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Cenários da pesquisa – Sítio de Santa Cruz, cidade de Vera Cruz, RN.

Da mistura sincrética, temos santos católicos, temos rezas católicas, mas têm também imagens de caboclos, de índios, têm emplastos com ervas africanas, tem pedido sendo feito a algum orixá protetor. É um caldeirão de sabores, de cheiros, de plantas, de orações. Não se recebe dinheiro pela graça alcançada, é palavra de Deus e palavra de Deus não se cobra. Mas

o ritual pode ser mantido pelas trocas como forma de pagamento que permanece da tradição do ambiente rural. Utilizam elementos naturais como a água, o fogo, a vegetação, esses elementos desempenham a função do restabelecimento do equilíbrio do corpo e da vida do paciente, religam o homem com as forças da natureza. Da tesoura usada no ritual para cortar simbolicamente o mal, da planta popularmente conhecida como “vassourinha doce”, no simbolismo da benzedura, varrem-se as energias ruins que envolvem o doente. Há harmonia entre o homem, a natureza e a cultura, novamente, o espaço triangular para a eficácia do ato ritual.

Compreender a benzeção é penetrar na sua essência, é buscar o significado da sua prática social, entendendo de que modo esse lado da cultura popular, tão fragmentado, hostilizado, rejeitado e marginalizado, é recriado com força e autonomia. É buscar uma significação extraída de relações sociais definidas, que trazem consigo uma concepção de mundo, da benzedeira com o seu cliente, com o seu ofício, com a sua vida cotidiana. (OLIVEIRA, 1985, p. 70).

De todas essas ações, símbolos, ritos, corpos proliferam minhas situações e criações em cena. Que buscam um diferencial no trabalho em dança ao dialogar minhas vivências e memórias com esse espaço popular brasileiro. Espaço que podemos falar e dançar as muitas vidas dentro de nós, acolá, ancestral, particular e de todos. Que busca uma organicidade de movimento das imagens vistas, sentidas e vividas. Dessa proliferação de formas, o intuito, não é discutir valores sincréticos, representações sociais, mas despertar os gestos adormecidos, os ritos, os objetos para a cena, já modificados pelo percurso interior. Coando as partes, transpassando para os meus processos técnicos, poéticos, artísticos, na procura de uma estética orgânica, não a reprodução do visto, mas transcendê-lo ao buscar o meu corpo nessa investida.

Essa enciclopédia de saberes milenares corre o risco de se perder pelo ar, a menos que registros da oralidade se propaguem por gerações seguidas ou que algum apreciador dessas cosmologias de ideias as eternize por meio das palavras escritas (ALMEIDA, 2010, p. 51).

A pesquisa pode dar continuidade à construção desse saber via movimento poético na dança, das metamorfoses do meu corpo ao se alimentar com os elementos do universo da benzeção para a criação artística. Ainda durante a pesquisa de campo, a investigação começa a voltar-se para o meu fazer artístico, embebido por essas formas de viver. Na peleja de querer parar e querer continuar suas práticas, de oposições, das tensões que mostram o sentido de

existir dessas benzeduras, desafiando as leis, as opiniões, as estruturas, a medicina oficial. Benzedeiras e benzedores desafiam as memórias e a sociedade contemporânea, para muitos, essas práticas ficam lá nas lembranças de infância, nesse mundo, com a medicina tão avançada, como poderia ainda essas práticas continuar a ser buscadas?

Mas os benzimentos resistem, teimam...

As práticas de benzimentos são atos de fé, e o meu papel de artista-pesquisadora, nesses espaços, é absorver a força dramática, os valores, os ritos e reinterpretá-los poeticamente no fazer artístico do âmbito da criação cênica. Para que os movimentos proliferem situações sensíveis e poéticas no todo. Para que essa cultura do povo passe a ser olhada, mais do que pertencente a nossa sociedade, vista como possuidora de saberes próprios. Os valores sincréticos, nesse momento, apesar de apropriados e ressignificados ganham uma nova tonalidade e textura no meu entendimento artístico contemporâneo. Meu papel como artista-questionadora é propor olhares diversos sobre inspirações diversas que tomam meus processos de criação. Questionar sobre nossa identidade, sobre nossos fazeres e atuações, sobre nossos meios de comunicação e nossos padrões sociais e monetários que nos rotulam, nessa pesquisa, através da imersão no campo popular, das memórias de nosso povo que, muitas vezes, são deixadas de lado.

Sou uma artista-pesquisadora do mundo contemporâneo, onde, cada vez mais, as redes de comunicação estão “mais midiáticas, via satélite e menos pulsação cardíaca, corpo físico. Essa transmutação da comunicação nos faz interrogarmos sobre nossos viveres na contemporaneidade, não estática, questionando a nossa atualidade” (ÁVILA, 2007, p.17). Sabemos que há uma grande diversidade cultural em nosso país, porém são poucos os que conhecem as histórias dessas “Todas as vidas”. Faz-se necessária uma produção crítica e reflexiva sobre essa parcela da população participante na formação da sociedade brasileira, transmissora de valores e cultura.

Meu papel como artista-pesquisadora é de vivenciar esses locais, observando aspectos de espaço, tempo, rotina, fazeres, objetos que compõem todo esse cenário popular. Observar e, um pouco, vivenciar com meu corpo também, as ações, posturas, falas, histórias contadas e encantadas, principalmente, da conversa ao acaso, sem grandes roteiros e fórmulas. Acredito que a conversa espontânea, não aquelas entrevistas formatadas e pré-estabelecidas, dialogam mais livremente e mais intensamente com o que esse trabalho investiga.

O corpo de estudo dessa pesquisa tem seu tempo particular para se sentir a vontade com outro corpo que “invade” seu espaço de trabalho. O estreitamento dos laços entre pesquisador e pesquisado busca aquela conversa de fundos de quintal, de varanda de casa, do

cair da noite. Uma artista-pesquisadora aberta e atenta aos acontecimentos ao seu redor, aos imprevistos, aos materiais residuais e pequenos. Uma artista-pesquisadora que encontra as possibilidades de potência para a sua arte durante as investidas em campo, encontrando brechas e espaços para um diálogo enriquecedor, orgânico e natural para se atuar. Improvisando em cena, encontrando o momento certo para se colocar, perguntar por algo, calar e, muitas vezes, apenas olhar e silenciar. Quem sabe posso coadunar com as ideias de Bohm e Peat. Para os autores:

O que é necessário é que cada pessoa seja capaz de sustentar vários pontos de vista, numa espécie de suspensão ativa, enquanto confere às ideais dos outros um pouco de carinho e atenção que dá às suas próprias (BOHM e PEAT, 1989 apud ALMEIDA, 2010, p.81).

Como forma de investigar e interpretar esse mundo, nossas relações, nossa ancestralidade, o passado que, quem sabe, nos revela o presente, o futuro da sociedade, a nossa identidade. Um conhecimento que não está na ciência oficial, dessa forma, ela nos propõe outro tipo de conhecimento que reinventa e apresenta uma sociedade diversificada de escolhas, faces e atuações.

Meu papel nos espaços da reza, convivendo com o corpo-oração, foi buscar um olhar atento, minucioso, para nossas/os médicas/os populares que curam com os gestos, com o semblante, com o olhar, com as mãos, com as rezas imperceptíveis, ininteligíveis. Abri meu corpo, minhas percepções e minha sensibilidade para uma troca corporal com o outro. As benzeções que conciliam os opostos e unifica o que estava fragmentado, unificou também as minhas partes, entrelaçou o que parecia diferente. Ligou e conectou um saber do povo com o olhar atento de uma artista-pesquisadora, um rizoma que se desprendeu de suas formas e gerou uma nova raiz pulsante de movimento. Foi a minha cura. Coloquei-me como artista andarilha nessas estradas de chão de terra através da construção possível em dança.

CAPÍTULO II - Fios do rosário - o caminho do processo artístico

Existe uma espécie de fronteira aquém da qual é preciso estar para simpatizar com o mito, e além da qual é preciso estar para estudá-la. Temos a sorte de viver perto dessa faixa fronteiriça e de poder passar e repassá-la à vontade – Victor Turner