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Esquema 1 – O ethos discursivo para Maingueneau

6 ETHOS E DISCURSO SOBRE A ALTERIDADE EM SHREK

6.2 UMA CENOGRAFIA PARA SHREK

De acordo com Maingueneau (2006a, 2006b), o gênero de discurso deve ser analisado a partir da relação que ele estabelece com sua cena de enunciação, a qual pode ser pensada através de três outras cenas: a genérica, a englobante e a cenografia. Propomos, assim, uma análise do filme Shrek (PDI/DreamWorks, 2001) a partir dessa perspectiva adotada pelo teórico francês.

Sabemos que os gêneros cinematográficos originam-se, em sua maioria, a partir dos gêneros literários. No caso do nosso material de análise, o texto de origem é um conto de fadas, por vários motivos que exporemos a seguir. Acreditamos, no entanto, que, ao ser realizado na esfera cinematográfica, o conto de fadas Shrek (PDI/DreamWorks, 2001) foi inscrito numa cenografia de animação.

Sobre o gênero cinematográfico animação, Nogueira (2010, p. 59) afirma que o mesmo ―[...] consiste numa sequência de imagens que, devido à denominada persistência da imagem na retina – fenómeno cuja teoria explicativa é apresentada por Peter Mark Rotget em 1825 –, cria a ilusão de movimento‖. O autor afirma que o que distingue o cinema de animação do cinema convencional, isto é, do cinema live-action, é o fato de na animação as imagens serem realizadas fotograma por fotograma e não de modo contínuo como no cinema convencional.

Para além desta definição, sobremodo técnica, devemos observar que na animação, conforme a própria etimologia da palavra nos indica, há atribuição de ânimo e vitalidade a seres que não os têm. É justamente por esta razão que muitas pessoas são levadas a afastar este gênero cinematográfico da noção mais geral de realidade (NOGUEIRA, 2005). Essa característica da animação pode ser tomada como primeiro elemento favorável para que o conto de fadas cinematográfico Shrek (PDI/DreamWorks, 2001) a adotasse como cenografia.

A animação prestar-se-ia [...] a conviver pacificamente com uma certa impressão de irrealidade – ao contrário do cinema convencional, onde a impressão de realidade tende a ser fundamental – e a suspender, manipular, subverter ou desafiar as leis e convenções do mundo como o conhecemos: as leis da física, as normas culturais, as premissas éticas, etc.

Aqui, mais uma vez, encontramos outro ponto favorável para a realização de Shrek (PDI/DreamWorks, 2001) através de uma cenografia de animação, visto que o conto transgride certos valores sociais ao passo que estabelece uma relação dialógica entre o mundo real e o mundo da fantasia, caracterizada, por exemplo, pelo fato de o próprio personagem

Shrek apresentar-se como um elemento fora do universo feérico, o que pode ser observado em

sua rejeição à realidade dos contos de fadas e em sua incredulidade em relação aos finais felizes.

Acerca desse jogo dialógico entre realidade-fantasia, podemos destacar a tecnologia utilizada para produzir o filme. A equipe técnica da PDI/DreamWorks aperfeiçoou o aparato tecnológico desenvolvido para a animação FormiguinhaZ (PDI/DreamWorks, 1998) e conseguiu criar ―[...] os primeiros humanos gerados realisticamente por computador, capazes de exprimir emoções e diálogos através de um complexo sistema de animação facial‖33 (PDI/DreamWorks, 2001). Essa técnica é, aliás, um dos elementos, como veremos, que nos possibilitará construir um ethos mais humanizado para Shrek, uma vez que as expressões faciais, bem como suas gesticulações terão importância decisiva, por exemplo, no momento de evidenciar seus sentimentos. ―Na animação, tudo pode ganhar vida e personalidade: objectos, marionetas, fantoches ou desenhos, por exemplo, revelam-se capazes de exprimir sentimentos, de manifestar vontades, de agir e de reagir. O inorgânico torna-se orgânico, o material torna-se espiritual‖ (NOGUEIRA, 2010, p. 60), daí o porquê de em Shrek (PDI/DreamWorks, 2001) haver essa possibilidade de antroporfização, isto é, o processo pelo qual, por exemplo, os personagens monstruosos, como o ogro, o dragão e a ogra, e/ou personagens dos contos de fadas ganham características humanas.

Outrossim, a animação é um gênero de discurso que tem um grande poder de efabulação. ―Na animação, aparentemente, tudo é possível, uma vez que podemos renunciar ao referente real, trabalhando exclusivamente a partir dos mecanismos da imaginação e da representação‖ (NOGUEIRA, 2008, p. 88).

Sobre esse poder de efabulação, de criação, Nogueira (2008, p. 88) afirma que

Não se trata de reproduzir o mundo e a vida, mas de os criar. É como se na ficção convencional partíssemos de situações concretas e a partir delas construíssemos modelos abstractos, ao passo que na animação partimos de ideias abstractas e concretizamo-las em obras específicas.

Dessa forma, o gênero cinematográfico animação constitui-se um locus ideal para a realização do conto de fadas cinematográfico Shrek (PDI/DreamWorks, 2001) tal qual ele nos é apresentado. Isto porque, de acordo com Maingueneau (2006a, p. 67), a cenografia ―[...] não é imposta pelo gênero, mas construída pelo próprio texto [...]‖.

A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que o torna pertinente. (MAINGUENEAU, 2006a, p. 68)

Dessa maneira, consideramos que em Shrek (PDI/DreamWorks, 2001) a cena genérica de contos de fadas entra em tensão com a cenografia a ponto de nos questionarmos se não estamos diante de uma subversão da cena de contos de fadas, daí falarmos em conto de fadas cinematográfico e não apenas em conto de fadas. Em Shrek (PDI/DreamWorks, 2001) observamos que nos é contada uma história nos moldes dos contos de fadas tradicionais, ao mesmo tempo em que há progressiva desconstrução das condições da narrativa tradicional, observada pela mudança de funções desempenhadas pelos personagens: o ogro/monstro passa a ser o herói, o lorde/herói passa a ser o vilão etc. Há, assim, a ressignificação do valor e das funções desempenhadas pelos personagens dentro da narrativa. A possibilidade de haver essa movência nas funções já tinha sido tratada por Propp (2006) e seu resultado contribui para que possamos constituir o ethos discursivo dos personagens, agora ressignificados.

Finalmente, conforme afirma Maingueneau (2006b, p. 264), ―para não decair em simples procedimento, a cenografia da obra deve, portanto, corresponder ao mundo que ela torna possível [...]‖. Além disso, ―a cenografia é igualmente a articulação entre a obra considerada um objeto autônomo e as condições de seu surgimento‖ (MAINGUENEAU, 2006b, p. 265). Dessa maneira, podemos entender o porquê de Shrek (PDI/DreamWorks, 2001) ser considerado um conto de fadas cinematográfico com cenografia de animação, visto que o universo da animação dá a possibilidade de efabulação, como já tratamos anteriormente, de que o filme necessita para estabelecer a transgressão com o universo feérico tradicional, o que permite que haja a materialização de um discurso o qual estabelece a transgressão dos valores próprios dos contos de fadas tradicionais, tais como submissão da mulher ao homem e rejeição ao diferente. Toda essa transgressão de que tratamos deve ser analisada através do

que a tornou possível, isto é, dentro das condições de produção do discurso que se materializa na obra: lembremo-nos, por exemplo, de que o ethos humanizado de Shrek e o ethos de princesa independente de Fiona são possíveis porque podemos falar, hodiernamente, de um discurso sobre as minorias e de um discurso feminista.