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3. An sit? Quid sit? Quale sit?

3.7 Sobre a cena

Se o figurino-penetrante estabelece novos procedimentos e entendimentos da cena, também se torna mister notar as mudanças na postura de todos os profissionais envolvidos no seu fazer. Não se trata de por em julgamento os modos de formação, tampouco gerar um padrão determinado, como a criar uma categoria especializada. Antes o contrário. A inten- ção de observar tais mudanças vem no sentido de contemplar novas estratégias, alargando os campos já existentes, levando-se em consideração que as artes cênicas estão sempre em zo- nas de contaminação.

Dos aspectos mais característicos da cena contemporânea elencados por Lorenzini, relembro que o cruzamento entre textos dramatúrgicos e não-dramatúrgicos, o status limiar dos personagens, o sensorial e o poli-sensorial em conjugação com o texto dramático, a cena

em abismo pelo uso de novas tecnologias e as questões do ominoso são também aspectos a

serem destacados nas proposições que se utilizam do figurino-penetrante. No entanto, um fator determinante para esta ocorrência parece ser a tendência de se partir de processos cola- borativos. E para a utilização do figurino-penetrante como topos de criação, os processos colaborativos tornam-se a base imprescindível.

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Em “Do coletivo ao colaborativo: a tradição do grupo no teatro brasileiro contempo- râneo”, Silvana Garcia37 faz um retrospectiva, indicando as transformações mais significati-

vas entre as gerações que compreendem o período de 1970 a 2010. Estas transformações levariam dos processos chamados “coletivos” aos processos “colaborativos”.

Ainda nos processos coletivos (durante toda a década de 1970), segundo a autora, há

a disposição de anular as hierarquias internas, que anteriormente ocupavam parte dos pro-

cessos. Porém, essa anulação se dá de forma radical, dissolvendo as especialidades técnicas, e indicando a necessidade de marcar diferença com relação ao modo dominante de produ-

ção e criação38. Ou seja, todo o grupo assume as diversas funções, apagando os limites da

autoria. Comumente, em quase todos os dados da ficha técnica se vê: criação coletiva. Garcia aponta que o suporte da heterogeneidade dos integrantes do grupo se faz por uma espécie de regulamento interno de um conhecimento comum, uma base de informações

e noções partilhadas por todos39. A prática da coletividade tenta abarcar a individualidade,

mas as negociações são necessárias em torno de um núcleo comum.

Sobre a terminologia “teatro colaborativo”, vinda em substituição à “criação coleti- va” nos anos de 1990, a autora mostra que a diferença se marca, sobretudo, pela não anula- ção das especialidades. Cada integrante permanece no exercício de suas funções, bem de- terminadas, privilegiando a construção da cena que se pauta nas discussões, e em participa- ções efetivas durante todo o processo de criação. Além disso, Garcia comenta a possibilida- de, neste procedimento, de parcerias não estáveis, buscando os ajustes necessários a cada trabalho.

Luiz Fernando Ramos, ao abordar este mesmo assunto, fala do pressuposto de inves- tigação artística aberta contida no cerne dos processos colaborativos, não havendo de início um ponto de chegada definido, tampouco dos procedimentos a serem utilizados. E acrescen- ta sobre a participação dos integrantes: A relação não hierárquica entre os criadores, e a

noção de saberes especializados se friccionando e contrapondo, para que obtenham um resultado final satisfatório, sugere menos a busca de um método a ser buscado obsessiva- mente, e mais a composição de procedimentos, muitas vezes estranhos entre si, na combina- ção de novos resultados possíveis pela combinação inédita dos mesmos40.

37 GARCIA, Silvana. Cf: DIAZ, Henrique; OLINTO, Marcelo (Org). Na companhia dos atores. Rio de

Janeiro: Aeroplano, 2006, p. 121.

38 GARCIA, ibdem, p. 221. 39 GARCIA, ibdem, p. 222.

40 RAMOS, Luiz Fernando. “Criação Coletiva entre Coletivos: um olhar desde a universidade”. In: Sub-

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Mas Antônio Araújo traça uma definição que agrupa as observações de Garcia e de Ramos sobre a dinâmica dos processos colaborativos: se fôssemos defini-la sucintamente,

constitui-se numa metodologia de criação em que todos os integrantes, a partir de suas fun- ções artísticas específicas, tem igual espaço propositivo, trabalhando sem hierarquias – ou com hierarquias móveis, a depender do momento do processo – e produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos41.

Estas diferenciações entre a criação coletiva e a criação colaborativa interessam para esta pesquisa por auxiliarem na compreensão dos processos que aceitam o figurino- penetrante como um dispositivo inicial da cena. Uma condição apresentada como funda- mental nas proposições acima descritas respeita à forma como o profissional figurinista par- ticipa de todo o processo.

Primeiramente, nem sempre será ele, figurinista, o responsável pela criação do figu- rino. Por vezes, o atuante parte de experimentos que surgem na sua prática individual, e em outras, descobre aos poucos as matérias que melhor dialogam com o pretendido naquela situação. Ou mesmo, a sugestão pode vir de qualquer outro profissional envolvido. Fressato, por exemplo, esclarece que este tempo de dedicação à pesquisa do figurino-congelante trouxe conhecimentos ligados à junção da água a outros materiais. Com o passar do tempo, adquiriu uma técnica específica para confeccionar os tamancos de gelo, seguindo suas pró- prias necessidades como atuante.

Depois, quase sempre o figurino-penetrante exige conhecimentos que extrapolam as áreas de atuação do figurinista, sendo necessária a intervenção de profissionais até de áreas não artísticas. Os figurinos que se utilizam dos recursos tecnológicos, a exemplo de Mar- cel.li Antunez, geralmente são executados, ou mesmo criados, por profissionais tanto da informática quanto da física e da medicina.

Mesmo que o figurinista não venha a ser o criador e o executor do figurino- penetrante, sua presença se faz necessária já no início do processo, como um acompanhador de todas as mudanças, sempre pronto a debater. Deste modo, pode ser uma espécie de con- sultor ou de organizador. Ou seja, não há um lugar estabelecido para o profissional figurinis- ta, do ponto de vista da criação e execução.

Na montagem de Pecinhas para uma tecnologia do afeto, foram convidas as figuri- nistas Fabiana Pescara e Renata Skrobot para a criação dos figurinos. Em alguns dos nove textos apresentados, elas tiveram oportunidade de cumprir a função do modo mais recorren-

41 ARAÚJO, Antônio. “O processo colaborativo no Teatro da Vertigem”. In: Sala Preta Revista de Artes

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te: criaram e confeccionaram os figurinos. Contudo, com relação à proposição de Fressato, as figurinistas serviam como organizadoras e condutoras das visualidades trazidas para a cena.

Talvez se possa dizer se possa fazer coro à palavras de Araújo sobre o pretendido em relação ao profissional figurinista: Pretendíamos garantir e estimular a participação de ca-

da uma das pessoas do grupo, não apenas na criação material da obra, mas igualmente na reflexão críticas sobre as escolhas estéticas e os posicionamentos ideológicos. (...) Deverí- amos assumir também o papel de artistas-pensadores, tanto dos caminhos metodológicos quanto do sentido geral do espetáculo42.

Mas se há uma reavaliação da postura do profissional figurinista, o mesmo ocorre em relação aos demais profissionais. Garcia comenta que a base do teatro de criação coletiva era o ator, e que esta base permanece sólida na criação colaborativa. Para o figurino-penetrante este parece ser um quesito condicionante. Principalmente, por ser o corpo-atuante o objeto de relação, com seus dados biográficos e com os estados diferenciados.

Quando Lorenzini aponta para o cruzamento de textos dramatúrgicos e não- dramatúrgicos na cena contemporânea, também aponta para a conjunção entre o profissional responsável pelo texto e os demais participantes. O figurino-penetrante pode partir de um texto pré-elaborado, como pode ser o desencadeador do texto, sendo necessário a colabora- ção do atuante, do dramaturgo e da figurinista.

Araújo discorre sobre o problema da polivalência de funções como sendo um pano de fundo nos discursos das criações coletivas, sem se efetivarem na prática. Aqui, não se pretende a polivalência, mas a interação entre as mais diversas áreas, e nos casos em que os profissionais acabam abarcando questões além das de seu alcance, o processo se dá por con- tágios e co-autorias. Privilegia-se exatamente as qualidades de cada participante.

No entanto, se não é difícil encontrar acomodação do figurino-penetrante nos proces- sos colaborativos, um quesito da criação coletiva parece ser revisitado: certo escape às espe- cialidades, sendo viável uma combinação da criação coletiva com a colaborativa.

De todo modo, a contribuição que o figurino-penetrante oferece é a tentativa de colo- car o elemento figurino como topos para a criação, desestabilizando um aspecto, grande par- te das vezes, intacto: o figurino em relação com o corpo. E, em função disto, a não- representação do corpo-outrem.

42 ARAÚJO, ibdem, p. 128.

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Vale lembrar ainda que os processos que se utilizam do figurino-penetrante recorrem a diferentes formas, podendo ser apenas um impulsionador, ou sendo levado para a cena como recurso para a presentificação do corpo. O estudo apresentado sobre os figurinos- congelantes de Leonardo Fressato mostram um percurso iniciado com o uso do figurino- topos, depois como metáfora, para então ser integrado à cena como um fator que exigia ajus- tes do corpo. Já o trajeto percorrido por Frank Händeler é adverso. Händeler iniciou suas experiências com os pregadores de roupa na montagem de dança Earthlinks (2003), em Amsterdã, numa parceria com Diane Elshout, também bailarina, Felix de Rooy assinando a dramaturgia, e Dorine van Ijssedijk na função de figurinista. A utilização dos pregadores ocorria apenas numa cena curta, como uma performance dentro do espetáculo. Mais tarde, Händeler passou a experenciar os pregadores em proposições solos, criando uma dramatur- gia específica para estes experimentos.

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