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CAPÍTULO I. A censura na ditadura militar: o controle sobre as diversões públicas.

2. A censura de diversões públicas

2.2. A censura de diversões públicas nos tribunais

2.2.3. A censura ao teatro e à música

a) “Primeira Feira Paulista de Opinião” (TFR, Agravo em Mandado de

Segurança nº 63.710/SP, Rel. Min. Amarílio Benjamin, 02/05/1969).

Trata-se de recurso de ofício encaminhado ao TFR em face de decisão de primeira instância que considerou inconstitucional a exigência de que o texto da peça “Primeira Feira Paulista de Opinião” fosse encaminhada para a análise da Polícia Federal em Brasília. Com base nos artigos 171 e 172 da Constituição de 1967, o juiz de primeira instância sustentou que, por ser arte, o teatro deveria gozar de inteira liberdade, sendo dever do Estado a sua promoção.36

Em sentido contrário, o TFR, na esteira do voto do Relator, Ministro Amarílio Benjamin, sufragou o entendimento de que, apesar de proteger a livre manifestação do pensamento, a Constituição (art. 150, § 8º) estabelecia limites a esse direito, prevendo, expressamente, a possibilidade de censura no caso dos espetáculos e diversões públicas. De acordo com o Relator, “embora o teatro seja arte, desde que é exibido ao público, passa a constituir espetáculo, ficando submetido assim ao domínio da censura” (BRASIL, TFR, 1969, p. 157). Por fim, o Tribunal também não viu ilegalidade no fato de a censura ter centralizado as atividades de avaliação dos espetáculos no Departamento da Polícia Federal em Brasília.

35 Vale registrar que atos de apreensão de periódicos também foram determinados pelo Ministro da Justiça com

base na Lei de Segurança Nacional. A posição do TFR nestes casos também foi no sentido de considerar legítimos os atos de repressão. Ver os julgados proferidos nos Mandados de Segurança nº 84.024, de 01/03/1979; 85.942, de 05/04/1979; 89.649 e 90.069, ambos de 16/10/1980; e 100.949, de 30/06/1983.

36 Art. 171. As ciências, as letras e as artes são livres. Art. 172. O amparo à cultura é dever do Estado. Com a

promulgação da Constituição de 1969, a redação do art. 172 foi mantida (renumerado como art. 180), enquanto que o art. 171 (renumerado para 179) passou a conter remissão para o § 8º do art. 153, que regulava a livre manifestação do pensamento e suas limitações. Confira-se a redação: Art. 179. As ciências, as letras e as artes são livres, ressalvado o disposto no parágrafo 8º do artigo 153.

b) “Calabar: o elogio da traição” (TFR, Mandado de Segurança nº 74.626/DF,

Rel. Min. José Neri da Silveira, 16/05/1974).

A ação foi proposta pelo compositor e escritor Chico Buarque contra decisão do Diretor da Polícia Federal que determinou a censura da peça “Calabar: o elogio da traição”, de autoria do impetrante em conjunto com o cineasta Ruy Guerra. O texto da peça havia sido liberado inicialmente, no entanto, antes da realização do ensaio geral – que também deveria ser objeto de avaliação pela censura – o DCDP reviu sua posição, passando a proibir a apresentação da peça em todo o território nacional.

O DCDP se baseou no disposto no art. 41, g, do Decreto nº 20.493/1946, que autorizava a proibição de qualquer representação teatral que ferisse a dignidade ou o interesse nacionais.37 A justificativa era a de que a peça distorcia fatos históricos ao conferir papel de herói ao traidor Domingos Fernandes Calabar, comerciante que, por ocasião da segunda invasão dos holandeses no Brasil, no século XVII, passou a colaborar com estes, traindo a Coroa Portuguesa.38

O autor da ação argumentou que a justificativa legal adotada pela DCDP era irregular, uma vez que, à época da invasão holandesa, o Brasil não existia como nação independente. Por isso, não havia qualquer interesse nacional em jogo no episódio. Como a censura constitui um ato administrativo vinculado e como a fundamentação do ato não encontrava respaldo fático e legal, concluiu o impetrante, caberia ao judiciário declarar a sua nulidade, liberando a representação da peça.

O tribunal entendeu, por maioria, que o ato impugnado não configurava abuso de poder, já que calcado em farta motivação, a qual, dado se basear na análise de complexos fatos históricos, não caberia ser reavaliada pelo TFR, pelo menos não no âmbito do mandado de segurança, ação que não comporta instrução probatória. Assim, embora reconhecendo que a censura é um ato vinculado, o TFR acatou as razões e os motivos arrolados pela autoridade coatora para justificar a proibição da peça.

A dissidência ficou por conta dos votos dos Ministros Peçanha Martins e Jarbas Nobre. Este apontou a existência de corrente histórica que vê em Calabar uma figura heroica, que teria preferido o domínio dos holandeses em detrimento dos portugueses. Disse o Ministro:

37 Art. 41. Será negada a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão radiotelefônica: [...] g)

ferir, por qualquer forma, a dignidade ou o interesse nacionais.

38 A seguinte fala da personagem Bárbara permite compreender bem o tom da peça (citado no acórdão, BRASIL,

TFR, 1974, p. 109): “um dia este país há de ser independente dos holandeses, dos espanhóis, portugueses... Um dia todos os países poderão ser independentes, seja lá do que for. Mas isso requer muito traidor. Muito Calabar. E não basta enforcar, retalhar, picar... Calabar não morre, Anna. Calabar é cobra de vidro. E o povo jura que cobra de vidro é uma espécie de lagarto que quando se corta em dois, três mil pedaços, facilmente se refaz”.

A obra de Chico Buarque de Holanda, ‘Calabar, o Elogio da Traição’, segue este segundo grupo de opinião. Encarando a peça teatral como obra de arte, as distorções são perfeitamente admissíveis. [...] Aceito, em princípio, os dois conceitos, e admito que os propugnadores das duas ideias opostas externem a sua convicção. (BRASIL, 1974a, p. 115).

Por fim, o Ministro Jarbas Nobre entendeu que não se configurou o pressuposto indicado na motivação do ato – contrariedade ao interesse nacional – visto que, no momento histórico em que se passava a peça, o Brasil não havia ainda se constituído como nação.

c) “O Abat-jour Lilás” (TFR, Mandado de Segurança nº 76.935/DF, Rel. Min.

Márcio Ribeiro, 30/10/1975).

A ação foi ajuizada pelo dramaturgo Plínio Marcos com o fim de contestar a censura imposta à peça de sua autoria “O Abat-jour Lilás”. A peça retrata a exploração de três prostitutas por um cafetão e foi considerada ofensiva ao decoro público e à moral e aos bons costumes pelo Ministério da Justiça.39

O impetrante argumentou que o despacho da autoridade coatora, que determinou a censura sobre a peça, não demonstrava as razões pelas quais o conteúdo da encenação configuraria atentado à moral e aos bons costumes. Daí decorreria a ilegalidade do ato, haja vista a falta de motivação e, por conseguinte, a violação à livre manifestação do pensamento e ao direito ao trabalho do autor, garantias asseguradas na Constituição de 1969 (art. 153, §§ 8º e 23).

O Ministro Márcio Ribeiro, relator da ação, no que foi acompanhado pela maioria dos julgadores, fez referência ao fato de, historicamente, e, no Brasil, desde o Império, o teatro ser objeto de censura. Tal vigilância seria necessária em virtude da “imoralidade” corriqueira na dramaturgia. O Ministro mencionou que, apesar de o Tribunal, no julgamento do MS nº 74.626/DF (caso “Calabar”, analisado no item anterior), ter entendido ser a censura um ato, em parte, vinculado, o critério da autoridade administrativa só poderia ser objeto de correção judicial “em casos extremos em que se revelasse, prima facie, o seu despropósito ou desarrazoamento” (BRASIL, TFR, 1975, p. 184). Esse entendimento foi expresso, também, na ementa do acórdão:

[...] O direito constitucional brasileiro considera compatível a liberdade de pensamento com a restrição prévia ou a censura de peça teatral. Da falta de conceito legal ou doutrinário preciso do que é pornográfico, obsceno ou contrário à moral e aos bons costumes, decorre ampla margem de discricionariedade às autoridades administrativas e, consequentemente, apenas nos casos

39 A censura se baseou nos seguintes dispositivos legais: DL nº 1.077/1970: art. 1º Não serão toleradas as

publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação. Decreto nº 20.496/1946: art. 41. Será negada a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão radiotelefônica: a) contiver qualquer ofensa ao decôro público.

extremos, de evidente erro do ato de censura, poderá ser feita sua revisão pelo Judiciário. (BRASIL, TFR, 1975, p. 179).

Vale ressaltar, ainda, que os Ministros consideraram que a censura deve ser exercida com base na moral do homem comum, o sentimento médio compartilhado por uma dada cultura em um determinado momento histórico. Nesse sentido, de acordo com o Ministro Néri da Silveira, “o que perpassa todo o trabalho não dignifica a família nem afirma os valores éticos desejáveis da sociedade brasileira”. O Ministro Lafayette Guimarães expressou a convicção “de que a obra é, realmente, de manifesta e evidente obscenidade”. E, segundo o Ministro Paulo Távora, a encenação da peça escandalizaria “o brasileiro médio” da época. Finalmente, o Ministro Aldir Passarinho sustentou que, “dentro do contexto social do momento”, a peça, de fato, poderia ser “considerada como atentatória à moral e aos bons costumes”. (BRASIL, TFR, 1975, p. 185-189).

Mais uma vez, o único voto dissidente foi proferido pelo Ministro Jarbas Nobre. Para ele, a peça apresentava uma mensagem sadia, que em nada o impressionava ou escandalizava. A sua linguagem era compreensível, posto que compatível com o ambiente (um prostíbulo) no qual se passava a encenação. Esta teria por objetivo mostrar a “parte triste do mundo” e, assim, serviria a mostrar aos jovens os seus riscos e perigos. Por tal razão, a peça não afrontaria a moral e os bons costumes, merecendo, ademais, tratamento similar ao conferido pela censura à peça “Navalha na Carne”, que apesar de ser do mesmo autor e narrar ambiente semelhante ao descrito em “Abat-jour Lilás”, fora liberada pelo Ministério da Justiça.

d) “Rimas Sádicas” (TFR, Mandado de Segurança nº 94.746/DF, Rel. Min. José

Cândido, 18/12/1981).

O mandado de segurança foi impetrado pelo cantor e compositor Juca Chaves e tinha por objetivo a liberação da música “Rimas Sádicas”,40 cuja veiculação em rádio e TV

havia sido proibida pelo Ministro da Justiça, ao dar provimento a recurso interposto contra decisão do Conselho Superior de Censura.41

40 Para melhor compreensão do caso, transcrevo parte da letra da música: “depressa abre esta porta/ com teu

cheiro de lua/ quero-te nua/ neste abraço louco/ meu corpo dar-te em troco/ compor sem mais receios/ um hino pros teus seios, pouco a pouco/ [...] procuro-te encontrada/ pois vim driblando os astros/ deixando os rastros de um tesão sem pejo/ deitar o meu desejo/ nas tuas curvas mágicas/ com rimas sádicas/ rimas beijo com beijo/ tesão ou tara [...]”. (BRASIL, TFR, 1981, p. 123). Em outra versão da música, a frase “nas tuas curvas mágicas” foi substituída pelo verso “na alcova de tuas nádegas”, segundo trecho da letra disponível no site http://opiniaoenoticia.com.br/cultura/versos-atrevidos/. Acesso em: 11/04/2012.

41 Neste caso, o recurso foi interposto pelo Presidente do Conselho Superior de Censura, diferente, portanto, dos

acórdãos proferidos no MS nº 95.060 e no MS nº 95.356, em que o Ministro agiu de ofício, conforme será abordado mais adiante.

Deparando-se com o teor da letra da música, o Ministro José Cândido, relator da ação, entendeu que, de fato, a canção atentava contra a moral e os bons costumes. E que, dado estar repleta de palavras inconvenientes e ofensivas, deveria ter a sua veiculação proibida no rádio e na televisão, veículos de comunicação de massa, em relação aos quais a atuação da censura deveria ser mais rígida quando em comparação com outros meios de expressão cultural. Vejamos:

[...] não seria tolerável, por mais livre que fosse a nossa compreensão, que a censura permitisse a violação dos princípios da moral pública que preservam a ordem e a boa convivência social. [...] a agressão total ao pudor público, no que ele representa de decência média da sociedade e dos bons costumes, não pode ser aceita. Há de se compreender que o Rádio e a Televisão se transformaram nos mais eficientes veículos de comunicação social, pela liberdade com que ingressam nos lares e nos ambientes mais fechados. Por isso, sobre eles deve recair a maior parcela de vigilância do censor. (BRASIL, TFR, 1981, p. 125-126).

Ao agir assim, o Estado protegeria a sociedade brasileira e, em particular, as crianças e os jovens, evitando que estes fossem submetidos a influências negativas.

O único voto divergente foi o do Ministro Américo Luz, que se posicionou a favor do impetrante, levando em conta o argumento de que a censura havia liberado músicas – de autoria de artistas como Roberto Carlos e Rita Lee – que continham palavras similares, conforme havia sido comprovado nos autos.

Como se pode observar, apesar dos votos divergentes, os casos até aqui referidos consagraram o entendimento de que a censura poderia ser exercida pelas autoridades administrativas com ampla margem de discricionariedade, o que abrangeria a definição de procedimentos – como a exigência de remessa dos originais para a Polícia Federal em Brasília ou a possibilidade de revisão de uma decisão anteriormente tomada – e, também, a avaliação de mérito no que concerne à afronta aos preceitos legais então vigentes.

Nesse sentido, a definição de conceitos normativos como “moral e bons costumes”, “decoro público” e “interesse nacional” integraria a competência exclusiva dos agentes responsáveis pela censura. Desde que baseadas nas concepções do “homem médio” ou nos padrões da “decência média da sociedade” ou, enfim, não refletissem uma ilegalidade manifesta ou um erro evidente, não caberia ao judiciário interferir em tais decisões administrativas.

Por sua vez, a proteção à liberdade de expressão, fundada em uma concepção instrumental dos direitos, somente se justificaria caso demonstrada que o seu exercício traria algum benefício ou “compensação” social, conforme sustentado pelo Ministro Jarbas Nobre no caso do Jornal “EX”. Anote-se, por fim, que a incoerência ou a “seletividade” da censura, isto é, o fato de a proibição em causa contrastar com a liberação de outra peça ou música com

conteúdo similar, também não constituiria elemento relevante a justificar a correção judicial do ato.

De forma geral, portanto, nos casos até aqui analisados, os tribunais superiores chancelaram a prática institucional da censura de diversões públicas, reconhecendo a sua legitimidade enquanto mecanismo de restrição à liberdade de expressão. Tal legitimidade decorreria da expressa autorização constante das normas então em vigor e do fato de, historicamente, as diversões públicas sempre terem sido objeto da imposição de limites por parte do Estado, como ressaltado pelo Ministro Márcio Ribeiro, relator do caso “O Abat-jour Lilás”.

Enfim, salvo uma ou outra dissidência, a maioria dos julgadores parecia conceber a censura como algo natural e inquestionável, atribuindo reduzida importância à liberdade de expressão e à autonomia individual. Os espectadores, nesse sentido, face à sua reduzida capacidade de discernimento, deveriam ser mantidos sob forte tutela estatal. Daí a censura ser vista como um instrumento necessário à garantia da ordem e à proteção de valores tradicionais, em especial em relação às transmissões de programas efetuados pelo rádio e pela TV, que demandariam um controle estatal mais rígido, em razão da “liberdade com que ingressam nos lares e nos ambientes mais fechados”, conforme ressaltou o Ministro José Cândido, relator do caso “Rimas Sádicas”.

Tal posição somente começará a ser revista em meados da década de 1980, já no período de realização da Assembleia Constituinte, conforme demonstra a evolução da jurisprudência relativa à censura de filmes.

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