos se mesclaram nas últimas oscilações do planeta social”, e teme que as “inoculações perniciosas” resultantes deste contato se generalizem, que sua definição seja para as gerações futuras descendentes nada mais do que um “detalhe puramente arqueológico”, e que eles confundam “o alto, o meio e o baixo” (DUMAS FILS, 1898, p. 12). 21 Seu temor se tornou realidade...

Após este panorama sobre o significado do demi-monde, o autor envereda pelas questões políticas e administrativas que envolvem a peça. Comenta que tão logo terminou de escrever um ato da peça, foi procurado pelo ministro da Casa do imperador e das belas-artes, o Senhor Fould (1800-1867), que o questionou sobre seu trabalho. Face à resposta de que escrevia uma comédia em cinco atos para o Gymnase, o ministro perguntou se seria possível reduzi-la a três atos, e como obteve não como resposta, anunciou que a peça certamente seria encenada no Théâtre-français, uma vez que a administração havia decidido, na véspera, que o Gymnase e outros teatros de gênero não poderiam representar obras com mais de três atos. Fould acrescentou que esta decisão fora tomada, sobretudo, para forçá-lo a ir ao teatro para o qual o chamava seu talento (Cf. DUMAS FILS, 1898, p. 13).

Segundo Dumas Filho, por mais lisonjeado que tenha ficado com a proposta, achou por bem não aceitar, pelas seguintes razões: já tinha firmado compromisso com o diretor do Gymnase, Montigny; já havia prometido um papel à atriz Rose Chéri; enfim, desejava ter o

20 « N’est pas du demi-monde qui veut. Il faut avoir fait ses preuves pour y être admise ».

21 « Malgré tout, il ne faut pas nier que les différents mondes se sont mêlés si souvent dans les dernières

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direito de escrever para o teatro que lhe convinha (Cf. DUMAS FILS, 1898, p. 13). E são as razões que ele vai enumerar que nos importam do ponto de vista histórico, caracterizando o contexto de enunciação da peça e o posicionamento do autor no campo literário.

Fould ofereceu a Dumas Filho as mesmas vantagens que teria no Gymnase: sua peça seria recebida sem leitura prévia e sem passar pelo comitê de análise, teria compensações financeiras equivalentes às que teria no Gymnase, teria os melhores atores e os ensaios não durariam mais de seis semanas, começando oito dias após a entrega dos cinco atos. Quanto ao tema da peça, assunto que mais preocupava Dumas Filho no que se referia à troca de teatros, uma vez que chocaria as tradições da grande cena trágica do Théâtre-français, revelou-se a razão principal para o convite ao autor: a intenção era violar as tradições e sacudir o público, que começava a se entediar.

Ainda utilizando as palavras de Dumas Filho, naquele momento:

A senhorita Rachel, cujo talento ninguém admira mais do que eu, reinava despoticamente, como reinam todos os artistas de valor excepcional”, e “excluía assim a literatura contemporânea, que, mesmo que fosse inferior àquela do século XVII, tinha o direito de viver e espalhava-se então nos teatros de gênero, à frente dos quais estava o Gymnase [...] (DUMAS FILS, 1898, p. 15). 22

Dumas Filho pontua, aqui, a diferença de repertório dos teatros Gymnase e Comédie, e implicitamente faz a distinção do público de cada um deles. Segundo Mello, no espaço-histórico romântico francês – leia-se romântico como moderno, englobando os séculos XIX e XX 23 -

o clássico se oferece como um amplo espectro de memória cultural comum a certos grupos sociais detentores de traços de distinção (capital cultural), para operar como

22 « Mademoiselle Rachel, dont personne plus que moi n’a admiré le talent, régnait alors despotiquement,

comme règnent tous les artistes d’une valeur exceptionnelle. [...] Elle excluait ainsi la littérature contemporaine, qui, si inférieure qu’elle fût à celle du XVIIe siècle, avait le droit de vivre cependant et se répandait alors dans les théâtres de genre, à la tête desquels le Gymnase s’était placé [...] ».

23 “Periodização de história geral proposta por Foucault, em As palavras e as coisas (1966), que definia uma

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um contraponto a um novo universo de temas, gêneros, suportes de publicação e modos de circulação e avaliação. (MELLO, 2006, p. 42).

O clássico, então, está ligado à detenção de capital cultural específico, ou seja, de qualificações intelectuais específicas, associadas a uma formação na cultura das humanidades, e, no âmbito teatral, está associado à tragédia. É este o público que vai assistir as tragédias encenadas por Rachel no Théâtre-Français, ao passo que o Théâtre du Gymnase está associado a este “novo universo de temas e gêneros” supracitados, envolvendo o drama burguês, o melodrama e a comédia de costumes.

Segundo Dumas Filho, Rachel era ao mesmo tempo o sucesso e a ruína, a vida e a morte do teatro, pois quando ela não estava em cena o público se dirigia a outros teatros. Este foi o motivo pelo qual o administrador do Théâtre-français, segundo Dumas um “homem de gosto e de iniciativa”, para encontrar equilíbrio e fazer um contraponto à individualidade de Rachel, procurou obter talentos jovens, e, dentro deste programa, Dumas Filho e seus “quadros indecentes” tornaram-se “objetos de primeira necessidade” (Cf. DUMAS FILS, 1898, p. 13). Daí a resistência de Dumas: por considerar a peça Le demi-monde um trabalho que determinaria sua posição na carreira, desejava então travar sua batalha em terreno conhecido e favorável: o Théâtre du Gymnase...

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Le demi-monde foi tida como “impossível, mais perigosa e ainda mais brutal que as duas anteriores, repleta de monstruosidades” e, segundo o autor, após várias leituras secretas, sendo uma diante de Suas Majestades, foi considerado que o tema da peça, “o meio no qual se desenvolvia, a forma como foi escrita, eram incompatíveis com o palco mais importante do mundo” (DUMAS FILS, 1898, p. 19). 24 Como recompensa, foi autorizado a voltar ao Gymnase, onde fora restabelecido o direito de representar obras de cinco atos.

Observa-se que as características e as políticas do Théâtre du Gymnase e do Théâtre-français anteriormente expostas, com base em documentos das próprias instituições 25, são citadas neste depoimento de Dumas Filho. A organização em uma companhia única de teatro na Comédie-Française, a hegemonia de Rachel neste teatro, a liberação do Théâtre du Gymnase para peças de mais de três atos, a figura do administrador do teatro e seu poder de decisão sobre a programação, o repertório do Gymnase e a guinada em direção ao drama burguês – para o qual Dumas Filho foi considerado ideal... Todas estas questões estão presentes no prefácio da peça, prefácio este que é utilizado pelo autor para legitimar sua enunciação.

24 “[...] ma pièce était impossible, plus dangereuse, plus brutale encore que les deux autres, toute pleine de

monstruosités. On me laissa entendre, après plusieurs lectures secrètes, dont une même eut lieu à Saint-Cloud, devant Leurs Majestés, que le sujet de ma comédie nouvelle, le millieu où elle se développait, la forme dans laquelle elle était écrite, étaient incompatibles avec la première scène du monde »

25 O portal oficial do Théâtre du Gymnase na internet (http://www.theatredugymnase.com), e a edição

comemorativa da criação do Studio-Théâtre, terceira construção componente da Comédie-Française, da revista

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4ETHOSEHABITUS:ARTDEVIVREBURGUÊS

Se definirmos o ethos como uma imagem de si projetada pelo enunciador, veremos que Dumas Filho lança mão deste recurso da retórica aplicada à análise do discurso a fim de demonstrar quem é e a quem seu teatro se destina. Servindo-se de suas personagens como porta-vozes de seu próprio discurso, o autor se aproxima de seu público alvo ao representar em cena problemas, costumes e estilo de vida que concernem a burguesia parisiense do Segundo Império.

Com pobres didascálias iniciais, que não fornecem indicações de cenário – figurino, iluminação -, são as didascálias expressivas, ou seja, aquelas que guiam a interpretação precisando tom, sentimento e pantomima, e principalmente os diálogos pseudo-descritivos26 as ferramentas utilizadas por Dumas Filho para atingir o público. Tudo isto faz de suas personagens o centro da mise en scène e, consequentemente, de sua cenografia enunciativa: é por meio das personagens, com seus diálogos, que o texto chega até o leitor/espectador, ou seja, ao co-enunciador, em primeiro lugar; são eles os responsáveis pela definição de espaço (topografia) e tempo (cronografia) a partir dos quais se desenvolve a enunciação. 27

Esta imagem de si, construída para garantir o sucesso do empreendimento oratório, é o que os filósofos antigos chamavam de ethos. Conforme mostra Amossy, na introdução do livro Imagens de si no discurso: a construção do ethos, do qual é organizadora (Cf. AMOSSY, 2008, p. 10), o ethos é a peça principal da máquina retórica e está fortemente ligado à enunciação, sendo resgatado pela Análise do Discurso e pela Pragmática Moderna, interessados na compreensão dos artifícios empregados pelos locutores para tornar o discurso

26 Segundo Rullier-Theuret, por vezes fala-se em “didascálias internas”, termo que amplia sobremaneira a noção

de didascália (tudo poderia ser considerado didascália) e afasta-se da definição inicial: “O termo didascálias (do grego didascalia, “indicações dadas ao ator pelo poeta dramático”), é mais englobante que a expressão “indicações cênicas”, pois designa a parte do texto escrito que não é pronunciado pelos personagens: indicações de nomes, de estruturação (ato, cena), de cenário ou de gestos”. RULLIER-THEURET, 2003, p. 7 -16.

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eficaz.

A interação entre enunciador e co-enunciador se dá por meio da imagem que fazem um do outro, como em um jogo de espelhos. É a imagem que o enunciador faz de seu público, com as ideias e reações que dele espera, que irá guiar seu discurso. Na outra ponta da cadeia de comunicação, o co-enunciador ou interlocutor também faz uma imagem do enunciador, a partir do ethos projetado por este.

Ambas as imagens construídas (a imagem que o enunciador faz de seu co-enunciador e vice-versa) são guiadas por um saber prévio, chamado de ethos prévio ou pré-discursivo. Esta ideia prévia que se faz do enunciador está relacionada à estereotipagem, ou seja, ao pensar o real por meio de uma representação social preexistente, um esquema coletivo cristalizado (Cf. AMOSSY, 2008, p. 125). Desta forma, o enunciador frequentemente adapta sua apresentação de si às representações sociais que ele crê interiorizadas e valorizadas por seu público alvo. Se tomarmos como premissa a seguinte afirmativa de Maingueneau, “mesmo que o destinatário nada saiba antes do ethos do locutor, o simples fato de um texto estar ligado a um dado gênero do discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas no tocante ao ethos” (MAINGUENEAU, 2006, p. 269), e adaptarmo-la ao teatro de Alexandre Dumas Filho, faremos uma associação com o Théâtre du Gymnase e seu público: ao escolher este teatro para a encenação da peça, palco por excelência do drama moral burguês, Dumas Filho se posiciona no campo literário e explicita sua relação com seu público alvo. Da mesma forma, ao eleger este teatro, o público já sabe o que esperar dele, já carrega suas expectativas em relação ao ethos do locutor.

Referências

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