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Eu e minha irmã, Tatiana Bazzo Rodrigues – Maio/1988.

Nasci numa cidade que tem como nome tupi o significado “lugar onde o peixe para”. Piracicaba, berço de uma cultura popular, é cortada por um rio que a atravessa ora silenciosamente, ora intempestivamente, e a domina em tempos de chuva pela beleza e força do seu véu de noiva, presente na vista daqueles que se aportam em suas margens. Foi da viola caipira, do cururu, do batuque de umbigada, do samba de lenço, da pamonha, da Festa do Divino Espírito Santo, da garapa que meu corpo extraiu o caldo. Ainda pequena, seguia as batucadas dos sambas, ia atrás do som das percussões, motivo esse pelo qual me perdi várias vezes dos meus pais. Interesse infantil de investigar os corpos, os sons e cheiros nas feiras quando mamãe me levava. Alguma coisa me atraia naquelas vozes exaltadas, necessárias para chamar a freguesia.

Adentrar as memórias de infância nessa dissertação possui um peso estruturante. Como não deixar esses retalhos se entrelaçarem com as memórias de agora, dessa pesquisa que traz como foco de discussão o olhar para um corpo guiado pelas lembranças? Lembranças que produzem outras memórias ao juntar com o que é do outro e passa a ser nosso quando o absorvemos, e as nossas lembranças se juntam às semelhanças que provocam no outro.

No meu inventário tem uma criança curiosa pelos contos dos mais velhos, que deixava de lado as brincadeiras com os primos para sentar no chão da varanda e escutar todos os causos antigos da minha família, desde pequena me interessava pelos mistérios que envolviam

as coisas do passado. Aos poucos, fui respeitando essas histórias e sentindo como era viver naquele tempo, como o tempo da minha bisavó, que nasceu dentro do navio que trazia os italianos para o Brasil. Sobre isso me perguntava: qual a nacionalidade dela? A do mar?

Meu imaginário infantil percorreu livremente esses espaços e temporalidades, me encontrava, na minha imaginação, com minha bisavó, fui criando uma imagem de mulheres fortes na família. Minha tia, por parte de papai, me contou que minha bisavó não gostava de criança na cozinha, e que levavam colherada na cabeça, caso alguma se atrevesse a entrar para se lambuzar com a panela de doce que sempre havia no fogão. Na sua saia rodada, lá estava a chave da despensa das comidas. Quem mandava na cozinha e na alimentação de toda a família era a bisa, regrando e inventando receitas, quando a fartura não habitava àquela casa.

Foram muitos os pesadelos e foram muitos os carinhos de mamãe para esquecê-los. Estava tudo dentro de mim, hoje apenas as partes se entrelaçam para dar expressividade e potencializar o que esse corpo já carrega. Impossível ignorá-lo há tantas vivências e vidas dentro dele, mesmo quando o processo artístico propõe olhar para outro corpo, sou eu que vou dançar todas essas relações possíveis. Então, é preciso reconhecê-lo.

Eu? Crescida no sítio de vovó Tica, espaço mágico dos causos familiares. Na casa da minha vó tinha almoço de família servido na enorme mesa de madeira na varanda, com o banco único, que ora um puxava mais pra frente de um canto e o outro era obrigado a ir também, era risada na certa. Tinha sempre algum cachorro querendo roubar o frango caipira da mesa e tinha várias crianças lambuzadas. E lá íamos eu e meus primos, desbravarmos o sítio que nas minhas lembranças de infância, parecia ser tão grande no nosso olhar de criança. Rompíamos as barreiras de nosso mundo infantil ao pularmos a cerca, adentrávamos, assim, ao nosso imaginário e fantasia. E quanto arranharmos a perna no arame farpado, e quanto fugir de galinha choca, pois adorávamos roubar seus ovos. Nos finais de tarde, tia Luci e tia Ebe sempre levavam a gente para andar na estrada, e lá íamos nós, andávamos pela estrada de chão quente, sem chinelo, só para sentir a verdadeira marca da terra. Nossas brincadeiras de pega-pega eram sempre no pasto, tínhamos que correr muito, pois logo atrás de nós vinha uma vaca protegendo seu bezerro ou aquele touro que não tinha ido com nossa cara. Eram manga e jabuticaba pegas no pé, era balanço feito de galho da árvore. Era doce, de tia, misturado com terra, não dava tempo de limpar a mão. Era brincadeira de gato mia à noite, era polícia e ladrão de dia. Era final de tarde de domingo com tia estendendo um lençol velho na grama, aninhando em sua volta seus sobrinhos, onde lá permanecíamos escutando suas histórias.

Assim são minhas lembranças bulindo na chaminé, transbordando de contos e encantos do tempo de vovó com seu café da manhã que nunca faltava a famosa polenta com leite. Vovó Tica tão forte, tão humana, tão mãe e pai, fortalecendo seus nove filhos e mais um bando de netos que vieram. Esses fatos formam uma colcha de retalhos multicolorida, cheirando a lembranças que ficaram guardadas dentro do baú, mas que constantemente são revisitadas pelas viagens infindáveis da minha imaginação. Estava sempre “xeretando” as caixinhas de coisas antigas de mamãe, criando outras possibilidades para elas. Aprendi a cantar ‘Pombinha branca’, ‘Alecrim dourado’ e outras cantigas infantis, no colo de papai, nas manhãs de domingos sonolentos, e ainda hoje trago essas cantigas em minhas andanças. E quanto eu respondia a papai e mamãe [...] Cadê o toucinho que tava aqui? O gato comeu. Cadê o gato? Tá no telhado. Cadê o telhado? O fogo queimou. Cadê o fogo? A água apagou [...].

Sou caipira, sou bisneta de negros escravos, aprendi a dançar “Brasileirinho” nas sapatilhas de ponta. Vivi no sítio da família, pulei no rio Piracicaba, bebi água da bica, andei descalça pelas estradas da fazenda, cai muito de cavalo, aprendi muito sobre esse modo de vida. Escutei, com respeito, às histórias de meus pais, tios e avós sobre a dificuldade que foi tempos anteriores. Às vezes, não tinha o que comer, não tinha lugar onde dormir, meus avós juntavam um pouquinho de palha e um pano em cima, e era ali mesmo que se dormia.

E como adorava escutar as histórias de tempos antigos sobre coisas que aconteciam que não tinham explicação. Sobre a aparição de uma bola de fogo que vinha vindo de longe e a briga entre meus tios e tias para conseguir entrar na casa, quando seguros, viram-na passar pela janela. Das crinas dos cavalos que amanheciam trançadas. Da história tão famosa de um cachorro branco e enorme que apareceu do nada na frente de minha mãe e minhas tias que voltavam de madrugada de uma festa, cruzou à frente delas e sumiu. O mesmo cachorro apareceu e desapareceu, da mesma forma, para meu tio, anos depois. Ouvi falar também da falta de comida, como lembra papai, os mais velhos penduravam na frente das crianças um pedaço de linguiça ainda para secar, seu cheiro tomava conta do espaço e despertava o estômago adormecido delas. Mas não se podia comê-la à frente só tinha polenta. A linguiça servia só para aguçar a fome.