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Distinções culturais, categóricas

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7 CULTURA POTIGUARA 7.1 Aspectos gerais

7.3 Distinções culturais, categóricas

Da mesma forma que na economia da sociedade envolvente, a monocultura da cana- de-açúcar vem sendo reproduzida no interior do território potiguara. Também no âmbito da cultura os processos de assimilação e reprodução dos gostos e costumes hegemônicos transcorrem em paralelo. Mas com uma importante diferença. Aqui, no campo da cultura - refém dos interesses políticos e econômicos dos grupos dominantes da sociedade potiguara – verifica-se o estabelecimento e a manutenção de um conjunto de ações simbólicas intencionalmente e estrategicamente construídas com o intuito de ressaltar o caráter distintivo dos potiguara em relação a sociedade envolvente.

O relato de Janjão é exemplar em demonstrar como a formação de categorias distintivas (até certo ponto arbitrárias) que conformem uma “tradição” é disseminada localmente, constituindo, realçando ou mantendo as fronteiras étnicas.

“Artesanato, não! Isto aí se chama arte. Arte do índio. Quem faz artesanato é o branco. Eu não aprendi nadinha com o branco. Tudo que vem do índio é arte. Eu faço uma casa de farinha, você sabe como é uma casa de farinha?... Eu sou carpinteiro e o branco é marceneiro.”

Na mesma linha, Seu Severino, quando perguntamos sobre a percepção da identidade indígena pela sociedade envolvente, declara abertamente os aspectos econômicos e políticos que justificam a desejável distinção semântica entre aldeia e vila, como verificamos na auto- correção de Joelma em seu discurso, já citado.

“Eles (na feira de Rio Tinto) percebiam a gente como índio porque eles lá pagavam o imposto e a gente não pagava, era isento de imposto. Era isento de imposto... Até agora a cidade da Baía da Traição está ali. E aqui ninguém quer que assine que seja município, quer que seja aldeia toda a vida porque se passar para município, aí já vai ter de querer cobrança. Eu mesmo falo pra eles, como meninas que vieram fazer pesquisa e fazer pergunta, essas coisas assim. Aí eu digo: vocês sustentem o saco, não deixem de chamar isso aqui de aldeia. Seja aldeia, nunca fala município pra ela não se levantar.”

Ou ainda:

“O que eles diziam era: aqueles ali são índios. Ali é índio. Porque até hoje em cima de toda embrulhada ainda existe o respeito para o índio. Porque tem havido assim até corte de índio, cortar de uma pessoa. E as vezes vai pra cadeia. Demora pouco... Porque até a gente quando ia pra Brasília eles mesmo guiavam a gente no círculo, nessa fórmula assim, assim. Hoje o índio já entra e faz tudo porque tem o conhecimento. E eu mesmo aconteceu isso comigo. Vou contar outra que é importante. Eu fui com uma carga de estaca pra cerca pro Rio Grande do Norte. Ia eu, mais dois filhos e o motorista da pick up passamos na 101 no posto, lugar que vai pro Rio

Grande que é que chamam de 101, passamos de uma vez. Quando estava com uma distancia, o menino que ia em cima disse que se chama Fernando (o apelido é Fernando) disse: ‘o fiscal vem aí e o dinheiro da carga não dá pra pagar a multa.’ Deixa vir. Para não e quando chegou atravessou na frente. Ele foi falar com o motorista e eu estava do lado esquerdo. Mas rapaz como é que passa num posto e não tira a ordem pra despachar essa carga? Eu disse assim: Olhe eu vou lhe dizer uma coisa, viu. Isso aqui não tem valor não. Essa madeira não tem valor. Isso aqui é do índio, é da terra é do índio, o caminhão é do índio, tudo é dele. E acho que ele não tem direito de pagar nada. Somos isentos de impostos. Ninguém paga nada não. Temos o direito de atravessar o Brasil de canto a canto. Ele ficou olhando assim: ‘E é assim, é?’ E eu digo: é. Somos isentos de impostos federais, estaduais e municipais. E ele disse: ‘Rapaz você tem essa lei?’ Tenho. Está no Estatuto do Índio. Não está aqui não, porque está na casa do meu filho. Mas eu tenho isso aqui. Mas ele ficou assim e disse: ‘Vocês tem essa Lei?’ Eu trago, trago de outra vez que eu vier, eu trago, mas eu queria que vocês prendesse era umas cargas de madeira que estão roubando aqui dentro da mata do índio. Eu queria que vocês cobrasse de um jeito na altura que pudesse. Ele disse: ‘Está certo.’ E fui embora e não paguei nada.”

A escola é talvez o principal espaço de debate sobre as virtudes do gosto e dos costumes potiguara, como, por exemplo, no debate sobre a gastronomia indígena frente àquela de origem urbana ou globalizada. Esse debate que envolve cultura e consumo em geral, nos é trazido pela fala de Joelma:

Pra isso mais uma vez a escola entra. A importância que tem a escola nisso aí. Com essa mudança tão dinâmica, entendeu? Onde que pra ele é normal dormir no chão. É gostoso dormir na cama, mas pra eles é normal dormir no chão. É muito bom ter um pão com queijo, com leite, mas também é muito bom ter a farinha com peixe assado. Certo que se eu deixar a farinha com peixe assado pra comer meu pão com queijo eu estou dissociando de uma cultura. Nem tanto. Mas eu não posso desvalorizar aquele cardápio indígena que tem lá pra adaptar tudo para um mundo não indígena. Então é isso que a gente busca. Olha, tudo bem você não pode comer porque você vai deixar de ser indígena, mas você tem que valorizar aquilo que é saudável, que é legal e é bom pra você e que faz parte da sua cultura. Quando eu comecei a trabalhar ali um dos primeiros temas que eu levei foi essa questão dos hábitos alimentares. E eu perguntei o que era mais sadio no café da manhã. Quando cheguei lá eu comecei a botar no quadro leite, queijo, pão. Eu da cidade tive uma vida mais assim bem mais próxima, vamos dizer, como meu pai também... É, do gosto urbano e meu pai também era comerciante. Eles ficaram assim olhando... Aí eu: bom, esse aqui é o cardápio. Mas eu quero que vocês façam o de vocês. Esqueçam isso aqui e façam o de vocês. E aí eu me surpreendi: de manhã eles adoram comer beiju, com peixe assado, eles gostam de chupar manga com farinha. Entendeu? Olha o perigo que é um professor que não tem uma formação, um professor que não está de fato ligado à comunidade numa escola indígena. Olha o perigo que é? O professor que chega diz isso aqui é que é saudável. E isso aí não tem vitamina nenhuma. E aí a gente foi fazer a tabela calórica de nutrientes entre a farinha e o pão, entre o leite, vamos dizer, e o refrigerante que hoje é o que eles mais gostam. A gente foi fazer o cardápio da escola pediram bolacha recheada, pediram refrigerante, e a gente foi mostrar pra eles o que era saudável, o que era do dia a dia, o que eles gostavam. Tivemos que mudar todo o cardápio. Então é essa a questão, o índio do Nordeste, ligado ao litoral, é uma questão deles começarem a pensar no que realmente é melhor pra eles, faz parte da cultura deles. E associar com o

que a gente tem aqui nesse mundo louco... E é esse nosso problema, nosso desafio e o que a gente joga hoje nas escolas. E se a escola ela está separada da comunidade, meu Deus do Céu, ela em vez de ter uma função social ali importante para o fortalecimento de uma cultura, ela passa a ter uma função de exclusão, ela passa a ter uma função de fato de desvalorização entendeu? Então é isso que a gente busca na organização, com os professores. É levar a escola hoje para as aldeias de uma forma que realmente possa revitalizar, que possa fortalecer a cultura.

Entretanto, quando pergunto sobre a condição dos não-índios que freqüentam a escola indígenas sendo obrigados a cumprirem o mesmo ritual, característico da etnia durante a formatura, Joelma mostrou-se um tanto vacilante, ou mesmo dando a entender que a mistura étnica é um problema a resolver:

“Estamos num processo de transição... Da escola tradicional. É, da escola convencional para a escola indígena e assim é muito complicado. Sabe... Onde a gente vê hoje em boa parte das aldeias já tem gente que não são indígenas morando lá. E assim é muito complicado...”

Caboquinho, por outro lado, ressalta as vantagens da proximidade com a sociedade nacional no intercâmbio mais fácil que é possível promover.

‘... Até porque nós aqui, a gente já tem uma vivência muito grande, temos essa aproximação com a sociedade branca há muitos anos, isso facilita muito. A gente domina bem o português, e tem muitos índios que não dominam português e não sabem... e não têm essa visão do mundo lá fora. E para gente tornou-se muito mais fácil por causa disso. É como diz o ditado: tanto faz de um lado como do outro, a gente está dentro. Ninguém fica no meio, a gente fica dentro. Se for para a questão de qualquer uma discussão tanto política como jurídica dentro da questão indígena, eu tô dentro por que eu entendo aquilo e acompanho.”

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