• Nenhum resultado encontrado

Publicado pela primeira vez em 1964, o livro Os meios de comunicação como exten-

são do homem, de Marshall McLuhan, significou um passo adiantado na compreensão de

que o corpo humano é híbrido e suas percepções se mediam pelas diferentes matérias que o cobrem, que o vestem, que o circundam. O tratado dedicado ao vestuário já mostra a roupa

58 PERNIOLA, ibdem, p. 61. 59 PERNIOLA, ibdem, p. 61.

106

como um mecanismo de controle térmico e como meio de definição do ser social60, já que é

extensão da pele e a camada mais próxima do corpo.

Um dado exemplar apontado por McLuhan, neste item, prenuncia as futuras pesqui- sas ligadas à subjetividade do ciborgue. O autor esclarece que boa parte de nossa audição se faz através da própria pele. Logo, durante os longos séculos de corpos cobertos por pesados tecidos (no Ocidente) houve perda da audição e uma readequação dos sentidos, assim como houve readequação dos sentidos com o advento da energia elétrica, pois a epiderme passa a assumir outras funções, livre das grandes camadas dos pesados tecidos.

Ao prefaciar o livro Antropologia do ciborgue, como apresentação do Manifesto ci-

borgue, de Donna Haraway, Tomaz Tadeu da Silva parte do entendimento de que não existe nada mais que seja simplesmente “puro” em qualquer dos lados da linha de “divisão”61,

havendo um promíscuo acoplamento entre o humano e a máquina, portanto, entre ciência e política, entre tecnologia e sociedade, entre natureza e cultura. Os estudos de

McLuhan são consolidados e consumados, sem chance de retorno e sem direito à nostalgia. Se os meios tecnológicos sempre influenciaram na subjetividade, as mudanças atuais se dão no plano de uma intrusão mais contundente, mais efetiva, levando à pergunta, e já à constatação: quando aquilo que é supostamente animado se vê profunda e radicalmente

afetado, é hora de perguntar: qual é mesmo a natureza daquilo que anima o inanimado? É no confronto com clones, ciborgues e outros híbridos tecnonaturais que a “humanidade” de nossa subjetividade se vê colocada em questão62. Mas a dúvida já tinha sido posta, em fic-

ção, por E. T. A. Hoffmann, em 1817, com a personagem Olímpia, a boneca articulada. Na novela O homem da areia, Natanael se apaixona inadvertidamente pela boneca rígida, com o olhar despido de calor e toda acuidade, com andar estranhamente cadenciado, de gestos e canto com ritmo odiosamente regular e sem alma como os de uma caixa de mú-

sica63. Mas Natanael acredita que só às sensibilidades poéticas se revela tal organização! E

apenas a ele foi dado perceber o olhar amoroso de Olímpia. Sua pouca fala (Ah, ah, ah e Boa noite!) seriam como hieróglifos de um mundo interior, onde reinam o amor e o conhecimen-

to sublime da vida espiritual, contemplando a eternidade64.

60 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari.

São Paulo: Cultrix, 2001, p. 140.

61 SILVA, Tomaz Tadeu. (Org). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte:

Autêntica, 2000, p. 13.

62 SILVA, ibdem, p. 12.

63 Descrição feita por um dos amigos do personagem Natanael, tentando preveni-lo de seu equívoco. Cf.

HOFFMAN, E. T. A. O homem da areia. Trad. Ary Quintella. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 66.

107

Depois de revelada a farsa, e todos tendo conhecimento dos procedimentos inescru- pulosos do criador de Olímpia – Spalanzani – reuniam-se para recordar dos fatos que de- nunciavam a fraude: parecia suspeito que Olímpia, segundo palavras de um dos elegantes

tomadores de chá, espirrasse mais vezes do que bocejava? Quando ela espirrava, dizia esse elegante, era a mola do mecanismo escondido que dava corda a ela mesma, rangendo. No

entanto, a boneca inanimada causaria confrontos entre as naturezas:

Essa história de autômato ficou gravada neles, produzindo, em seguida, terrível descon- fiança em relação à figuras humanas em geral. Para ficar bem seguros de que não ama- vam uma boneca de madeira, alguns namorados exigiam que sua bem-amada não can- tasse no compasso e nem dançasse ritmadamente, que ao ouvir uma leitura, bordasse ou tricotasse ou brincasse com seu gatinho, etc. Mas sobretudo, não se contentasse apenas em ouvir, que falasse algumas vezes e suas palavras fizessem supor fosse capaz de pensar e sentir65.

Olímpia põe-se como referência do humano e do inumano. Estaca-se ali, no limite, para fazer observar os dois lados da linha demarcatória, e o que se sublinha é tudo quanto se possa naturalizar. Se à boneca robótica falta “alma”, às moças exige-se comprovações, qua- se como regras determinantes que possam distinguir o ser do não ser.

O rosto de cera de Olímpia: condenação. Outra história vem à memória, pela combi- nação malsucedida de matérias: as asas de cera de Ícaro, sua condenação. Olímpia e Ícaro são simbologias da simulação desmedida, de um lado e de outro da natureza. Vence a natu- reza. Vence os limites. Mas isso já é ficção.

Longe da ficção, as barreiras se dissipam, vence a junção. Como expresso por Hara- way, as confortáveis hierarquias cedem vez às novas e assustadoras redes, que a autora chama de informática da dominação. Retiro alguns itens do quadro apresentado por Hara- way como transição da sociedade industrial, orgânica, para um sistema polimorfo, informa- cional:

Representação Simulação

Romance burguês, realismo Ficção científica, pós-modernismo Organismo Componente biótico

Profundidade, integridade Superfície, fronteira Biologia como clínica Biologia como inscrição Higiene Administração do estresse

65 HOFFMANN, ibdem, p. 74-5.

108

Natureza/Cultura Campos de diferença Sexo Engenharia genética Mente Inteligência artificial Patriarcado capitalista branco Informática da dominação66

Por conseqüência destas mudanças, a tecnologia não pode ser mais entendida como exterior ao corpo, como mediadora, e sim como parte do corpo, criando o que Bernard An- drieu67 denomina de design biosubjetivo da matéria. Ou seja, há uma redefinição da natureza

pela ação sobre a matéria primeira, e com isso a encarnação do sujeito nesta matéria combi- nada.

Os estudos de Andrieu se voltam para as questões genéticas. Segundo o autor, os corpos se utilizam da biosubjetividade não mais para se reproduzir, mas para produzir, e produzir espécies de indivíduos inéditos na natureza, gerando uma nova hermenêutica do corpo. Mantém-se viva, deste modo, a dialética: identidade/mutabilidade68.

A principal característica dos adeptos da bodmods, a transitoriedade, parece afetar as antigas noções da anatomia. A identidade torna-se algo instável e a anatomia, como coloca David Le Breton, não é mais um destino, senão um acessório da presença. O corpo se torna uma representação provisória, um lugar ideal da encarnação para efeito especial69, alte-

rando o dualismo alma/matéria.

Para Le Breton o corpo não é mais somente a assinatura de uma identidade intangí-

vel, a encarnação irredutível do sujeito, seu ser-no-mundo, mas uma construção, uma ins- tância de canais, um terminal, um objeto transitório e manipulável suscetível de grande emparelhamento70. E com as novas noções de corpo, a construção da subjetividade também

se torna transitória, complexa e de referências múltiplas, pois ao mudar o corpo o indivíduo utiliza-se de bricolagens de referências, de tradições.

Mas se há um consenso de que as mudanças efetivam novos rumos para o estudo das subjetividades, o plano de Haraway é ousado, e se constitui na construção de um mito políti- co, cuja base é a ironia. Segundo a autora, a ironia não se põe no extremo, e sim nas contra-

66 HARAWAY in SILVA, ibdem, p. 65-6.

67 ANDRIEU, Bernard. “Une peau de cyborg”. In: HTTP://www.staps.uhp-nancy.fr /bernard/

doc.pdf /peau-cyborg.pdf, p. 07. Acesso em 23/04/2008.

68 ANDRIEU, Bernard. “La représentation du corps, inventrice de normes biosubectives”. In:

HTTP://www.staps.uhp-nancy.fr/bernard/doc.pdf/normesbiosubjectives.pdf, p. 05. Acesso

em 23/04/2008.

69 LE BRETON, David. “L’identité à fleur de peau: tatouages, percings, etc). In: http://www.body-

Art.net/v6.0/Kortext/DLBtxt2fr.html, p. 01. Acesso em 10/03/2007. Confira também, neste mesmo site os textos “Obsolescence contemporaine du corps” e “Lukas Zpira ou le hacker corporel”.

109

dições que não se resolvem – ainda que dialeticamente. Por se colocar no lugar das contra-

dições gera uma tensão ao manter juntas coisas incompatíveis, necessárias e verdadeiras. A imagem do ciborgue é a imagem da ironia, da blasfêmia.

O ciborgue, criatura simultaneamente animal e máquina, põe fim à história da narra- tiva edipiana, pois rompe com as narrativas dirigidas ao “estado original”, desprendendo-se do fascínio por uma totalidade orgânica. Tal desprendimento, para Haraway, faz reavaliar dois mitos advindos da psicanálise e do marxismo: desenvolvimento individual e história. A partir desta base, a natureza e a cultura são reestruturadas, e uma não pode ser mais objeto

de apropriação ou incorporação pela outra, derrubando as dominações hierárquicas.

Haraway aponta três quebras de fronteiras cruciais postas pelo ciborgue: a fronteira entre o humano e o animal; entre o animal-humano (organismo) e máquina; e a fronteira entre o físico e o não-físico. Estas quebras, por sua vez, balançam as bases, antes sólidas, de nomeações universais tais como gênero, raça e classe social, ao indicarem que tudo é cons- trução, e passível de mudanças. Por isso, estes “lugares” não podem ser entendidos como estáveis e nem mesmo um ponto de ligação, um traço em comum. A autora exemplifica di- zendo que não existe nada no fato de ser “mulher” que naturalmente una as mulheres71.

Todas as fronteiras, de um modo ou de outro, servem como matriz de dominações.

Vendo no ciborgue a imagem da criatura de um mundo pós-gênero, Haraway argu- menta sobre a necessidade de se assumir a responsabilidade das relações sociais da ciência e tecnologia, significando recusar uma metafísica anti-ciência para abraçar a habilidosa tare-

fa de reconstruir as fronteiras da vida cotidiana, em conexão parcial com os outros, em comunicação com todas as nossas partes72. A antropologia ciborguiana é a aceitação de um

mundo monstruoso, combinação de diferentes naturezas e, sobretudo, de corpos incompletos e em conexões.

Documentos relacionados