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1 INTRODUÇÃO

3.9 Censura

A ditadura de Salazar, além de conservadora, corporativista e ligada profundamente à Igreja Católica, teve também uma censura extremamente forte. O que ficou conhecido historicamente como PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) foi criada em 1933 como PVDE (Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado) e agiu fortemente durante o regime. Atuou com a delação, o medo, a perseguição, a tortura e uma verba oriunda do governo muito grande. Conforme explica Torgal:

[...] a repressão, mais rigorosa, que se exerceu sobre “reviralhistas”, anarquistas, comunistas e militantes das várias “esquerdas”, ou sobre alguns casos mais significativos [...] Não se esquecem, por isso, como não poderia deixar de ser, as prisões, a violação da privacidade, os julgamentos, as torturas praticadas, a repressão na rua, as mortes violentas. (TORGAL, 2009, p.404)

A imprensa não passou ilesa pela censura. Jornais e revistas contrários ao regime de Salazar ou com discursos monárquicos foram fechados. A PVDE fiscalizava toda a imprensa portuguesa a mando o Estado. E esse motivo pode ser o destaque pelo qual a Modas e Bordados apresentou discursos, aparentemente, tão contraditórios.

Maria Lamas tinha um posicionamento duro a respeito do regime autoritário que comandava Portugal e, ao ser diretora da Revista, a fiscalização seria maior ainda. Deduz-se que os posicionamentos dicotômicos do periódico se fizeram devido à censura, já que em alguns momentos o tom das publicações estava conforme o discurso ideológico do regime e, em outros momentos, apresentava outra opinião. A ideia de não ser extremamente radical no modo de pensar foi o que talvez possibilitou que a Revista durasse seis décadas.

Ao noticiar matérias sobre a mulher no mundo do trabalho, por exemplo, a Revista apresenta profissões inovadoras para as mulheres e diversas possibilidades de atuação no mercado de trabalho, mas reforça a importância da maternidade. Critica severamente a Guerra, mas apresenta modelagem de roupas para serem usadas nesse período; menciona mulheres com estilos de vida fora do padrão salazarista e, na matéria seguinte, uma fala sobre como cuidar do lar. Esse movimento que poderia ser caracterizada como extremamente contraditório foi o que, talvez, tenha “salvo” a Revista da censura tão dura de Salazar.

O regime acreditava que a população precisava de um suporte do Estado para poder seguir as normas sociais e morais impostas pelo regime. A frase “[...] o jornal é o alimento espiritual do povo e deve ser fiscalizado como todos os alimentos.” (SALAZAR, 1933) expressa bem a visão que o regime tinha a respeito da imprensa. A ideia de que revistas femininas não passavam pela censura e fiscalização do PVDE é ingênua. Salazar possuía um discurso específico para as mulheres por saber que elas eram um dos pilares da sociedade portuguesa. Com isso, não poderia permitir que ideias desviantes do seu projeto pedagógico feminino fossem publicadas em revistas e periódicos.

Como já dito anteriormente, não se pretende nesta pesquisa fazer juízo de valor ou julgamentos a respeito das fontes e sobre quem as escreveu. Entretanto,foi notório que toda a matéria mais progressista que aparecia na Revista vinha acompanhada de uma matéria mais conservadora.

Apesar desse conservadorismo do regime salazarista ter contribuído para a formação dessas mulheres e sua cultura política, acredita-se que a ousadia e coragem das mulheres que participavam da construção da revista Modas e Bordados contribuiu tanto instrumentalizando quanto possibilitando uma visão de mundo distinta para muitas jovens e adultas mulheres portuguesas que viriam a presenciar, em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos.

A Modas e Bordados teve mais de seis décadas de existência e circulou por todo Portugal. Não se tem como saber ao certo por quantas leitoras foi lida. Entretanto, permite-se pensar no quão singular foi sua contribuição para a formação feminina durante o período que existiu. Gerações e gerações lendo sobre mulheres, a partir de mulheres, focadas em mulheres. Pode-se pensar que, ao analisar uma revista feminina e a representação que ela fazia sobre o “ser mulher” na década de 1930 e 1940 não seja de importância estrutural para a História e para a sociedade, não tenha sido revolucionário para o período, não modificou a realidade social que aquelas mulheres viviam. Porém, se uma mulher portuguesa, ao ler uma matéria sobre mulheres cientistas, passou a pensar na possibilidade da sua filha no futuro ser uma cientista, a mudança estrutural começou aí. Se as jovens que liam o periódico começaram a questionar qual o papel social que elas deveriam cumprir ou questionaram outras funções para o futuro além de dona do lar e esposa devota, a revolução havia começado, pelo menos na vida dessas jovens.

Foi mostrado, anteriormente, que era usual as leitoras passarem anos acompanhando a Revista. Como já dito, não se tem como saber qual a contribuição direta das publicações na vida das jovens. Analisar a recepção da leitura é extremamente complexo até mesmo para estudiosos da comunicação e da história da imprensa. Entretanto, a durabilidade de uma

revista como Modas e Bordados, em um regime autoritário, leva a crer que houve uma aceitação bem grande pelo público. Se o público aceitava a Revista, provavelmente, ele concordava com o seu discurso de modificação do espaço feminino em Portugal.

O padrão estabelecido pelo regime salazarista em seu discurso ideológico da mulher ocupando um espaço social restrito ao lar e ao cuidado com os filhos e maridos era disseminado por todo Portugal. Entretanto, após extensa pesquisa nas fontes e leituras sobre a temática, compreendeu-se que esse padrão da mulher no lar recaia com outro peso devido à condição social das mulheres. As mulheres trabalhadoras das zonas rurais, por exemplo, não tinham muitas opções a não ser trabalhar na agricultura. Mesmo que o discurso de Salazar fosse do retorno ao lar, mesmo que essas mulheres quisessem estar dentro do padrão salazarista de mulher, elas não o podiam, pois sua condição econômica não permitia. As mulheres da zona urbana e trabalhadoras de indústrias, fábricas e etc., mesmo que quisessem se inserir no padrão estabelecido, não o podiam também, pois a condição financeira fazia com que elas se inserissem no mercado de trabalho. Entretanto, as mulheres pertencentes à elite tinham a possibilidade de ser o padrão Salazar de mulher. A condição financeira delas possibilitava que permanecessem sendo donas de casa, mães e esposas dedicadas. No momento que essas mulheres, mesmo com a opção de ficar, escolhem sair do lar e se inserir no mercado de trabalho, elas rompem com uma barreira imposta pelo regime.

Não se pretende aqui afirmar que as mulheres ricas “sofriam” mais que as pobres. Porém, não se pode deixar passar em branco a temeridade dessas mulheres. As mulheres pobres não puderam optar por ser como o regime desejava, elas não podiam. Obviamente, as mulheres da elite possuíam muito mais acesso a leituras, estudos, viagens e outros privilégios comparados às mulheres pobres. E, apesar desses privilégios, as mulheres da elite optaram por romper. E aí está a grande quebra de paradigma que essas portuguesas fizeram na sua época. Mulheres para além do seu tempo. Mulheres que viam para além das modas e dos bordados.

4 SERIAM AS REVISTAS TÃO DIFERENTES ASSIM?

É possível comparar países, mesmo que com recortes históricos que se aproximam, mas com um oceano separando geograficamente? É possível realizar uma pesquisa em que o objeto de estudo se refere às mulheres inseridas em culturas tão distintas? Analisar revistas femininas em regimes autoritários diferentes é viável? A pesquisa histórica permite uma gama vasta de observações e análises, possibilitando que cada historiador, mesmo com um tema e com fontes iguais, desenvolva uma pesquisa distinta. Apesar de a História Comparada ser relativamente nova entre as metodologias trabalhadas no ofício do historiador, ela se mostra uma maneira riquíssima de análise.

A História das Mulheres, por sua vez, tem ganhado cada vez mais espaço a partir da década de 1970 em diante, construindo uma importante categoria histórica cada vez mais frutífera nas produções acadêmicas. No que diz respeito aos regimes autoritários e à direita dos anos 30 e 40, é possível realizar uma análise histórica tão vasta que inúmeros trabalhos atuam nessa linha, dando a oportunidade de pensar quais os resquícios que esses regime deixaram para o futuro.

A História Comparada, viés metodológico que, apesar de ainda não ser muito difundido em trabalhos acadêmicos, é uma matriz que permite um intenso debate a partir de, como o próprio nome sugere, uma comparação entre estruturas, entre paradigmas, entre objetos, oferecendo, pois, uma maneira distinta de (re)pensar a história. Diversos autores, ao trabalhar com essa metodologia, buscam na historiografia suas origens. Seja em Marc Bloch (1998), Paul Veyne (1983), Peter Burke (2002), Norbet Elias (1994), a história comparada tem se consolidado cada vez mais no pensar e no fazer histórico.

A ideia para a presente pesquisa foi construir um mosaico de informações que permitisse refletir sobre mulheres na mídia impressa e sua representação em períodos de regimes autoritários, propondo compreender a dinâmica de como a mulher era projetada nos discursos de tais publicações, no sentido de identificar se havia uma relação marcada entre discurso da revista, representação feminina da época e regime autoritário. Isso para saber se os periódicos analisados contribuíam com a formação de uma opinião pública sobre o que era ser mulher, estando coadunado aos postulados normativos do Estado ou se, ao contrário, tentava ensejar posicionamentos diferentes do que era a doxa.

Para alcançar o proposto, especificamente se escolheu duas revistas femininas, uma brasileira e outra portuguesa, pois os dois países viviam contextos políticos de regimes

autoritários. Assim, a escolha por esses países se deu pelo fato de ambos estarem sob um viés de comando conservador e corporativista como o foram os Estados Novos. Apesar de o Estado Novo português ter uma longevidade maior que o brasileiro, optou-se por fazer a comparação a partir de um recorte temporal igual para os dois, a saber, o recorte de tempo que vai de 1937 a 1945.

O questionamento inicial era “como as mulheres eram representadas em regimes autoritários”. Com o passar da pesquisa e a partir do acesso as fontes, novas questões norteadoras surgiram. Entre eles estavam “até que ponto os regimes são semelhantes?” e “por que, em regimes aparentemente semelhantes, as mulheres são representadas de maneiras tão distintas pelas revistas analisadas?”. As respostas, obviamente, poderiam ser diversas, conforme o olhar de cada historiador. Nesta pesquisa, a partir da metodologia da História Comparada, optou-se por perceber, além das semelhanças, também as diferenças das representações. Barros afirma que, ao trabalhar com essa metodologia, é possível:

[...] iluminar um objeto ou situação a partir de outro, mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda esta prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades, a perceber variações de um mesmo modelo. (BARROS, 2007, p. 5)

Por isso, optou-se por trabalhar com diferenças e semelhanças, tanto nos aspectos políticos do regime quanto nas representações feitas pelas revistas. As variações dos regimes de Vargas e de Salazar, as variações das revistas enquanto periódicos e também as variações do “ser mulher” nas fontes foram se mostrando ao longo do tempo. Por esse motivo é que as questões norteadoras do trabalho foram se ajustando.

Barros (ibidem) afirma que a História Comparada permite examinar um mesmo problema a partir de diferentes realidades e que as possibilidades de representação em realidades sociais diferentes é o que permite outra análise histórica. Siegel (2005, p. 67), em outra perspectiva, alega que ao comparar, os pesquisadores escolhem “as categorias que eles pretendem estudar” e “impõem as armações destas suposições nos resultados nas suas investigações.”. Entretanto, na presente pesquisa, tomou-se o cuidado de “deixar as fontes falarem”.

Nesse ato, o que se observou entre as revistas foram contextos de produção e recepção diferenciados. A revista brasileira tem claro discurso anticomunista. A revista portuguesa, por sua vez, apesar de estar inserida em um regime autoritário e anticomunista, não deixa explícito qualquer discurso desse cunho. Se as categorias de análise mostraram-se diferentes

ao longo da pesquisa, foi entendido que essas especificidades deveriam ser contempladas. Assim, de um lado foi observado o discurso anticomunista e, de outra a sua ausência, justamente porque essa constatação de ausência e presença é significativa no contexto das análises levadas a cabo. Em razão das particularidades que se apresentaram, viu-se validade na proposição metodológica da História Comparada.

Além das análises das matérias selecionadas nas revistas em estudo, acredita-se se fazer necessário aprofundar o projeto político de ambos os regimes para compreender qual(is) espaço(s) as mulheres estavam inseridas. O projeto político nacional de ordem conservador, corporativista e com forte caráter nacionalista compunha diretamente as ditaduras de Vargas e de Salazar e seria ingenuidade acreditar que esses projetos políticos não interfeririam de maneira significativa tanto no cotidiano quanto nos espaços das mulheres e suas representações na sociedade. Para isso, entender as estratégias políticas para desenvolver o nacionalismo nos países foi de importante contribuição para a pesquisa.

Nesses termos, este Capítulo apresenta o contexto político no qual estavam inseridas cada uma das revistas analisadas. O recorte tem a função de dar informações para que seja possível entrever (ou não) nos discursos veiculados qual era a imagem do ser mulher naquela época em que as revistas eram publicadas. Quer-se, ademais, ventilar hipóteses sobre os efeitos da publicação de tais discursos, no sentido de pensar o que eles poderiam projetar no imaginário feminino da época; quais representações eram criadas no jogo entre regime- revista-ser mulher.