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A CENTRALIDADE DA CASTA NO SISTEMA SOCIAL DA ÍNDIA

No documento Casta, tribo e conversão: os Gaudde de Goa (páginas 40-69)

Definitions are more or less useful, not more or less true (Barker 1998: 16).

No contexto da sociedade indiana, os Gaudde de Goa apresentam uma dualidade classificatória interessante: observam as componentes de casta no plano social, mas foram reconhecidos em linguagem administrativa como tribais devido às regalias económicas e educacionais que este estatuto lhes concede. Os próprios afirmam ser os primeiros habitantes deste estado, tal como descrito pela literatura produzida durante e após o colonialismo português – o que foi traduzido como “tribo” – como aconteceu por parte dos britânicos para outros grupos na Índia. Mas o que quero transmitir, quando afirmo que os Gaudde seguem a organização da casta? Qual a relação entre colonialismo e casta? Estas serão algumas das questões a que tentarei responder.

1. 1. O sistema de castas: a hierarquia como modelo de organização social

Na Índia em geral e, mais concretamente, em Goa, quando um goês conhece uma pessoa, o mais comum é tentar saber qual é a sua casta, colocando a célebre questão to konna’lo? traduzida literalmente por ”quem é ele?” e culturalmente por “a que família pertence?” ou “quem são os pais?” (cf. Rodrigues 1974 e Gomes 1993). Ou seja, a pergunta costuma ser feita de forma oblíqua, não se questionando a pessoa sobre a qual se pretende a informação, mas uma outra, de modo a não parecer indelicado – o que demonstra a sensibilidade da questão. A casta a que se pertence pode ser deduzida entre os hindus através da designação que vem a seguir ao nome próprio e ao de família (mais precisamente, a seguir ao nome do pai, no caso das filhas e filhos solteiros; ou do nome do marido, no caso das mulheres casadas). Com as conversões ao catolicismo no século XVI e consequente mudança para um nome português, assim como com a emigração iniciada no século XX, perderam-se algumas das referências sociais através da designação que vinha tradicionalmente a seguir ao nome de família. Novas estratégias de codificação surgiram, então, e, quando não se sabe identificar alguém pelo nome respondido, inquire-se a aldeia de onde vem (algumas aldeias

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estão associadas a determinadas castas), e, de seguida, a família, detalhando-se as perguntas até se aceder à casta.

As castas que compõem uma aldeia variam por toda a Índia, o que dificulta a construção de uma teoria que espelhe esta realidade – a do sistema de castas. Se acrescentarmos a extensão espacial do subcontinente indiano e a grande dimensão da população (1,027 biliões de habitantes), dividida por várias religiões, compreendemos melhor a dificuldade desta tarefa.

Na tentativa de apresentar sumariamente a casta, pode-se adiantar que, na sua heterogeneidade, é definida pela endogamia (a proibição de casar fora do grupo), pela comensalidade (restrições na partilha de alimentos cozinhados e água entre grupos) e pela ocupação profissional (a assumpção de que uma certa profissão é hereditária e característica de uma casta). Com efeito, muitas castas deixaram de exercer a profissão tradicional a que estavam associadas (como acontece entre a geração mais jovem dos Gaudde) e a comensalidade não é restrita, daí que, entre os três critérios, é sobretudo a endogamia que permite a manutenção e a continuação do estatuto da casta. Para expressar as relações entre castas, o factor que mais aproximadamente as parece traduzir é o de hierarquia, isto porque os três critérios referidos são sustentados por uma gradação de pureza ritual, em que no topo do sistema se encontram as castas consideradas mais puras – Brâmanes – e na base as mais desvalorizadas estatutariamente, logo, as mais impuras – Intocáveis. No entanto, materiais etnográficos e teóricos sobre a Índia mostram as dificuldades que o conceito de hierarquia enfrenta31, tema que irei desenvolver ao longo do capítulo.

Depois desta breve introdução, cabe-me colocar uma questão subjacente a toda esta discussão: como se organiza o sistema de castas na Índia?

Varna e jati

A forma original de organização assenta nos varna (“cor” em sânscrito), a estratificação da sociedade da Índia clássica32, dividida nos seguintes grupos: Brâmanes (de profissão sacerdotes – a quem foi associada a cor branca); Kshatriya (príncipes e guerreiros – cor

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Vide Dumont 1992 (1966); Gomes da Silva 1993 (1989); Perez 1994a; Quigley 2001 (1999); Srinivas 1978 (1952), entre outros.

32 Kumar e Michaels aprofundam os vários períodos em que se divide a história indiana, sendo que este último

sistematiza também a literatura religiosa (Kumar 2005: 91-219; Michaels 2004 [1998]: 31-70). Gomes da Silva distingue os significados de história no contexto indiano (Gomes da Silva 1990: 149 e 150).

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vermelha); Vaishya (comerciantes – cor amarela); e Shudra (com ocupação nos serviços – cor negra). As cores branco e negro aludem à teoria histórico-social da invasão da Índia33 por volta

de 1500 a.C.34, quando os arianos indo-europeus35 “brancos” (que viriam a formar a casta dos Brâmanes) encontraram no território indivíduos de cor “escura”, logo, “negros”36 (que mais tarde integrariam a casta dos Shudra). Esta estratificação baseava-se na divisão do trabalho (Kumar 2005: 293)37. Todavia, estas divisões não eram estanques, mas havia mobilidade entre os varna. De acordo com a mesma teoria, parece ter sido a necessidade de especialização de determinadas ocupações, com o crescimento de cidades, do comércio e os casamentos entre varna que originaram novas subdivisões38 (Basham 1990 [1954]: 139). Cada uma destas subdivisões foi chamada jati e foi-lhe dado um nome, normalmente em função da ocupação seguida – o que significa que a estratificação dependia dos quatro varna, mas também dos jati, onde se englobava uma vasta rede de subdivisões profissionais. Gradualmente, uma certa rigidez foi sendo adicionada ao sistema, gerando evidências de diferenciação e mudança. Esta rigidez, sentida nas relações entre castas no que respeita à comensalidade, ao casamento e a observações rituais definidas pelas normas da poluição ritual, levou progressivamente a que o

33 A Índia recebe o seu nome do rio Sindhu (em grego Indus e em persa Hindu) e desde cedo incluiu os limites do

subcontinente que englobavam os actuais países da República da Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh.

34 Chaudhury demonstra como os cientistas sociais chegaram a esta data, bem como às datas em que foram

escritos os textos clássicos do hinduísmo (Chaudhuri 2003 [1979]: 29-41).

35 Os arianos terão vindo supostamente do Irão e da região que envolve o mar Cáspio. Ao chegarem à Índia,

fixaram-se primeiramente no estado do Punjab (a noroeste da Índia) e mais tarde na região a norte de Deli, onde terão ficado muitos anos, preparando a colecção de hinos conhecidos como Veda. Mais tarde, ter-se-ão mudado para o vale do Ganges (Kumar 2005: 92).

36 Os habitantes locais que se encontravam no território foram divididos, pelos historiadores do virar do séc. XX,

em grupos de diferentes proveniências (dravidianos, negritos, mongolóides e austroloides, entre outros), fruto de anteriores migrações, aos quais regressarei mais à frente.

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De acordo com a teoria religiosa, os quatro varna são referidos pela primeira vez no décimo livro dos Rig Veda, no hino Purusha Shukta (90.12), como tendo sido originados a partir de um auto-sacrificio de Purusha – o Criador, o primeiro Ser – que se destruiu a si mesmo para criar uma sociedade humana (Chaudhary 2006: 4). Da boca de Purusha saíram os Brâmanes para poderem adquirir e partilhar o seu conhecimento, bem como realizar sacrifícios rituais; dos braços saíram os Kshatriya para defender e proteger; das coxas os Vaishya para se dedicarem ao comércio e à agricultura; dos pés saíram os Shudras para servir os outros. Existem outras teorias religiosas (a título de exemplo, uma outra associa a origem dos varna às cores da tez: branco, vermelho, amarelo e preto [Mahabharata, Versos Shanti 6939-43, em Kumar 2005: 44-6]), mas esta é a mais conhecida, porque foi a ideia que circulou nos clássicos Dharmasastras Puranas. O autor destas leis, Manu, aceita a teoria de Purusha sem a questionar no Livro I, verso 31 (Chaudhary 2006: 4).

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Manu é de opinião que foram os casamentos entre os varna que originaram subdivisões, que se denominaram de

jati, e, por isso, refere a existência dos quatro varna e de cerca de cinquenta jati (Chaudhary 2006: 3, 5, 10-11). Herbert Risley (1915) acrescentou outros processos, como por exemplo: “tribos”, ou parte de algumas “tribos”, que se hinduizaram e continuaram com o mesmo nome ou uma nova designação; castas que se subdividiram com a migração para outras partes da Índia, entre outros processos.

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nascimento passasse a ser o critério de determinação de casta39. Castas e subcastas foram sendo adicionadas dentro de cada varna, continuando este a manter-se como um elemento de referenciação.

Com o decorrer do tempo surgiu o grupo dos Intocáveis. Embora os textos clássicos do hinduísmo não contemplem os Intocáveis, Manu (que terá vivido entre 200 a.C. e 200 d.C.), nas suas Leis, normalmente citado como uma referência de autoridade na origem dos varna, apesar de negar a existência de uma quinta categoria além dos quatro varna, identifica um grupo de “classes mistas” cuja composição corresponde à descrição da intocabidade: grupos depreciados socialmente, segregados das outras castas no espaço da aldeia e desvalorizados profissionalmente (Perez 1994a: 10-11). Em termos de ocupação profissional, os Intocáveis são desqualificados por lhes ser atribuída impureza máxima pela poluição ritual que deriva das suas funções relacionadas com a morte (humana, animal ou vegetal), a saber, funções crematórias; esquartejamento do gado morto e tratamento do couro resultante da pele de animais mortos para calçado ou instrumentos musicais de percussão; corte de bambu para objectos daí resultantes como esteiras ou teares.

Assim, por um lado, o varna dos Brâmanes é considerado o mais puro por oposição aos Intocáveis. Por outro, nos quatro varna, os Shudra opõem-se aos Brâmanes, Kshatriya e Vaishya por estes serem considerados dvijai, “duas-vezes-nascidos”, isto é, por ser aceite que os seus elementos têm um primeiro nascimento biológico e um segundo nascimento ritual, de iniciação aos textos clássicos do hinduísmo, a partir do qual passam a utilizar o cordão sagrado (janvem, em concani), usado verticalmente no tronco40.

Cada um dos varna reúne, então, vários grupos endogâmicos, com funções distintas e hereditárias, denominados jati (zat em concani e marati41), palavra de origem indo-europeia que significa “espécie” no sentido lato da expressão. O termo jati foi traduzido pelos

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Todavia, foram feitas tentativas para alterar o sistema, como, por exemplo, a desaprovação expressada no séc. VI a.C. por Budha perante a desigualdade social; ou as resultantes alterações da influência islâmica e do esforço de pensadores como Kabir, Raidas, entre outros (vide Kumar 2005: 294).

40 Se é esta a divisão de que os escritos clássicos nos informam, cabe questionar brevemente a realidade social de

Goa. Rui G. Pereira menciona em Goa a cerimónia de iniciação no estudo da religião hindu, simbolicamente ritualizada pelo uso do janvem por alguns Brâmanes antes da puberdade ou do casamento, uma vez que os Kshatriya e os Vashyia não têm direito a esta celebração, mas podem usá-lo a partir da altura em que se casam (1978: 29). No trabalho de campo que realizei em 2001 e 2002, já referido anteriormente, no taluka de Ponda, um sacerdote Brâmane respondeu que apenas os dvijai podem usar o fio sagrado; no entanto, alguns Kshatriya disseram que apenas os Brâmanes o podem usar; alguns Vaishyia elucidaram que só pode ser usado por Brâmanes e Kshatriya; alguns Shudra afirmaram que só os Brâmanes, Kshatriya e Vaishyia o podem pôr; numa aldeia do Taleigão (no taluka de Tiswadi), os hindus, na opinião de Gaudde neo-hindus. Em síntese, a realidade social revela as adaptações locais do hinduísmo.

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portugueses, depois de chegarem à Índia, como casta e foi este o termo que veio a ser posteriormente utilizado pelos ingleses e pelos cientistas sociais.

Porém, no início do século XVI, o termo português “casta” agregava em si vários significados, os quais sofreram uma transformação até aos nossos dias, como nos elucida Gita Dharampal-Frick:

The word itself [caste] not only embraced several meanings such as ‘family’, ‘stock’, ‘kind’,

‘strain’, ‘clan’, ‘tribe’ or ‘race’, but consequently was also used to designate various kinds of groups, besides Hindu ones, such as the ‘caste of Moors’ or the ‘caste of Christians’. Hence, the much discussed notion of ‘purity of blood’ deduced from the etymological derivation of the word from the Latin castus, meaning ‘chaste’ or ‘pure’, was only one among many distant

meanings. It was only later that the Dutch and then the English used the term caste as a technical social term; in short, as a one word restricted description of the approximately 3,000

groupings within Hindu society. […] Futhermore, this use of equivalent European sociological terminology indicates very significantly that it was the social organizational features of Indian societal order that were being referred to in these early descriptive reports. The religious

connotations of the caste system, which were to become so prominent in the later discourse, were not an issue for these early observers of Indian society (Dharampal-Frick 1995: 86; itálicos meus).

Vários dados sobre a arqueologia do termo casta são-nos mostrados pela autora. Duarte Barbosa, logo em 1516, chama a casta “lei dos gentios” (entendendo-se por gentios na altura, os que não eram cristãos, muçulmanos ou judeus, logo, os hindus)42, mas o termo “casta” é

também usado no seu sentido sociológico (como nos alerta Dalgado para a inovação de Duarte Barbosa 1988 [1919]: 226):

Aueis de saber que em todo ho Malabar43 há dezoito leys de Gentios naturaes, cada hũa

apartada das outras, e tanto, que nem se toquam hũas com hás outras, sob pena de morte ou perdimento das suas fazendas […] Há afora estas gentes acima honze leys de outras mais baixas… guardandose de misturar hũa com outra casta (Barbosa 1867 [1516]: 310; 334).

Esta descrição apresenta as castas como unidades sociais discretas e não nos informa sobre o seu ordenamento. Na verdade, o termo no seu original português não implica uma hierarquia mas apenas uma divisão44. Já Luís de Camões, em 1572, no canto VII dos Lusíadas, parece acrescentar o ordenamento e a gradação de estatuto à descrição do sistema de castas quando escreve, não sobre os habitantes de Goa, mas do Kerala (estado no sudoeste da Índia)45:

42 Ou seja, os que podiam ser alvo de missionação. 43 Costa no sudoeste da Índia.

44 No pensamento da altura, se os varna fossem pensados em termos de hierarquia, provavelmente teriam utilizado

a expressão "ordem" (como as ordens religiosas e militares existentes na Europa, regidas por códigos de subordinação muito rígidos). Expresso o meu agradecimento a Alexandre Oliveira pela troca de ideias sobre esta questão.

45 Agradeço, neste caso concreto, a William da Silva e a Teotónio de Souza a inspiração resultante do debate

24 Dous modos há de gente, porque a nobre

Naires chamados sam, e a menos digna

Poléas tem por nome, a quem se obriga

A ley a não misturar a casta antiga (Camões 1988 [1572]: verso 37, p. 274).

A gradação nos varna é construída em termos religiosos, na oposição da pureza e da impureza ritual, expressa pela função ritual a que cada varna é associado. Mas qual é, então, de uma forma sintética, a relação entre varna e casta no sistema social da Índia? Apesar da sua diferenciação, jati e varna têm sido utilizados por vários autores como sinónimos de casta, devido à sua indefinição observada na literatura clássica hindu. Por um lado, a complexidade deve-se ao facto de os Brâmanes poderem ser identificados como um varna e como jati, bem como os Shudra que podem ser designados igualmente como varna e jati, embora existam muitos jati Shudra que não são conhecidos apenas pelo nome de Shudra, mas por outra especificação profissional46. Por outro lado, o facto é que “os varna consistem num modelo que agrupam as diferentes castas e subcastas, embora a realidade social em termos locais seja composta pelas castas, ou mais especificamente, por subcastas” (Ghurye 2000 [1932]: 18; itálicos meus). Para melhor entendermos a relação entre casta e subcasta, parafraseamos Louis Dumont quando ele nos esclarece que as relações internas da aldeia se dão entre castas diferentes, enquanto as relações internas da casta se dão no domínio da subcasta47 (Dumont 1992 [1966]: 114). Esta questão revela-nos, consequentemente, a complexidade em torno do conceito de casta: em alguns contextos é substituído pelo termo subcasta (subdivisão da casta), noutros pelo de varna (aglomeração de castas).

Por outras palavras, varna é uma categoria textual e jati a categoria mais utilizada no quotidiano – consoante o contexto, o termo jati é aplicado ao varna, à “casta” como agregado de indivíduos com funções distintas e hereditárias, ou às suas divisões internas, como a subcasta ou secção exogâmica (Gomes da Silva 1990: 53). O que distingue os varna é que

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A título de exemplo, na aldeia onde fiz trabalho de campo, os Shudra são na sua maioria chamados render, os quais têm como função tradicional recolher a seiva dos cocos. Esta actividade profissional é actualmente realizada na aldeia por alguns Gaudde.

47 No original: “As relações entre castas diferentes estão praticamente contidas no interior da aldeia: emprega-se

um barbeiro enquanto barbeiro, e não enquanto membro de tal subcasta da casta dos barbeiros; o «grupo de casta efectivo» é, assim, a população da casta numa única aldeia. Ao contrário, as relações internas à casta são principalmente aquelas que são internas à subcasta: saímos da nossa aldeia, no plano da subcasta, para o casamento e a justiça: o «grupo de subcasta efectivo» corresponde a uma região formada por um número mais ao menos grande de aldeias, que pode ser muito menor que a área de distribuição de toda subcasta” (Dumont 1992 [1966]: 114).

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neles a função ritual é mais importante que a hereditariedade, ao contrário das castas onde a hereditariedade prevalece sobre a função ritual – ou seja, nasce-se com a casta dos pais48.

Depois de analisar o que distingue varna de jati, outra pergunta ocorre: como classificar hierarquicamente as castas que se situam entre os Brâmanes e os Intocáveis, normalmente colocados no topo e na base do sistema social, respectivamente? A literatura antropológica alerta-nos para a dificuldade de classificar as castas na zona média do sistema, sendo que elementos dessas castas tentam normalmente argumentar que são iguais àquelas tidas como “superiores” e superiores às tidas como “iguais” na hierarquia. Os argumentos centraram-se no vegetarianismo, avançado como um indicador de elevado estatuto (como veremos entre os Gaudde de Goa), sendo que as castas vegetarianas ocupam usualmente a posição mais alta na hierarquia49; e, inversamente, o consumo de carne de vaca, de porco doméstico e de bebidas alcoólicas, leva a situar as castas na base do sistema, assim como práticas associadas à morte animal, vegetal e humana (vide Srinivas 2005 [1954]: 169-170). Srinivas acrescenta que, para além de, por um lado, a hierarquia ser nebulosa para enquadrar determinadas castas, por outro, as castas podem vir a reclamar mobilidade no sistema hierárquico de castas. A hierarquia é, em larga medida, local, o que dificulta uma definição geral da hierarquia do sistema de castas (Srinivas 2005 [1954]: 170).

Após distinguir sinteticamente jati de varna e de apresentar os critérios geralmente empregues para identificar o sistema de castas, irei mostrar que a sua utilização é problemática por diversas razões que tentarei expor. É necessário aprofundar a construção do conceito de hierarquia e a forma como se foi articulando com o de casta, ao mesmo tempo que tentarei identificar ferramentas conceptuais que podem ajudar a analisar os Gaudde. Situar os Gaudde no sistema hierárquico de castas constitui uma das dificuldades encontradas, para a qual importa sistematizar os estudos desde os finais do século XIX (altura em que começam a surgir de uma forma mais regular estudos históricos e sociológicos sobre a casta) até 1966, quando Louis Dumont publicou a primeira teoria geral sobre a hierarquia do sistema de castas, bem como actualizar os contributos sobre a construção hierárquica que surgiram posteriormente. A reflexão sobre estes temas conduz também ao conceito de classificar, o qual será alvo de análise em seguida.

48 Alguns autores aprofundaram particularmente esta distinção: Fox (1969); Quigley (2001 [1999]); Sharma

(1975); Smith (1992, 1994) e Srinivas (2005 [2002]a).

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A construção sociológica da hierarquia

Os primeiros estudos sobre a casta basearam-se nos censos realizados nos finais do século XIX e no século XX, durante o colonialismo britânico na Índia. Na verdade, os europeus durante o colonialismo parecem ter sido os primeiros a tentar entender racionalmente a instituição da casta, com recurso à concepção da sua suposta origem ariana. Como sugerido no texto de Gita Dharampal-Frick (1995: 86), houve a tendência natural de olhar o sistema de castas em termos familiares aos sistemas europeus, como é exemplo a teoria de Émile Senart (1930 [1886]), que viu semelhanças entre a organização de castas na Índia e a das sociedades gregas e romanas, em termos de instituições e práticas.

Com base nos censos de castas, Herbert Risley, na sua introdução a Tribes and Castes

No documento Casta, tribo e conversão: os Gaudde de Goa (páginas 40-69)

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