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Censo Indígena

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6 ORGANIZAÇÃO SOCIAL 6.1 A voz da tribo

6.6 Censo Indígena

O censo é considerado uma necessidade tanto pela FUNAI - que tem tido seu orçamento dificultado com a crescente afluência populacional do território indígena, associada a maiores despesas assistenciais - como pelos considerados índios legítimos que passam a demandar mais recursos e espaço dentro de um território limitado.

Entretanto, esse processo vem se prolongando há vários anos sem que um resultado definitivo se tenha em vista. Apesar disso, o que já foi feito tem sido suficiente para gerar polêmicas e questionar a legitimidade desta ação. Nas aldeias menores as coletas de dados foram obtidas mais facilmente. Entretanto, nas áreas mais populosas, o onde o número dos chamados “particulares” ou não-índios é muitíssimo elevado, o processo tende a ficar paralisado.

Mas, vejamos algumas das opiniões a respeito do censo, iniciando com o cacique Davino da Aldeia Tracoeira, onde o processo já foi finalizado.

“... foi um dos primeiros que foi feito o censo, e foi feita uma separação aí, e aí melhorou muito... Melhorou muito porque tinha um bocado que não era índio e esse que não era índio começava a fazer movimento contrário... Foi das primeiras aldeias que foi feito o censo e vieram os anciões e todo o pessoal velho e fizeram o trabalho

perfeito e aquelas pessoas, quem era índio, era índio, quem não era índio ficou separado. São 44 famílias... Separou assim, que eles não são índios, agora que ficou morando nos cantos deles. Nos cantos mesmo que estão. Agora é que estão prometendo aí, pelo menos o Presidente da FUNAI falou, que depois que fizer isso tudinho aí vão separar eles mesmo. Os que tiverem... que no caso que tem muito índio casado com não índia e índia casada com não-índio, e aí fica aquele misturado a ver. Aí, que daí avante os que não quiserem levar em conta o tratamento dos índios, ele vai ter que procurar um jeito ou entrar no esquema do nosso trabalho, ou então ele procurar o destino dele.”

Josafá, chefe do Posto Indígena, confirma a Aldeia Tracoeira como a única, na realidade, em que, àquela altura, se havia concluído o censo, e tece considerações sobre as dificuldades e a necessidade de realização dessa ação de controle étnico:

“Concluiu só Tracoeira... Vai demorar muito ainda. E foram muitas coisas que aconteceram durante esse tempo. E agora é que está vindo, tudo aflorando. E eu que estou na atualidade, eu é que estou pegando toda... é como se tivesse jogado um efeito e o efeito só está fazendo agora... E me preocupa muito. E tomara que esse censo veja realmente quem são e quem não são. Porque se os que não são, que implicam mais, conseguirem ficar como índio aí os problemas em vez de diminuir, eles vão aumentar. Porque o cara vai estar com o título mesmo, digamos... Porque a cada ano que passa, todo dia está só aumentando. Depois que fizer esse censo, que terminar aí não tem esse negócio de ninguém dizer eu sou índio, não. Ou quero ser, não. Vai ser se nascer de um. Por onde nasceu, assim por família. Nesse esquema está tudo cadastrado, acaba com esse problema. Porque se não fizesse isso daqui a mais um ano ou dois, ia ser muito difícil de controlar. Ia terminar praticamente os 3 municípios não ter mais branco. Ia ser todo mundo índio.”

Seu Severino, como ancião da Aldeia São Francisco, avalizou a condição de legitimidade dos declarados como índios e negou essa qualidade em muitos casos, particularmente na Aldeia Galego, comandada não formalmente por Raqué. Também aqui, Seu Severino sugere que tentativas de compras de identidade indígena têm ocorrido:

“Houve um censo ali, mas eu tenho uma prima que é a mãe de Raqué. Então o que sei contar é que junto com uma vizinha que tem ali, aí, embrulharam fizeram tudinho. Ela fez tudinho: quem era, quem não era. Aí ela veio aqui em casa num carro pra eu assinar esse papel pra ir pro Rio de Janeiro. E quem teve lá ao começo foi Batista e aí ela fez essa parada e veio pra aqui eu assinar. Eu digo: lê que eu quero ver. Ai começou a ler. E eu digo: E quem fez esse papel? Ah foi uma dona. Foi? Foi. Ela não tem pensar pra isso não. Nenhuma dessa ai tem pensar isso aí não. Não tem. Acredite que não tem. E eu não vou assinar. Mas, não vai assinar não? Além disso vocês não tem nada com índio. Se fosse de índio, eu assinava. Mas não tem aí. Homem nem pense que eu vou assinar que eu não vou. Justamente, Batista não tinha assinado, eu também não assinei. Pode conseguir pra lá. Já tem gente vindo aqui e sair chorando porque se quer ser índio e eu digo que não é, e acabou-se. Eu digo: vá atrás, se informe mais e se achar bem e se não achar... Tem gente que vai embora e eu não faço. Faço não. Como diz que tem gente que paga pra ser índio. Comigo não venha ganhar com isso que não leva não. Mode (por causa de) dinheiro 100, 200... Na Baía era 1.500 baixou 500, agora que chegou esse que é o pente fino, eu não sei quanto vai ficar.”

Aqui, Caboquinho descreve longamente o modus operandi do censo e a expectativa de seu término:

“... daqui para o mês de junho, eu acho que dá pra gente terminar isso aí, no próximo ano. Porque a gente está fazendo seguinte: chamamos uma aldeia, no caso São Francisco, vamos fazer o censo lá, quer dizer, o levantamento todo nós já fizemos. Agora vamos fazer o chamado pente-fino, passar o pente fino. O pente fino, como é que a gente passa? Vamos supor, de 100 famílias recenseadas a gente pede uma referência. Por que o censo é o seguinte: seu nome, se você é índio ou não. Se você for índio você vai dizer. Se não for índio a gente pega só o nome dele e descarta. Se você for índio, a gente pergunta de qual aldeia é você. Onde moravam seus pais, quem eram, nome, apelido, nome da mãe, nome do pai, apelido, quem eram seus avós, nome e apelido, e onde moravam seus avós. E aí o cara vai dizer: eu nasci na aldeia tal, meus pais são fulano e sicrano, meu avô de fulano e sicrano que moravam tal e tal. Aqueles que não falam isso, praticamente não são índios nem sabem nem de onde vieram. Como lá em Montemor, a maioria é assim. Ali vai sair meio mundo de gente de Montemor. Montemor tem 480 famílias cadastradas como índio, que não tem isso. A gente sabe que não tem. Então a gente pede... depois disso aí, de pedir o nome do pai, de avô, que aldeia moravam, a gente pede também que ele indique uma pessoa velha, acima de 60 anos que reconheça aquela família como índio. E aí você vai dizer: quem conhece minha família é fulano de tal. E aí a gente chama aquela pessoa. Vamos supor, de 100 famílias a gente escolhe (aí dá nome de um bocado de gente) aquelas pessoas como mais votadas que pediu como indicação, a gente chama. Seis, sete pessoas velhas e essas pessoas velhas vão dizer. No caso, como é que é o teu nome? É Antônio Ricardo Pereira de Andrade. Então tua família é Pereira. Não é isso? Então a gente pergunta: olha, Antônio Ricardo Pereira de Andrade, ou então o apelido no caso, Ricardo, filho de fulano de tal, essa família é Índia? E aí o velho vai pensar... é Índia. Porque a Índia? Por que eu conheço, ele é sobrinho de fulano, de sicrano, morava na aldeia tal, filho de fulano de tal, o avô dele era fulano de tal. E a gente vai no documento. A gente tem um documento de 1923 que tem a relação de todas as famílias índias daqui. A gente vai no documento e aí bate. A gente pergunta para outro... (Quer dizer que mesmo se, por exemplo, os pais, os avôs nasceram aqui, mas não eram índios não vai entrar?) 169 ...não entra como índio não. E tem muitos que diz é, conheço. É índio? É. Moravam onde? Morava tal e tal. A gente pergunta a todos eles. Você conhece a família como índia? Conheço não, esse aí não é índio não. Diz na cara de pau, o velho. Não é um índio, não. Não é índio porque eu sei de onde eles vieram, eu sei como eles chegaram aqui, vieram de tal canto... E o senhor conhece? Conheço não. É fácil demais. Tem vezes que em dois dias a gente resolve uma aldeia dessas. Agora tem vezes que a coisa é difícil mesmo, polêmica. No Galego mesmo, ali, as maiores famílias do galego não são índias. São todas cadastradas como índias. Eles que faziam toda a bagunça. Esse menino mesmo, esse que está contigo aí, Guel (Miguel), a família dele não passou nenhum como índio. E estão lá. E essa família lá é grande, grande mesmo. Não passou nem um... Estão sabendo já. E aí quando os velhos não conhecem, aí a gente manda que aquela família corra atrás de alguma justificativa. Ela tem o direito de procurar, quem é sua família, que não é.... E aí têm muitos que nem vão porque sabe que não é. Tem alguns que vão, mas chega na frente e descobre que não é também. Mas está sendo muito bom esse censo. Vai ser uma referência também em nível nacional.”

169 Pergunta feita pelo entrevistador.

Esta entrevista se deu em 30 de novembro de 2006. Estive na FUNAI, e João Pessoa em março deste ano de 2008, e nada ainda foi concluído. Àquela mesma altura, Caboquinho revelou ainda as ações previstas após o encerramento do censo:

“... está se discutindo junto com o INCRA, para se conseguir junto com o INCRA até sair uma política do próprio governo para essas pessoas terem o seu local fora da área. Sei que vai doer muito. Tem pessoas aí com mais de 60 anos aí dentro, 50 anos,70 anos, mas a terra é indígena e aí tem que morar é índio mesmo. Não tem que morar outra pessoa.”

Por outro lado, o problema mostra-se bastante sério quando se trata do destino de antigos moradores. Dona Maria, habitante da Praia de Coqueirinho desde 1928, alega que a área onde mora era terreno da marinha arrendado ao irmão de sua madrinha:

“A FUNAI tomou conta que isto aqui é aldeia. Sou revoltada demais. Isso era arrendado aqui daquela ponta ali até ali até a ponta da jangadinha onde você passou que tem uma casa que caiu que ainda tem uns tijolos, acho que ainda tem uns tijolos na praia. Até aí era arrendado pro irmão da minha madrinha que me criou e que morava aqui. Ele arrendou da ponta da Jangadinha até a ponta da areia. Ele passava todo ano ao domínio da União.”

Entretanto, quando do falecimento deste último, foram vendidos ilegalmente (pelos próprios índios, dá a entender o relato, um tanto confuso, da entrevistada) vários terrenos para veranistas:

“Aí botaram na cabeça que os veranistas tinham invadido. Aí eu fui do contra. Não, aqui ninguém invadiu nada não. Eles compram, trocaram foi o que eles fizeram. O que eles fizeram foi trocando. Mas infelizmente ficou que tinha sido invasão.”

Por fim, negociou-se de modo a permitir a permanência de D. Maria e mais quatro famílias, após terem sido lacradas as casas dos veranistas, conforme relata.

“o que a FUNAI fez e ligou pra mim foi que passou um carro da Federal, passou um carro da FUNAI, depois veio um camburão agora não sei pra que esse camburão... Lacrou as casas todinhas, começou daquela primeira casa ali. E eu estou aqui tratando peixe, porque quando tem peixe de manhã me sento aqui pra tratar do peixe. E eu de cabeça baixa tratando peixe e ele disse assim: ‘D. Maria olhe eu vou lacrar sua casa e se a senhora tirar o lacre vai ser pior pra senhora.’ Eu levantei a cabeça e disse: Eu? Sair da minha casa? Eu não tenho pra onde ir não! Não vou sair da minha casa não. ‘Vou lá em baixo e quando eu voltar eu resolvo seu caso.’ Chegou na casa de Bono, desse senhor que é mais velho do que eu, e disse a mesma coisa. Ele disse: eu saio daqui agora mesmo, se indenizar minha casa. De graça é que eu não vou deixar minha casa pra ninguém, porque ninguém me ajudou a fazer. Eu fiz a meu custo e não vou deixar ela de graça. Aí foi lá pra baixo e encontrou Davi, um menino que toma conta das casas aqui, e um galego que tem um bote e duas meninas e Amélia. Aí ele disse que só ficava Amélia, que era índia, o galego porque tinha 2 crianças, o Davi porque tinha 2 crianças e o Bono porque era aleijado ficava e a senhora, por fim.”

Suspeito que a justificativa pela demora ou interrupção do processo de recenceamento (dentro da FUNAI, por vezes explicada em termos de falta de verbas ou mesmo do grande volume de dados a serem apurados), creio, não se deve a falhas metodológicas, mas a uma

subestimativa do ônus político da empreitada, em todas as suas formas e conseqüências, materiais e simbólicas.

7 CULTURA POTIGUARA

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